Eleições no Irã, recuo à vista.

As negociações da volta dos EUA ao Acordo Nuclear com o Irã ainda não terminaram e em 18 de junho o país dos tapetes vai eleger seu novo presidente.

A torcida é para que os dois países acertem seus ponteiros logo, para que isso possa estimular o povo a eleger alguém pelo menos tão moderado quanto Rouhani. O atual presidente  está completando dois períodos e pelas leis locais não pode se candidatar a um terceiro.

As eleições iranianas não são exatamente limpas quanto a casa de uma dona de casa suíça.

Para poderem concorrer, os candidatos têm de ser aprovados por um certo Conselho dos Guardiães – 12 experts em teologia e política, dos quais 6 são nomeados pelo Líder Supremo Kamenei e os demais sob sua influência.

Normalmente esse conselho costuma mexer os pauzinhos para levar em conta a opinião do seu chefe, mas desta vez eles exageraram.

Aparentemente armaram para que Raisi, candidato de Kamenei, ganhasse na certa, usando um método bastante eficaz: rejeitar todos os seus mais fortes concorrentes,  o conservador moderado, Larijani, o populista Ahmadinejad e Jahangiri, o mais temido pelo establishment por ser o único político moderado que conta com grande apoio popular.

Desta vez os principalistas, partidos de conservadores e ultras, não querem dar nenhuma chance aos moderados e seus aliados reformistas, que atualmente governam o país com o presidente Rouhani.

7 candidatos foram aprovados pelo pente enviesado dos Guardiães. 5 são conservadores sem chances de vencer. Os outros 2, que apoiam o governo Rouhani, foram escolhidos por seu escasso conhecimento na massa dos eleitores.

Ainda assim, devem tomar cuidado com o que falarem. O procurador-chefe Alqassi-Mehr advertiu: ”Os candidatos não deveriam cruzar as linhas vermelhas do sistema nas suas campanhas e discursos.” Do contrário, seriam “confrontados firmemente”. Ou seja, nada de críticas à reputação do Judiciário (dominado pela linha dura) e de questionamento à doutrina do Conselho Tutelar dos juristas, que estabelece a autoridade dos religiosos sobre os políticos(The New Arab, 31/05/2021).

Em suma, foi um prato feito para Raisi ganhar de barbada, talvez por coincidência, clérigo e chefe do poder judiciário.

Houve protestos contra os bizarros cortes, até recursos ao Ministério do Interior, mas a aposta é de que não vão dar em nada.

A verdade é que o povo está pouco interessado na eleição. Para dar uma ideia, a eleição parlamentar de 2020 teve uma abstenção de 47%, considerada alta, enquanto as previsões para a próxima batem em 63%.

Há uma profunda decepção com o governo moderado-reformista que prometeu muito e realizou pouco, nos seus dois últimos períodos.

O presidente Rouhani foi o menos culpado.

Quando foi aprovado o Acordo Nuclear com o Irã, o chamado P5+1 (EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Rússia e China), Rouhani anunciou a chegada de novos tempos, quando o Irã, livre de sanções predadoras, receberia grandes investimentos do Ocidente, que promoveriam a decolagem da economia e da qualidade de vida.

O povo dançou a noite inteira, de alegria. Não sei se houve muito consumo de árak, pois essa bebida é ilegal no país.

Infelizmente, deu errado. Ao retirar os EUA do acordo, o então presidente Donald Trump não só manteve as sanções como as aumentou,  virtualmente proibindo os demais países de investir e de comerciar com o Irã. Diante disso,as grandes empresas e os bancos internacionais se retraíram, temendo que os EUA bloqueassem suas operações com o Irã, as achabndo atingidas pelas sanções.

O resultado foi que a economia iraniana foi duramente vulneradae o governo ficou sem condições de impedir a brutal desvalorização do rial, o crescimento da inflação e do desemprego, a galopante carestia e a falta de produtos necessários, como medicamentos, que vinham via importação.

Os fracassos na economia e na qualidade de vida enfraqueceram profundamente a antes excelente imagem reformista do moderado Rouhani. E seus opositores (conservadores e ultras) aproveitaram o desencanto popular com as promessas não realizadas para aumentar sua influência no governo do país.

No Irã, o presidente divide seu poder com instituições do Estado: o judiciário, o parlamento, diversos conselhos como os Guardiães, o clero e o Supremo Líder Kamenei. Quase todos  conservadores (alguns, até ultras), barraram ou limitaram muitas decisões liberalizantes do governo.

Desprestigiado pela crise detonada pelas sanções, Rouhani não pôde realizar a maioria dos seus planos de modernização do país,  dinamização das relações com o Ocidente,  ampliação das liberdades clássicas, inclusive dos direitos das mulheres, e imposição dos direitos humanos- eliminando leis medievais, baseadas em interpretações discutíveis do Alcorão.

Os resultados já apareceram nas eleições parlamentares do ano passado, quando os conservadores e ultras elegeram 221 dos 290 cargos.

É verdade que o prestimoso Conselho dos Guardiães ajudou esses grupos, negando permissão de concorrer a quase todos os principais líderes do bloco moderado-reformista.

Mas o desencanto popular pesou bastante pois o boicote das eleições causou uma abstinência recorde de 57%, especialmente em Teerã, onde o Conselho dos Guardiães, não deu chance a quase nenhum dos candidatos reformistas.

