A tempestade depois da bonança

A vitória na Segunda Guerra do Golfo fora rápida e fácil. O governo Bush via tudo cor de rosa. Rumsfeld falava em reduzir o exército americano de 135 mil para 30 mil homens até meados de setembro. Mas logo vieram atentados, emboscadas, guerrilhas, num crescendo contínuo que, em abril, chegou a seu clímax: 110 americanos mortos somente até o dia 20. Mais do que em toda a guerra. E, o que é mais sério, os insurgentes saíram das sombras para atacar as tropas da coalizão nas ruas de Bagdá, Bassra, Ammaret, Nassirya, Kut, Fallujah e Najaf, onde se concentram 77% da população do país. Várias destas cidades chegaram a ser tomadas. Os americanos tiveram de jogar todo o seu superior poderio bélico para expulsarem os rebeldes.

Mas, em Nadaf e Fallujah, os desdobramentos foram diferentes. E também muito mais graves. Em Nadaf, cidade sagrada dos xiitas, as autoridades militares americanas fecharam o jornal do líder radical, o aiatolá Al-Sadri, sob acusação de estimular a subversão, e prenderam um dos seus principais assessores. Ora, os xiitas de Al-Sadri possuem uma milícia armada, a Mehdi. Apoiados pela população indignada, eles se revoltaram, assumindo o controle da cidade. 

Os americanos reagiram violentamente. Seu comandante, o general Sanchez, declarou que iriam “prender ou matar Al-Sadri”. Depois de sangrentos choques, 2.500 fuzileiros navais não conseguiram reconquistar Nadaf. Chegou-se a um cessar fogo negociado pelos líderes moderados iraquianos. Mas o impasse não foi resolvido. O general Sanchez alterou seu discurso. Agora, limita-se a afirmar que: “mataremos Al-Sadri se o encontrarmos em combate”.

Mas nada se comparou aos horrores de Fallujah. Tudo começou com o assassinato dos quatro seguranças de comboios americanos, cujos corpos foram mutilados, queimados e pendurados numa ponte. Esta brutalidade provocou um intenso desejo de vingança por parte dos militares dos Estados Unidos, bem expresso na frase do general Mark Kimmit: “Eles (os fuzileiros) vão caçar os responsáveis por este ato bestial. Será na hora e locais de nossa escolha. Será metódico, preciso e esmagador”.

E, de fato, o ataque americano foi esmagador. Utilizou aviões, helicópteros, tanques, blindados e mísseis. Em poucos dias, 600 pessoas foram mortas e 1.700 feridas. Dentre os mortos, pelo menos 160 eram mulheres (que no Iraque não lutam) e 140 crianças. Nem todos os 300 homens poderiam ser combatentes, pois muitos eram velhos e, pelo menos uma parte, civis desarmados. Dois estádios foram transformados em cemitérios. O único hospital na zona dominada pelos iraquianos foi bombardeado e destruído, assim como várias ambulâncias. Franco-atiradores localizados em pontos altos, inclusive minaretes de mesquitas, alvejavam todos os iraquianos que se aproximavam do hospital que sobrou, impedindo o acesso de doentes e feridos.

Antes de atacar, os americanos permitiram que as mulheres e crianças saíssem da cidade (foram mais de 100 mil). Mas os homens foram obrigados a ficar – afinal, poderiam ser guerrilheiros… O massacre de Fallujah provocou reações até mesmo da parte dos aliados. 200 soldados do novo exército iraquiano recusaram-se a atirar contra seus patrícios. Um alto oficial inglês, citado por um site de notícias independente, o SF Bay Área IMC, declarou: “As tropas americanas não vêem o povo iraquiano como nós. Eles não se preocupam com as perdas de vidas iraquianas”. Abdel Karim Mahomed, ex-guerrilheiro anti-Saddam, hoje membro do Conselho de Governo do Iraque: “Suspendo minha participação no conselho até que esta sangria pare”. Adnam Pachak, apontado por Bush como um dos principais líderes do país: “Essas operações foram uma punição em massa….Não é justo punir todo o povo de Fallujah. Consideramos as operações dos americanos inaceitáveis e ilegais”.

