A desilusão americana.

Nos Estados Unidos, o presidente dispõe de grande poder, mas não absoluto.

O Congresso, criando leis, e o Judiciário, decidindo sobre sua aplicação, também governam.

O presidente está ainda sujeito a fortes influências:

– internamente, do Pentágono e das forças de segurança;

– externamente, dos lobbies pró-Israel, da indústria bélica, das corporações de modo geral e, da imprensa, entre outros.

Todos estes elementos formam o chamado “sistema.”

Barack Obama foi eleito com a promessa de que iria controlar o sistema e promover uma grande e substancial mudança.

Esperava-se dele reformas na saúde, defesa dos interesses das classes trabalhadoras, redução de privilégios dos mais ricos, garantia dos direitos civis e uma política externa de paz, justiça e respeito ao direito internacional.

Abandonando o intervencionismo típico do governo Bush.

De positivo, Obama tornou a saúde acessível a todos, cortou as vantagens fiscais dos 1% mais ricos e está tentando elevar o salário-mínimo.

Mas a mudança, até agora, parou aí.

O governo Obama continua colocando a segurança acima dos direitos individuais.

Como fez o governo Bush, sob o pretexto de proteger o país na guerra contra o Terror.

Apesar de Obama ter prometido fechar Guantánamo em 1 ano, a prisão continua aberta, mais de 5 anos depois.

Ele alega que o Congresso o impediu.

É apena meia verdade.

O presidente ajudou, ao assinar ordem executiva, condenando 46 detentos a permanecerem presos indefinidamente, sem direito a julgamento.

Sua desculpa: seriam elementos de alta periculosidade que num processo legal, escapariam por ausência de provas…

Também por sua ordem, 89 prisioneiros iemenitas,  inocentados por uma comissão criada por ele próprio, tiveram sua soltura revogada.

Motivo: um nigeriano egresso de Guantánamo fora preso em vias de praticar um atentado, além do fato da al Qaeda estar muito ativa no Iemen…

Pagaram os justos pelos pecadores, “princípio” costumeiramente adotados em regimes repressivos.

A favor de Obama, lembro que, em maio de 2013, anunciou medidas para começar a cumprir sua promessa de fechamento de Guantánamo.

De fato, diversos suspeitos inocentados já foram soltos e novas leis suprimem alguns obstáculos ao fim da prisão.

Mas Obama fez algo talvez pior do que suas ações e omissões em Guantánamo.

Ele assinou projeto do Congresso tornando lei o poder do presidente de prender suspeitos de ajudar o terrorismo, sem direito a julgamento e sem prazo para sua detenção.

Desde a Magna Carta, imposta pelos ingleses ao rei João Sem Terra, na Idade Média, no direito de nenhum país civilizado alguém pode ser encarcerado, sem condenação por um julgamento legal.

Obama poderia vetar, mas não o fez, talvez pressionado pelos setores de segurança  e/ou para conseguir a boa vontade dos parlamentares republicanos, coisa que jamais aconteceu.

Uma lei assim, nem Bush teve coragem de fazer.

Mas Obama marcou um gol contra seu antecessor ao proibir as renditions do programa Bush. No qual a CIA seqüestrava suspeitos no estrangeiro e os levava por avião a outros países onde poderiam ser interrogados e torturados, sem problemas.

E também baniu as torturas, inclusive o famoso waterboarding aprovado por Bush e celebrado por seu vice, Cheney.

Porém, apesar das proibições, ainda há casos de aplicação no governo Obama dessas práticas do governo Bush.

As renditions foram reeditadas no ano passado, quando agentes americanos seqüestraram um suspeito na aliada Líbia e o levaram para interrogatório num navio e julgamento nos EUA.

E torturas continuaram no campo de prisioneiros de Bagram, no Afeganistão, conforme o presidente Hamid Karsai.

Ações violentas e hipócritas do exército e da diplomacia americana, especialmente nas guerras do Iraque e do Afeganistão, foram denunciadas pelo soldado Bradley Manning.

