A divisão ameaça a união

Muitos analistas questionam a nacionalização dos hidrocarburetos na Bolívia rotulando-a como populista. Morales a teria decidido de modo oportunista para agradar o povo, tendo em vista as próximas eleições constitucionais. Nacionalizações “adolescentes”, como pontificou o ministro Celso Amorim, injustas para com a Petrobrás que investiu 1,5 bilhão de dólares na região.

Claro, esqueceram que, na campanha, Morales já prometia a nacionalização dos recursos naturais. E embora notícias sem conta tenham alardeado os gastos da Petrobrás, nenhuma falou dos lucros. Sobre esse assunto, Roberto Melea, executivo da petrolífera espanhola Repsol-Bolivia, testemunhou em 2003: “Nos negócios de gás e petróleo as multis investiram 1 e ganharam 10 nos últimos 20 anos”. Como a Petrobras entrou na Bolívia em 1996, não deve ter se saído de todo mal.

Apesar de Lula e Kirchner terem aceitado a nacionalização e topado discutir seus aspectos financeiros, alguns analistas dizem que isso seria o início do refluxo da “onda esquerdista”, que geraria a unificação dos países onde ela chegou. Vargas Llosa acha natural: “Com seus governos moderados, Lula, Tabaré e Bachelet têm mais proximidade com os conservadores Uribe da Colômbia e Fox do México do que com Chávez e Castro”.

Rossana Fuentes, editora da edição espanhola da revista Foreign Affairs, sustenta que a unidade dessa esquerda começa a ser rompida, pois há divergências conceituais entre os governos social-democratas – Lula, Kirchner, Tabaré e Bachelet – e os neopopulistas – Chávez, Morales e Humala. Nos primeiros, “a economia foi deixada para os técnicos, enquanto as políticas sociais e de redução da pobreza viraram seus diferenciais”.

Os outros são vistos de modo pejorativo, pois são considerados populistas políticos, com postura e linguagem populares e teses radicais que agradam ao povo, mas que, a médio prazo, são ruinosas.

Mas Kirchner não fica bem no grupo dos “bem comportados” só por ser branco, culto e “bem posto na vida”. Ele tem ações audaciosas (desaprovadas pelos “técnicos” referidos acima) que desafiam frontalmente o mercado e os Estados Unidos, como a moratória de 81 bilhões de dólares e sua renegociação para valores muito abaixo, o boicote contra a Shell e seus altos preços, o cancelamento da dívida de 9,5 bilhões de dólares ao FMI e a nomeação de dois ministros esquerdistas.

Declarações como a seguinte o aproximam mais de Chávez do que de Lula: “O FMI e nós pensamos diferente e continuaremos pensando diferente. Passamos tão mal seguindo o Fundo que nos preocuparíamos se pensássemos igual”. 

Apesar de seu radicalismo, Kirchner não se enquadra na definição de “populista”, pois a Argentina está dando certo. Com câmbio desvalorizado e juros inferiores a 10% , seu PIB tem crescido por volta de 10% e a inflação e o desemprego, apesar de ainda altos, caem de mês para mês.

Por sua vez, é estranho que Chávez, Morales e Humala sejam chamados de populistas. Afinal, as ações políticas destes homens têm sido lógicas e eficientes.

Chávez peca por excessos, como brigar com Alan Garcia, do Peru, e Vicente Fox, do México, o que desagradou ao povo desses países e causou a queda nas pesquisas dos candidatos nacionalistas Humala e Obrador, por ele apoiados. 

Mas no sétimo ano do seu governo, a Venezuela exibe excelentes resultados: 

– crescimento do PIB – 17,3% em 2004, 10,2% em 2005 (o FMI previa 1,5);
– crescimento da indústria – 10,2% em 2005;
– desemprego – caiu de 14,7% em 2004 para 10,7% em fevereiro de 2006;
– construção de 150 mil casas populares em 2006;
– pobreza – caiu de 47% em 2005 para 35% em 2006;
– educação – 6% do orçamento (nos países ricos, a média é 3,9%);
– reforma agrária – 100 mil assentamentos somente em 2005.

Não se pode taxar de irresponsável um governo com esta folha de serviços. Se fosse, seus sete anos de mandato seriam suficientes para acontecerem os desastres típicos das ações populistas.

Morales também não pode ser classificado assim. Pegou o país mais pobre da América do Sul, com 80% da população na miséria e uma longa história de sofrimento e espoliação. Os governos anteriores abençoados por Washington e o FMI privatizaram tudo e o que aconteceu? Responde o sociólogo boliviano Alvaro Garcia: “O neoliberalismo trouxe extrema pobreza aos indígenas (70% da população) e deu-lhes justificação para seus esforços de recuperar o gás natural, que eles consideram uma herança social”.

Morales atendeu-os. Depois de muitos anos de fracasso da exploração estrangeira dos recursos naturais, chegou a hora de o Estado fazer sua tentativa. O povo só estará arriscando a sua miséria. Se não der certo, não poderá ficar pior do que está. 

Fora a cor e a mensagem popular, Humala, candidato a presidente do Peru, nada tem que o diferencie dos típicos líderes nacionalistas. Ele prega prioridade às demandas sociais, particularmente dos índios, o maior e mais pobre segmento da população do país, apoio à indústria nacional e revisão do tratado de livre comércio com os Estados Unidos. 

Já o grupo dos chamados social-democratas, Bachelet, Lula e Tabaré, mantém os pés em duas canoas. São pela união da América Latina, mas estão sempre de olho nas vantagens que podem tirar do império. Chegam a contestá-lo… mas com jeito. Os três estão entre o pragmatismo e a acomodação.

As diferenças geram os primeiros conflitos. Lula e Morales têm divergências sérias no caso da nacionalização dos hidrocarburetos. Tabaré e Kirchner brigam por causa de duas indústrias de celulose, as quais, para o argentino, irão contaminar o rio Uruguai.

Enquanto isso, Bush come pelas beiradas. Já que a ALCA não passou, ele firma acordos bilaterais de livre comércio com cada país latino-americano. Já conseguiu o Chile e o Peru, vai fechar com o Equador e a Colômbia. Agora ataca o Mercosul. Está em adiantadas tratativas com os presidentes do Paraguai e Uruguai.

Minados pelas disputas internas e pela sedução do mercado americano, o Mercosul e a Comunidade Latino-Americana tendem a naufragar.

Os Estados modernos não têm amigos, têm interesses, conceito universalmente aceito. Porém, sacrificar alguns interesses agora em função de interesses maiores pode ser mais conveniente.

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