Em 4 de março, o ex- espião russo Skripal e sua filha foram envenenados por um agente químico, o Novichok, segundo o governo inglês. A primeira-ministra Theresa May acusou Putin do crime e lhe deu 36 horas para fornecer explicações sobre o uso de um agente nervoso russo no atentado. Ou haveria retaliações.
Foi um ultimato arrogante e agressivo. A resposta veio num tom igualmente ofensivo, ridicularizando as acusações britânicas.
Embora, nessa troca de tapas, as duas partes são igualmente censuráveis por seu comportamento mal educado, é estranho que Londres tivesse invertido o ônus da prova. Sim, porque no direito dos países democráticos, cabe ao acusador provar a culpa do acusado. O papel deste não é provar sua inocência mas negar a pertinácia do que lhe foi imputado.
No seu comunicado ao Parlamento, Thereza May não forneceu provas, limitou-se a dizer que a culpa da Rússia seria altamente provável, não havendo qualquer alternativa viável.
Baseava-se em dois pilares:
1- O governo Putin é o único governo que costuma mandar assassinar adversários, inclusive no exterior;
2– Os russos criaram o Novichok e são os únicos capazes de produzir esse agente químico.
Quanta à primeira assertiva, pondero que não é bem assim.Não está rigorosamente provada. De outro lado, há evidências claras de que outros países tem sido responsáveis por assassinatos políticos.
Israel, por exemplo, vem usando sistematicamente esta prática, aliás condenada pelo direito internacional. E deixa o Kremlin longe em número de vítimas.
No seu livro, Rise and Kill First, Ronen Bergman, correspondente internacional do jornal israelense Yediot Aharonot, afirma que o Mossad e o Shin Bet (polícias secretas de Israel) já assassinaram pelo menos 2.700 inimigos do país, desde sua fundação.
Para chegar a este número, Bergman entrevistou cerca de mil agentes das duas polícias. Alguns na ativa, outros já aposentados.
Eles lhe contaram suas histórias reais. Muitos não esconderam seus nomes.
Segundo os entrevistados, “assassinatos em vez de guerra”, é uma política do Estado israelense.
O autor cita a proposta de diretor do Mossad, em reunião com o ministério para discutir medidas contra a nuclearização do Irã. Esse cidadão alegou que, matando uma dúzia de cientistas nucleares de Teerã, o problema seria resolvido, sem precisar apelar para uma guerra (a sugestão foi aceita).
Ainda há outras faltas que pesam na folha corrida israelense.
É um dos raros países que, ao lado da Coreia do Norte, não ratificaram a Convenção de Armas Químicas, não se comprometeram a destruir seus estoques desses venenos. Nem é membro da Organização Para Proibição de Armas Químicas (OPCW), ao contrário de 191 outros países. E ainda se recusa a declarar seus estoques de armas químicas e, é claro, a permitir a fiscalização de inspetores da OPCW (já pensou o que diriam se o Irã fizesse o mesmo?).
Visto estes fatos, não dá para negar que Israel tem uma tradição muito mais rica no assassinato de oponentes do que a Rússia de Putin. Além de manter escondido seu estoque de armas química (que consta de ser de grande porte).
Há outros países onde dar fim a pessoas que ameaçam a segurança do Estado é algo tratado como uma arma política.
Os americanos usam seus drones exatamente para isso. Suspeitos de terrorismo são pré-investigados e, a seguir, sua execução fica por conta dos drones.
Infelizmente há a inconveniência dos drones alvejarem também muitos civis inocentes como aconteceu no Paquistão, Iêmen, Afeganistão e Somália. Elas tinham o azar de estarem por perto na hora da explosão dos mísseis lançados do alto.
Mas são efeito colaterais da guerra, inevitáveis, segundo o general Mattis, secretário da Defesa dos EUA.
O Le Monde Diplomatique, de 30 de março, informa que até o ex-presidente François Hollande, da exemplar França, mandou matar “inimigos do Estado”, numa média de um por mês, como ele próprio admitiu. E nenhum dos seus confrades socialistas protestou. A respeito desse fato, o presidente da Assembleia Nacional francesa, François de Rugy, comentou : ”Às vezes é necessário” (o risco e das escolhas serem incorretas).
Nenhum desses países sofreu a tempestade de críticas e sanções que ainda continuam desabando sobre a Rússia e seu presidente.
Putin, na verdade, não é nenhum santo.
O Chicago Tribune (em 7 de fevereiro de 2012) acha exagerados os adjetivos feios com que o chefão russo tem sido mimoseado: ”Putin não é um ditador tipo Stalin, sedento de sangue. Ele resistiu teimosamente a apelos pela volta da pena de morte à Rússia.”