Apesar de ter prometido ser o governo mais transparente da história americana, Obama mandou prender Manning.

Ele passou 11 meses sob custódia em condições  que a ONU classificou como tortura.

Embora alertado, Obama preferiu confiar nos desmentidos do exército – sequer investigou o caso.

No processo, o governo o enquadrou no Espionage Act, criado em 1917 para punir espiões durante a primeira Grande Guerra.

E Manning acabou sofrendo uma pesada pena de prisão.

Até agora o Espionage Act  foi aplicado 9 vezes – 6 somente por Obama, para processar jornalistas e funcionários que revelaram podres do governo.

Espionagem quem está fazendo é Obama, grampeando telefones e computadores de pessoas e empresas dos EUA e de todo mundo, inclusive chefes de Estado amigos.

Edward Snowden, que denunciou esse programa desleal e violador da privacidade das pessoas e governos, está sendo perseguido pelo governo americano.  Que exige que a Rússia o entregue aos EUA para ser processado e pressiona os demais países para não lhe darem asilo.

Na maioria dessas situações, Obama violou não só as leis internacionais, quanto a Constituição do seu país, apontada como modelo na defesa dos direitos individuais.

Na política internacional, fez o mesmo, ao defender os interesses de Israel (especialmene) e do complexo industrial-militar.

Quem os representa são os parlamentares, especialmente republicanos, fortemente influenciados pelos lobbies pró-Israel e pró-guerra, em geral unidos.

Nesse contexto, a paz perde terreno, apesar do presidente  proclamar estar no centro de suas preocupações.

Obama alega que acabou com as guerras do Iraque e do Afeganistão.

Não é bem assim.

Foi o governo Bush que, a contra-gosto, concordou com a saída das tropas num prazo certo.

Obama fez o possível para que 10 a 20 mil soldados ficassem para treinar os soldados iraquianos, conter a oposição e manter o governo de Bagdá na linha. Longe das seduções do vizinho Irã.

Como o governo do Iraque não topou, o exército americano teve de sair.

Foi mesmo Obama quem negociou a partida das tropas do Afeganistão para fins de 2014.

Mas ele deseja que seja apenas parcial, permanecendo cerca de 10 mil até 2024 e até além desse prazo. Com os objetivos de treinamento do exército local, ataques pontuais contra os rebeldes, além de ficar de olho no governo local. Também acessível aos acenos diplomáticos iranianos.

Portanto, do que depender de Obama, soldados americanos continuam na luta.

Como o presidente afegão Hamid Karsai recusa-se a assinar o acordo de retirada, o exército americano terá mesmo de embarcar de volta. Todo ele.

Graças a Karsai, não a Obama.

Não foi por aí que o presidente mostrou seu espírito de paz.

Nem por espalhar forças militares americanas em 134 nações de todo o mundo – enquanto o intervencionista Bush se satisfez com 64.

Obama, mais uma vez, seguiu os passos de Bush, ao continuar o lançamento de drones para matar talibãs.

Só que superou o “mestre” – enquanto Bush promovia 1 ataque de drones  cada 4 meses, Obama foi muito além : 1 ataque cada 4 dias.

Como nem Bush, nem Obama são infalíveis, morriam muitos civis nesses ataques.

Entre 300 e 900, para Robert Fisk (o mais respeitado correspondente no Oriente Médio). 957, para a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão – até 2011.

É verdade que a partir de 2013, Obama diminuiu o número dos vôos da morte e tomou precauções para que fossem menos letais para civis incautos.

É também verdade que há casos denunciados – e não poucos – de drones atacando também quem surge para socorrer ou enterrar as vítimas. O que não deixa de ser um tanto cruel.

Entusiasmado com os drones (mataram mais de 2.400 suspeitos), Obama ordenou que passassem a incluir o Iemen, a Somália e o Afeganistão nos países “contemplados” por seus ataques.