Nesta eleição presidencial o boicote deve ser ainda maior, partido especialomente dos setores progressistas,  adeptos da reforma do aparelho estatal.

Eles ficarão diante de três opções: boicote, Mehralizadeh ou Hemati.

Entre os candidatos que apoiam Rouhani, talvez o mais forte seja o reformista Mehralizade, que foi vice de Katami – o primeiro reformista a governar o país- e governador da importante cidade de Isfahan. O moderado Hemati parece menos conhecido. Trata-se de um burocrata, que preside o Banco Central do Irã, pouco capaz de falar a linguagem do povo.

O boicote me parece uma furada porque costuma resultar no enfraquecimento dos grupos que o promovem em benefício daqueles que desejam derrotar.

No Irã, por exemplo, o boicote dos progressistas às eleições parlamentares de 2020 causou o esmagamento de sua representação no parlamento, que alcançou uma votação ridícula, e a elevação dos conservadores e da linha dura a uma posição de força que não deu tranquilidade, nem condições para Rouhani implantar modificações substanciais nas retrógrada leis do país.

O clérigo Raisi é o candidato dos principalistas a ser vencido. Os votos dos 4 rivais vão cair pouco nas urnas.

Além de chefe do judiciário iraniano, Raisi é membro do poderoso Conselho Clerical. O discreto, mas notório apoio do Supremo Líder vai ajudar bastante a empurrá-lo no rumo da presidência.

Raisi tem uma folha corrida manchada por um episódio de grave violação dos direitos humanos. Em 2009, na repressão dos protestos populares contra a eleição do populista Ahmadinejad, ele integrou o grupo de 4 figuras, o chamado “comitê da morte,” que, em dois meses, condenou à morte milhares de prisioneiros políticos, baseando-se num improvável repúdio à República Islâmica.

Mas isso foi há 12 anos. O povo costuma ter memória curta. Atualmente, Riasi parece estar sendo mais associado à liderança de uma forte campanha anti-corrupção que pegou bem em todos os setores do país.

De olho nos votos dos que tem dificuldades em engolir os principalistas, Raisi inscreveu-se como candidato independente, apesar de ser um político da linha dura.

O tema básico de sua campanha eleitoral é o combate sem tréguas à corrupção, com  créditos ganhos no papel principal da recente campanha anti-corrupção que citamos acima. Mas há um furo nesta proposta. A corrupção que Raisi  mais alvejou durante sua gestão no Judiciário foi a protagonizada nas entidades estatais,  especialmente nas geridas por colegas da linha dura (Responsable Statecraft, 11/5/221)

Pragmático, o candidato “independente”, promete também ampliar os direitos da mulher, pauta saudado pelos defensores dos direitos humanos, embora ausente do ideário conservador.

A partir de 1 de junho (dia em que estou escrevendo este artigo), EUA e Irã tem 17 dias para aprovar a re-integração dos EUA no Acordo Nuclear e a volta do Irã aos limites de enriquecimento de urânio dispostos no acordo.

Se acontecer (o que não é certo), espero que seja num prazo suficiente para Rouhani comunicar a seu povo o fim das sanções e as perspectivas de progresso a curto prazo, advindas do desbloqueio das relações comerciais com o Ocidente e países aliados, especialmente da Ásia.

Ainda que isso possivelmente não seja suficiente para reverter o desânimo popular, levando-o em massa às urnas em apoio de um presidente reformista ou moderado, representa ao menos uma esperança.

Seja como for, o bloco conservador-radical tem as melhores cartas para levar a eleição presidencial.

Conquistado esse cargo, ele passaria a ter todas as rédeas do governo iraniano nas suas mãos, com o Supremo Líder, o parlamento, o judiciário, os conselhos clericais e o exército (especialmente a Guarda Revolucionária) unidos de corpo e alma.

E aí, já viu: não dá para esperar evoluções nas instituições e nos direitos dos cidadãos, com adaptação da sharia aos tempos modernos, como Rouhani tentara sem êxito.

Enquanto isso, a política internacional tenderia a ser jurássica, avessa a concessões, ainda que de ordem tática, e pronta a reagir com violência às esperadas ações agressivas dos EUA e de Israel (principalmente). Com consequências ruinosas para as partes envolvidas.

Num panorama assim, os poucos avanços conseguidos pelos dois governos de Rouhani não apenas teriam se paralizado, mas, pior, cancelados.

Esse recuo seria, sem dúvida, influenciado por Biden.

Se tivesse, sem demora, confirmado suas promessas de voltar ao Acordo Nuclear, retirando as sanções que devastavam a economia iraniana, em vez de ceder a Netanyahu e à direita americana, trazendo exigências inaceitáveis para o Irã (o fim do programa de mísseis balísticos e das ações em países da região) a situação seria outra.

O governo teria tempo de convencer seu povo de que, afastadas as sanções, o Irã iria conhecer um extraordinário avanço. Até mesmo grandes investimentos de empresas estrangeiras nas riquezas do Irã e o certamente considerável aumento na exportação do petróleo  poderiam ser anunciados, fazendo renascer as esperanças populares.

A fotografia seria outra: em vez do recuo que se desenha com a provável vitória do atraso, haveria sonhos, talvez convertidos em votos.

Talvez decisivos.

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