Falando sério, na verdade, existem três casos suspeitos, que sombreiam a imagem do presidente russo: as mortes misteriosas de personalidades fortemente críticas das ações do Kremlin.
No assassinato da jornalista Politkovskaya (em 2006), os tribunais russos condenaram os executores a pesadas sentenças de prisão, mas não se descobriu quem foram os planejadores do crime.
O mesmo aconteceu no caso do político Nemtsov (em 2005), também duro acusador do governo de Moscou.
No entanto, nem familiares, nem amigos, nem colegas, ninguém disse que a morte de qualquer dos dois fora ordenada pelo presidente da Rússia.
Já com Livtinenko, ex-oficial de segurança do Kremlin, que desertou para a Inglaterra, as coisas foram diferentes. Ele foi envenenado com polônio, uma substância radioativa de grande capacidade letal. A investigação britânica indiciou dois “diplomatas russos, que, a essas alturas, já tinham voltado para casa. O governo inglês solicitou ao russo a extradição dos dois elementos, o que lh foi negado.
Concluiu-se que Putin estivera provavelmente por trás do crime, embora não houvesse qualquer testemunha direta ou indireta disso.
Lembro que nos tribunais de países democráticos não se condena pessoa por serem provavelmente culpadas. É precioso haver mais do que uma prova razoável. Segue-se a antiga norma do direito romano, in dubio, pro reu.
A primeira-ministra Thereza May prefere filiar-se à “doutrina” dos países ditatoriais, que não precisam de certezas para condenar os desafetos.
No caso presente, ela descartou as incertezas da Scotland Yard, que pede mais três meses para chegar a uma conclusão sólida sobre quem seriam os culpados.
A digna senhora que rege o Reino Unido ignorou os seus especialistas na elucidação de crimes para resolver tudo por uma simples exclusão. Sherlock Holmes deve ter tremido em sua tumba.
Como nem Israel, nem os EUA, nem a França, nem outro país teriam motivos para desrespeitar de forma tão mortífera as tradições de hospitalidade inglesa a cidadãos do exterior, só restava a Rússia.
Já os russos teriam motivos.
Surgiram diversas teorias da conspiração, das quais só uma parece viável: Putin queria advertir aqueles dos seus agentes secretos, eventualmente sonhando com polpudas propinas do Ocidente, que pensassem bem. Cedendo à tentação poderiam se dar mal. O braço vingador russo chegaria até eles, no país em que se homiziassem. E com “fúria e fogo”.
Faz algum sentido, embora seja apenas uma teoria.
A contestação é que Putin, o Mau, não iria atacar um cidadão russo na Inglaterra, justo três meses antes da Copa do Mundo. Onde a Rússia pretende fazer o maior auê, exibindo a imagem de um país moderno, organizado e eficiente, deslumbrando os estrangeiros, especialmente americanos e europeus.
O líder do Kremlin não é burro, se fosse, não estaria onde está. Deve saber que matar alguém em plena terra de Shakespeare, com um agente químico russo, deixaria seu país muito mal na foto, onde pretende aparecer com brilho.
Cito ainda a teoria de que o Kremlin precisava impedir que Skripal revelasse segredos militares. Acho absurdo pois, vivendo na Inglaterra há 8 anos, desde 2010, depois de trocado por agentes britânicos presos na Rússia, o ex-espião pudesse ainda ter o que revelar à inteligência britânica. Talvez a receita do autêntico strogonoff…
Tudo isso são devaneios, dizem os russos.
Se tivéssemos matado Skripal, nunca mais país algum aceitaria trocar espiões conosco.
Perderíamos chances de conseguir, via transações assim, trazer para a mãe Rússia desertores ocidentais ou espiões de Moscou, com informações preciosas.
Nada disso abalou a convicção ocidental de que madame May estava certa.
A fonte que daria mais base à sua acusação é o químico russo Vil Myrzianov. Ele trabalhou muitos anos nos laboratórios do então regime soviético, onde se produziam armas químicas. Sabe das coisas.
Em 1992, Myrzianov revelou na imprensa russa (já em tempos liberais de Ieltsin) a existência de um agente nervoso com eficiência maior do que os existentes, o Novichok. Publicou inclusive sua fórmula.
Tendo emigrado para os EUA em 1995, o químico russo publicou, em 2007, o livro “Segredos de Estado- Crônica do Programa de Armas Químicas Russas”, onde transcreveu a formula do Novichok.