Os drones são universalmente condenados por violarem os direitos humanos dos civis e a soberania dos países atingidos, todos eles aliados dos EUA.

Várias investigações da ONU comprovaram a brutalidade de sua ação e o pavor em que vive a população do Vaziristão, principal alvo no Paquistão.

O governo paquistanês já pediu várias vezes o fim do uso desta arma, sem que Obama atendesse.

Por isso, a ninguém espantou recente pesquisa no país em que 74% do povo  classificou os EUA como inimigo, considerando Bush e Obama como “a mesma coisa.”

A alternativa militar esteve próxima de sair da mesa das opções americanas no conflito da Síria.

Apesar da ONU ainda estar investigando quem usara armas químicas contra Ghouta, Obama concluiu por conta da CIA que Assad era o culpado.

E pediu ao Congresso apoio para bombardear Damasco.

Aí, seus planos começaram a fazer água.

Pesquisa mostrou que a maioria dos americanos não queria guerra.

A Câmara dos Comuns inglesa rejeitou idêntico pedido do premier Cameron.

E os votos dos senadores democratas progressistas, mais os dos republicanos contrários a tudo que Obama propõe, anunciavam derrota certa.

Obama teve de desistir.

Seu prestígio foi salvo por Putin que propôs a destruição do arsenal químico de Assad.

Obama teve de concordar e ainda posou de defensor da paz…

Coisa que ele ainda está longe de conseguir na Palestina.

Parece impossível já que Netanyahu só admite a independência palestina em condições que

jamais serão aceitas.

Tem por si poderosos aliados: a maioria absoluta dos senadores e representantes americanos, os poderosos lobbies pró-Israel – especialmente a milionária AIPAC- e a boa  vontade da maioria das redes midiáticas.

Durante sua campanha eleitoral, Obama declarou-se favorável à independência da Palestina.

No início do seu primeiro mandato, até que tentou fazer alguma coisa.

Pressionou Netanyahu durante muitos meses para parar de criar novos assentamentos, tomando terras palestinas e dificultando, assim, o processo de paz.

Conseguiu, no máximo, uma interrupção parcial, de 6 meses, que não deu em nada.

Aí, Obama parece que desistiu.

Enquanto isso, os EUA continuaram a política de Bush de defender incondicionalmente os interesses israelenses na ONU e outros fóruns internacionais.

Inúmeras vezes, os americanos vetaram no Conselho de Segurança medidas contra repetidas violações dos direitos humanos dos palestinos pelo exército israelense e de direitos internacionais, como a anexação por Israel do território sírio de Golã.

Na guerra de Gaza, o inquérito da ONU, presidido pelo juiz judeu Goldstone, apontou crimes de guerra praticados pelo exército de Israel. Submetido à Comissão de Direitos Humanos da ONU, foi sabotado pelos EUA, que chegaram a forçar Mahmoud Abbas, Presidente da Autoridade Palestina, a retirar seu apoio.

 

No Conselho de Segurança da ONU, Obama conseguiu melar uma investigação oficial do caso de Gaza. Primeiro, sustentou que Israel é que deveria fazê-la (seria a raposa investigando a matança de galinhas no galinheiro…).Como se decidiu que os palestinos também deveriam fazer sua investigação, as conclusões foram evidentemente opostas. E o empate deu em nada…

 

No massacre do navio que levava socorros a Gaza, enquanto países do mundo inteiro reprovaram a ação israelense, os EUA limitaram-se a “deplorar”. O inquérito da ONU foi praticamente anulado  pela formação da comissão.

Ao lado de um representante de Israel, um da Turquia e um neozelandês, foi  escolhido o ex-presidente colombiano Uribe, o maior aliado dos EUA na América Latina, cujas credenciais eram graves violações dos direitos humanos.

Talvez a maior sujeição do governo Obama a Israel foi a campanha contra a admissão da Palestina à ONU, como membro integral.

Netanyahu não admitia de forma alguma, já que representaria um poderoso impulso na independência dos palestinos.

