As aparências não enganam

Pelo seu passado, Allawi parecia uma escolha nada adequada para chefiar o governo que levaria o Iraque à democracia. Líder do partido de Saddam desde os tempos universitários, estudou Saúde Pública em Londres pago pelo governo.

Ali, segundo familiares de sua ex-esposa (citados pelo Dr. Haifa-al-Azawi, iraquiano-americano), “gastava seu tempo negociando com assassinos que faziam o trabalho sujo do governo”.

Caindo no desfavor de Saddam, teve de emigrar. Em Londres, ligou-se ao serviço britânico de inteligência, o MI-6, e à CIA, fundando uma organização de exilados anti-Saddam, o INA. Com suporte técnico e financeiro da CIA, o INA promoveu atentados terroristas a bomba em Bagdá.

Caberia ao representante da ONU, Lakdar Brahmi, articular a constituição do governo interino iraquiano. Ele queria que fosse formado por técnicos respeitados em todo o país. Mas, através de “seu homem no Iraque”, os Estados Unidos impuseram o nome de Allawi para primeiro-ministro. A ONU curvou-se, logo em seguida, Brahmi renunciou. Para justificar a opção americana, Kenneth Pollack, antigo analista do Irã e Iraque na CIA, lembrou um dito popular: “Mande um ladrão para prender outro ladrão”.

No entanto, logo após sua nomeação, Allawi fez nascerem esperanças que representariam uma solução positiva… Declarou-se pelo fim rápido da ocupação militar. Apelou a todos os partidos e grupos que o ajudassem nos seus esforços pela paz e pela reconstrução do país.

Até 30 de junho, sendo senhores do Iraque, os militares da coalizão tinham direito à extraterritorialidade, isto é: não estavam sujeitos às leis locais, mas às dos seus países. Mas George Sada, porta-voz de Allawi, afirmou oficialmente que eles passariam a ter “os mesmos direitos e poderes de qualquer membro da estrutura militar que trabalhará sob a supervisão do governo iraquiano”.

Sada foi mais longe: prometeu anistia aos rebeldes, pois, “se ele (o rebelde) se opunha aos americanos, isso seria justificado porque era uma força de ocupação”.

Tudo isso trouxe uma reversão das expectativas. O moderado aiatolá Sistani, o mais importante líder xiita, pediu boa vontade para com o novo governo. O rebelde Al-Sadr, principal adversário das forças americanas, foi nessa direção, aventando mesmo a idéia de concorrer às eleições do ano que vem. E a população iraquiana, em pesquisa, manifestou confiança na ação de Allawi, em sua maioria (61%).

Mas, em pouco tempo, as esperanças começaram a se desvanecer.

Allawi apoiou publicamente o bombardeio americano de uma casa em Fallujah, onde haveria terroristas estrangeiros, o qual causou a morte de 22 pessoas (todos iraquianos), inclusive mulheres e crianças. Anunciou uma nova lei para “combater o terrorismo” que dá ao governo, em situações de emergência, poderes típicos dos regimes ditatoriais. Poderá suspender o “habeas-corpus”; restringir o direito de ir e vir e de reunião; impor o toque de recolher; dissolver associações; congelar ativos financeiros de suspeitos; interceptar e censurar correspondência, entre outras medidas. Foi comunicado também que a pena de morte seria restaurada.

Coerentemente com essas novas posturas, foi fechada a sede da Al Jazeera, “por encorajar criminosos e gângsters” ao exibir vídeos dos reféns de seqüestros. Única emissora de TV independente do oriente Médio, a Al Jazeera era uma pedra no sapato das autoridades da coalizão. Além de constantes críticas, a Casa Branca chegou a pressionar o governo do Qatar – sede da Al Jazeera – a cortar o financiamento público à emissora.

Quanto à extraterritorialidade dos soldados das forças de ocupação, nada aconteceu, continua valendo. Pior: poderá estender-se aos funcionários civis estrangeiros.

A esperada anistia limitou-se a atingir apenas os insurgentes que ainda não estão sendo processados e que não mataram soldados da coalizão. Através dela, Allawi esperava enfraquecer o campo inimigo, atraindo os “patriotas honestos” e deixando os terroristas sozinhos. Mas dificilmente terá êxito.Que garantias terão aqueles que aceitarem seu apelo de que não serão perseguidos ou submetidos a violentos interrogatórios (Abu Ghrabi não foi esquecida)? Além disso, ficariam de fora muitos combatentes que infligiram baixas aos anglo-americanos sem serem membros de agrupamentos terroristas. Como a milícia Mahdi, dos comandados de Al Sadr, por exemplo. Depois de travarem duros combates contra as forças de ocupação durante todo o mês de abril na cidade de Najaf, voltaram a lutar em agosto. Eles e os americanos se atribuem reciprocamente a culpa pelos disparos iniciais.

Numa breve trégua, Allawi foi a Najaf solicitar que Mahdi entregasse suas armas e se retirasse em paz. Al Sadri recusou-se, rompendo com Allawi e acusando-o de ter autorizado o bombardeio americano dos subúrbios da cidade. Entrincheirados em Najaf, cidade santa dos xiitas, os milicianos de Al Sadr, equipados apenas com armas leves, esperam o ataque das forças inimigas, que será pesado, com aviões, blindados e helicópteros.

Allawi já colocou os soldados e policiais iraquianos à disposição dos americanos.

Esse tipo de atitudes não é o que os “patriotas honestos” esperavam dele. Mas sua posição era muito difícil. Como disse a BBC: “ele terá poderes muito limitados que não significam soberania no verdadeiro sentido da palavra”. Para manter-se no poder, depende de forças estrangeiras que ocupam o país. Como as receitas do petróleo já estão comprometidas para o pagamento de contratos com multinacionais, ele não tem dinheiro para governar – depende das verbas da reconstrução, cuja chave do cofre está em poder do embaixador americano.

Assim, não é fácil para Allawi enfrentar o pessoal de Bush, protestando contra bombardeios de casas e de cidades, negando-se a cercear a imprensa e a oposição e buscando a “paix de braves” com os “patriotas honestos”, através de uma gradativa conquista de posições, que permita eleições realmente livres em janeiro de 2005.

Na verdade, não se sabe se é a extrema dificuldade ou a falta de vontade política que faz Allawi afastar-se cada vez mais desse caminho.

Recentemente, o jornal “The Herald” revelou algo que não fica bem para um homem investido na função de construir uma democracia. Pouco antes da posse de Allawi, ele teria assassinado pessoalmente a tiros de pistola seis suspeitos de terrorismo no centro de segurança de Al-Amariyah. O escritório do primeiro-ministro negou o fato. Mas as duas testemunhas do jornal foram ouvidas separadamente, sem contradições. Todas disseram que, antes da execução, Allawi falou a policiais presentes que ia mostrar como lidar com insurgentes. Ambas, segundo o jornal, aplaudiram o ato de Allawi. Uma delas considerou que os terroristas mereciam…

Entrevistado pelo ‘The New Yorker’, Vincent Cannisatraro, ex-membro da CIA, declarou: “se vocês estão me perguntando se Allawi tem sangue em suas mãos dos dias em Londres, a resposta é sim. Ele era um agente Mukhabarat (serviço de inteligência) pago pelos iraquianos e estava envolvido em coisas sujas”.

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