Entrevistado pela Agência France Press, em sua casa, em Princeton, Nova Jersey, acusou o Kremlin de ser, sem dúvida, o autor do crime: “Nenhum outro país tem a capacidade necessária (para produzir o Novichok) como a Rússia porque a Rússia inventou, testou e transformou o agente nervoso numa arma. A única outra possibilidade seria que alguém usasse a fórmula do meu livro para fazer uma arma dessa espécie.”
Portanto, os russos não eram os únicos. Alguém, não explicitado, poderia ler a fórmula do Novichok no livro e produzir o terrível veneno.
Mais recentemente Myarzianov procurou concertar sua contradição. Em entrevista ao The Guardian, ele declarou que só a Rússia e mais ninguém teria condições de produzir o Novichok. Nenhum grupo particular (como a Máfia) teria interesse ou meios para aplicar os imensos investimentos necessários na construção de um laboratório do altíssimo nível do moscovita.
Não é o que sustenta trabalho do historiador John Laughland, citado pelo site do Ron Paul Institute (desse senador republicano aposentado). Ele lembra afirmação de Myrzaynov, em 1995, quando informou que o Novichok poderia ser manufaturado em qualquer país, por exemplo, por um laboratório capaz de fazer fertilizantes ou pesticidas
Boris Johnson, o folclórico secretário de Relações Exteriores do governo conservador inglês, procurou enquadrar a dubiedade de um e a contestação do outro.
Garantiu que o categorizado laboratório do exército inglês, em Porto Downs, testara amostras do veneno introduzido em Skripal e sua filha: era mesmo o Novichok. E fora produzido e usado pela Rússia no atentado fatídico, concluíra o pessoal do Porto Downs, conforme informação vinda do irrepreensível Foreign Office.
Boris não deveria usar o nome da Porto Downs em vão.
Em 23 de março, no seu blog, Craig Murrary, ex-embaixador inglês no Uzbequistão, provou que o secretário de Relações Exteriores divulgara uma fake news.
Murray citou sumário de julgamento do pedido de retirada de sangue das vítimas do atentado para ser examinado pelos peritos da Organização Pela Proibição de Armas Químicas. No sumário de sua decisão, o juiz Willians, da Corte Superior, assinala: “Amostras de sangue de Sergei Skripal e Yulia Skripal foram analisadas (pelo Porto Downs) e se descobriu indicações de exposição a um agente nervoso ou composto associado. As amostras apresentaram teste positivo para a presença de um agente nervoso da classe Novichok ou intimamente relacionado a esse agente.”
Além dos químicos do laboratório de Sua Majestade não terem falado que a Rússia usou o Novichok para envenenar Skripal e filha, o Porto Down também admite que o veneno encontrado poderia não ser necessariamente o próprio Novichok, mas outro agente nervoso intimamente relacionado a ele.
Apesar de tantas dúvidas, Thereza May resolveu dar seu golpe de mestre.
Ela estava desacreditada no Reino Unido, primeiro, depois de virtual derrota nas eleições parlamentares. Agora, e principalmente, por causa de sua atuação fraca nas discussões do Brexit, que lhe valera até pedidos de demissão por parte de colegas conservadores do parlamento.
Viu no atentado em Salisbury um caminho para recuperar o apoio da opinião pública, iniciando um conflito com a Rússia do mal-amado Putin- no qual a dignidade e o orgulho inglês estariam sendo desafiado pelos herdeiros de Stalin. E assim desviar as atenções gerais das deficiências do seu governo.
Tentando encarnar Churchil, ela denunciou altivamente o governo russo por ousar matar um hóspede das terras de Sua Majestade. E prometeu punir as foças do mal.
Deu certo.
Os parlamentares, como cruzados redivivos, soltaram brados de guerra, assumindo a defesa da pátria, sob as ordens de seu líder, o governo federal. Como aconteceu na guerra dos 100 anos, quando o rei Henrique V apelou aos ingleses para defender a honra inglesa, invadindo a França para conquista-la;.
Somente Corbyn, o líder dos trabalhistas do país atreveu-se a censurar May por pular para as conclusões, antes de analisar devidamente os fatos e discutir o problema com os líderes russos.
Mas Corbyn foi soterrado por brados de guerra e apodos de traidor, mesclados com a indignação dos seus próprios colegas de partido, inclusive de 16 deputados trabalhistas autores de uma carta aberta contra ele.
A imprensa local juntou-se a esse coro patriótico, não só atacando o inimigo russo, como também destacando outros pseudo- crimes similares, atribuídos às garras longas de Moscou.
Como se sabe, o povo inglês é extremamente suscetível a apelos para defender a pátria ultrajada.