Obama não só somou com Israel publicamente como  envolveu-se numa campanha de convencimento dos demais membros do conselho, chegando a telefonar para o presidente da Bósnia pressionando-o contra a pretensão palestina.

Empenhou-se também em impedir que a Palestina fosse aceita pela UNESCO e – mais importante – pela ONU, como  Estado observador.

A justificação foi que somente com negociações diretas a independência palestina seria possível.

Apesar de isso estar sendo tentado há cerca de 20 anos – sem sucesso algum.

Israel também se opunha,  pois seria um reconhecimento mundial da Palestina como país independente e lhe daria o direito de acionar os israelenses pelas suas violações das leis internacionais no Tribunal Criminal Internacional.

Como se sabe, desta vez os palestinos ganharam.

No começo do seu segundo mandato, em 2013, Obama pareceu querer redimir-se e provar a tese das negociações como único meio para conseguir paz na Palestina.

Agora, ele tem menos a temer de Israel e dos congressistas que dizem amém a Netanyahu. Como pelas leis americanas, um presidente não pode se reeleger duas vezes, Obama ficou  mais livre para governar do seu jeito.

Não tem mais necessidade de fazer concessões com objetivos eleitorais.

Talvez por isso, ele ordenou a seu secretário de Estado, John Kerry, que promovesse contatos diretos entre israelenses e palestinos para negociarem a paz.

Por enquanto, Netanyahu está criando obstáculos difíceis, através da expansão contínua dos assentamentos.

A novidade é que Kerry parece estar se comportando de maneira imparcial, pois os dois lados se queixam dele.

Mas, tanto os representantes palestinos, quanto os israelenses, tem se revelado bastante pessimistas.

O contrário acontece nas negociações de paz com o Irã.

Depois de ter sido o principal algoz dos iranianos, duro aplicador das mais destrutivas sanções que golpeiam seu povo, Obama mostra-se flexível.

Claro, tem em Rouhani, o presidente iraniano, um interlocutor bem intencionado. Cuja ação moderada está mudando o país dos aiatolás.

Mas Netanyahu, o lobby pró-Israel e o complexo industrial-militar americano ainda não estão vencidos.

Contando  com a maioria do Senado e da Câmara dos Representantes, eles tem a faca e o queijo nas mãos para impedir um acordo final na questão nuclear iraniana.

Até agora, Obama tem impedido a votação de medidas que acabariam com o acordo e, possivelmente, conduziriam a uma guerra, tão desejada por Netanyahu e o war party.

Claro, em último caso, Obama pode vetar as decisões belicistas do Congresso.

Não se sabe se ele fará isso. Ou, se o fizer, se o seu veto será mantido pelos congressistas.

Um governo deve ser avaliado pelo que ele faz, não pelo que gostaria de fazer.

Por enquanto, o governo Obama pouco fez para justificar as esperanças postas nele.

Não sei – nem ninguém pode garantir que sabe – se ele foi fraco, oportunista ou pragmático, ao lidar com as poderosas forças do sistema.

Pelo que fez até agora, longe de ter mudado o sistema, Obama é que foi mudado por ele.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um comentário em “A desilusão americana.

  1. Caro Luiz, mais uma vez rendo homenagem ao seu texto, que acho antológico, para programas de formação em ciência política em educação para a cidadania. Você faz um estudo de caso que levanta uma série de questões para compreender os condicionantes de qualquer governante. Tenho um sonho de um dia montar um curso como esse – assim como um curso de formação em economia política, que acho mais fundamental ainda para a compreensão sistêmica do mundo em que vivemos. Mas, voltando à ciência política e à análise do Obama, dou uma dica de um livro seminal, não traduzido no Brasil. “Essence of decision”, de Graham Allison, que analisa a crise dos mísseis de Cuba em 1962. O quadro de referência que ele traz certamente ajudará também a entender o fenômeno Obama. Resumo na Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Essence_of_Decision

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