As batalhas de Najaf e Fallujah, na verdade, foram duas pesadas derrotas dos Estados Unidos no pós-guerra em função das suas conseqüências. Os xiitas, que, com exceção dos seguidores de Al-Sadri, eram neutros diante da luta armada, tendem agora a apoiar e até participar dela. O próprio Al-Sadri e sua milícia, embora defendessem a expulsão do exército americano, tinham até então se limitado a realizar protestos e passeatas. Com a experiência e o ódio adquiridos nos recentes combates, devem fatalmente voltar a empunhar armas contra a coalizão. 

Xiitas e sunitas, historicamente, têm se combatido sempre. Em Fallujah e Nadaf, eles lutaram lado a lado, aprenderam a unir-se contra o inimigo comum, deixando suas divergências para mais tarde. Sunitas e xiitas agora atuando coordenados serão adversários muito mais poderosos.

A violência das tropas americanas e seus generais, que tratam como iguais os terroristas da Al-Qaeda e os iraquianos que lutam pela libertação do seu país; que não hesitam em represálias violentas atingindo civis inocentes (há 8.000 suspeitos presos, homens e mulheres, sem direito a advogado e julgamento, muitos por serem apenas parentes ou amigos de guerrilheiros); as inúmeras casas bombardeadas; tudo isso desgasta cada vez mais a imagem dos Estados Unidos, e torna problemática a conquista dos corações e mentes iraquianos.

Tentando consertar as coisas, Bush declarou aceitar que a ONU, ouvidas as principais forças políticas e religiosas e, é claro, os Estados Unidos, escolherá o governo provisório que assumirá o país em 30 de junho. Além de governar o país até 2005, esse governo deverá organizar as eleições de janeiro (talvez) deste ano. Não está claro se lhe caberá também a elaboração da nova Constituição do Iraque democrático. O atual Conselho de governo apresentou há pouco uma Constituição provisória. Mas ela foi rejeitada pelos xiitas e não se sabe se irá ou não vigorar.

O certo é que, mesmo depois que Paul Bremer, o administrador de Bush, entregar o governo aos iraquianos, o exército americano continuará no país, “para assegurar a ordem e a construção da democracia”, com plena autonomia de operações. Isso limitará e muito a soberania iraquiana. Suspeita-se também que o futuro governo terá de respeitar acordos comerciais firmados pela administração americana com empresas multinacionais, que poderão deixar a economia fortemente comprometida.

Avizinha-se, assim, uma série de situações que podem gerar crises. Xiitas e sunitas, se confirmarem sua união, tendem a novas e mais agressivas demonstrações de rebeldia. E Al-Sadri não deverá ficar inativo.

Como o exército americano irá lidar com ele? Deixar um inimigo agressivo solto será assumir um alto risco. Prendê-lo poderá desencadear uma nova rebelião armada, possivelmente ampliada com o apoio sunita e do aiatolá Sistani, o maior líder xiita vivo.

No começo da ocupação, Sistani recomendou a seus fiéis que ficassem de fora. Natural, ele esperava que, com a democracia, seus xiitas, sendo a maioria da população (60%), chegariam ao poder. Posteriormente, foi se desencantando das boas intenções americanas e passando a pregar a saída urgente deles. Sua oposição acentuou-se ao recusar a Constituição provisória e, agora, ao estender sua proteção a Sadri. A prisão deste líder radical provavelmente levaria Sistani a um endurecimento ainda maior, colocando os americanos em situação difícil, pela massa de seguidores com que ele conta…

Sistani também será uma pedra no caminho dos planos de Bush na discussão das várias questões institucionais previstas: a Constituição provisória, a escolha do Governo provisório, a Constituição democrática, as novas eleições, o relacionamento com o exército e a embaixada americana, os acordos econômicos já firmados com empresas americanas etc.

Todas estas batalhas serão certamente muito mais difíceis do que as da 2a. Guerra do Golfo. Dias, meses, talvez anos de tempestades aguardam Bush e até Kerry, se ganhar as eleições de novembro e não tiver uma varinha mágica.

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