E aderiu em massa.
Há tempos que não se via tanto consumo de cerveja nos pubs da nação, na celebração da reação inglesa.
O resultado apareceu nas pesquisas. 56% dos respondentes aprovaram a pressa de May e apenas 11% ficaram com a prudência de Corbyn.
Enquanto isso, o Partido Conservador, que vinha em queda, passou a ganhar dos trabalhistas por 42% X 40%.
No campo da política internacional, a primeira-ministra também colheu nutridos dividendos.
Ela comunicou suas conclusões sobre o atentado aos líderes do Ocidente. E pediu o apoio de todos, expulsando diplomatas russos, como Londres já estava fazendo.
Trompa, que durante um ano vem lutando para se desvincular da intervenção russa nas eleições presidenciais, aplaudiu a chance de se afastar da proximidade suspeita com Putin. E mostrou sua repulsa ao Kremlin, expulsando nada menos do que 60 diplomatas russos, acoimados de espiões.
Foi bizarro o motivo alegado dessa expulsão em massa, por uma de sub-secretárias de Estado dos EUA, Heather Nauert: ‘quando o Reino Unido nos diz que tem provas, que eles sabem que a Rússia foi responsável, nós temos todas as razões para acreditarmos neles.”
Portanto, para The Donald, Thereza May é infalível e , como tal, tudo o que ela afirma só pode ser verdade. E o presidente sempre aprovará de olhos fechados. Tratando-se de quem comanda o maior poder planetário, essas “crises pontuais de cegueira” recomendariam sua internação e substituição (temporária) por alguém com boa visão, para se evitar decisões possivelmente desastrosas para a paz mundial.
A Europa Unida também aderiu ao Reino Unido. Não iriam deixar na mão uma das três maiores nações do Continente nem irritar The Donald, o que poderia acelerar seu ímpeto pela destruição do Acordo Nuclear, coisa que os europeus não querem de jeito algum.
Pressionadas pelo trio Merkel- May- Macron, a maioria das outras 25 nações da Europa Unida, supostamente iguais em relação às líderes, fechou com Londres, mandando para casa suas cotas de diplomatas-espiões russos.
Algumas ficaram de fora: a Bulgária, Chipre, Portugal, Suíça, Áustria, Eslovênia, Luxemburgo, Grécia e Malta.
Para não brigar com seu parlamento, Milos Zenam, o presidente checo topou a contra gosto devolver dois diplomatas a Moscou. Sem antes, porém, declarar: “Eu quero os fatos. Eu certamente receberei bem (as acusações) se o Reino Unido apresentar alguma evidência de que os russos quiseram matar o agente-duplo Skrilal.”
Surpreendentemente, a Nova Zelândia rompeu a unidade dos países do Commonwealth – Austrália e Canadá foram fiéis ao governo de Sua Majestade. A primeira-ministra local saiu do rebanho, justificando-se: bem que investigamos, mas não achamos um único espião russo por aqui.
O Japão, é claro, como vassalo de Washington, acompanhou a metrópole.
Embalada, Thereza May ainda ameaça com novas retaliações.
Não precisava, além de se recuperar internamente, ganhou novas forças para melhorar sua posição na discussão dos termos do Brexit. Já tinha ganhado vantagens substanciais.
É inegável que ficou claro urbi et orbi: mesmo saindo da Europa Unida, o Reino Unido continua firme e forte politicamente no Velho Continente, tendo os grandes da região -Alemanha e França – considerando o país como um dos seus, para o bem e também para o duvidoso.
Quanto ao atentado de Salisbury, tudo indica que ninguém sabe quem o cometeu.
É arriscado eximir Israel, interessado em enfraquecer a Rússia na área internacional, visando que isso se reflita na guerra da Síria e no conflito com o Irã, através de uma redução da interferência de Moscou.
A CIA poderia estar atrás do envenenamento de Skripal, apostando na responsabilização geral da Rússia, que firmaria a coesão da parceira Europa Unida/ EUA contra o velho inimigo comum das estepes.
O que ainda encerraria, ou pelo menos retardaria, a tendência crescente dos europeus, ora indignados com os desaforos de Trump, de buscarem caminhos próprios, independentes de Washington.
Claro, tudo isso não passa de teorias da conspiração, como também são as que põem a culpa em Putin.
O que não quer dizer que eu considere os russos inocentes.
Apesar da falta de provas, eles podem até serem culpados.
Só que, embora negadas por Theresa May, há outras alternativas sobre a autoria do envenenamento de Skripal e sua inocente filha.
Tão discutíveis quanto as que atualmente põem Putin no banco dos réus.