“Se você quer ver o paraíso, veja a televisão do Uzbequistão, se quer ver o inferno, vá ao Uzbequistão”. Segundo o London Telegraph, este é um dito corrente no Uzbequistão de hoje.
Há 15 anos no poder, o presidente Islam Karimov vem governando com punho de ferro. O qual, com freqüência, abate-se sobre os opositores – há 6 mil presos políticos nesse país que não têm nenhum tipo de liberdade de imprensa, reunião, religião, do que for.
“Eu amo meu povo”, declarou Karimov, recentemente. Claro, com exclusão dos que defendem a idéia de um regime islâmico: o terrorista IMU (Movimento Islâmico do Uzbequistão) e o legalista Hirb ut Tahrig (Partido da Libertação), incluindo-se aí tanto seus membros, quanto familiares, amigos e suspeitos. Em 2002, o professor Theo van Boven, enviado especial da ONU, afirmou que a tortura era praticada no país em toda a parte e sistematicamente. Para dar uma idéia, o ex-embaixador da Inglaterra, Craig Murray, relata, em artigo no The Guardian de 16 de maio, o caso de Muzaraf Avazov e Husnidin Aslimov que foram fervidos vivos até a morte na notória prisão de Jaslik – da qual, dizem, ninguém volta.
As chances de mudar esse governo não são boas, embora haja eleições. Nas últimas, por exemplo, em dezembro de 2004, os partidos políticos da oposição foram proibidos de participar.
Empenhado numa cruzada pela democratização do mundo, particularmente dos ex-membros da União Soviética – vide os “cases” das revoluções pacíficas da Geórgia e Ucrânia – Bush teria todas as razões para condenar o governo Karimov. No entanto, eles são amigos e aliados.
Altos dirigentes dos Estados Unidos têm visitado o Uzbequistão para louvar os bons serviços do seu presidente. Rumsfeld elogiou a sua “maravilhosa cooperação”. O então secretário do Tesouro, Paul O´Neil, aplaudiu o “aguçado intelecto e intensa paixão” de Karimov em melhorar a vida dos uzbeques. Nenhum pediu eleições livres…
A explicação para esse paradoxo veio de Cordell Hull, secretário de Estado, em 1940, ao responder críticas às boas relações do governo americano com esse “filho da puta de Trujillo”: “Eu sei que ele é filho da puta, mas é nosso filho da puta”.
Karimov também é “deles”. Em 2001, permitiu que os Estados Unidos instalassem uma grande base aérea no Uzbequistão, para uso na guerra do Afeganistão e na proteção dos campos de petróleo e gás e do oleoduto do Cáucaso, essenciais à economia americana.
Além disso, o Uzbequistão é um dos países praticantes da tortura que recebem suspeitos de terrorismo enviados pelos Estados Unidos e Inglaterra para serem interrogados sem “restrições legais”. Ao protestar contra isso (“a Inglaterra está vendendo sua alma”), o embaixador Craig Murray foi chamado de volta a Londres.
A amizade de Karimov está sendo bem paga. Só em 2002, os Estados Unidos deram mais de 500 milhões de dólares, incluindo 120 para ajuda militar e 80 para segurança.
Em 13 de maio, esta amizade foi posta à prova. Um grupo de insurgentes atacou a prisão da cidade de Andijan e libertou 23 empresários tidos como membros do não-violento Hirb ut Tahrig – Partido da Libertação (“terrorista”, para o governo). Na luta, mais 2 mil outros prisioneiros fugiram. Dado o absoluto controle do Executivo sobre o Judiciário (99% dos indiciados são condenados) suas chances de saírem inocentados ou mesmo vivos seriam mínimas. Os insurgentes tomaram alguns prédios públicos e conclamaram a população a uma demonstração de protesto. Logo formou-se uma multidão de cerca de 4 mil pessoas, exigindo liberdade e renúncia de Karimov.
Como o povo fez na Geórgia e na Ucrânia. Só que o governo uzbeque agiu diferente. Chegaram unidades militares em tanques, carros de assalto e helicópteros. Metralhadoras, fuzis e lança foguetes foram disparados contra o povo. Centenas de corpos tombaram, o sangue inundou a praça, os sobreviventes fugiram desesperados.
Comentando o fato, Karimov declarou: “as vítimas não são numerosas porque as tropas não abriram fogo. Minha ordem pessoal foi não atirar nos pistoleiros e tentar resolver o conflito de modo pacifico”. E porta-vozes do governo informaram que os mortos seriam “apenas” 169, em geral terroristas.
Mas observadores internacionais e entidades de direitos humanos corrigiram esses números para mais de 700 mortos, entre eles velhos, mulheres e crianças, e quase 2 mil feridos. Esse massacre, muito pior do que o da praça Tianamen, chocou o mundo. A União Européia e a ONU apressaram-se a condenar o governo. Até a Inglaterra de Blair somou-se à repulsa geral. A princípio, os Estados Unidos, mostraram-se comedidos.
Scott McClellan, porta voz da Casa Branca, deplorou os choques mas disse que ambas as partes deveriam buscar a democracia “através de meios pacíficos e não de violências”. Ou seja: colocou algozes e vítimas como co-responsáveis pelo massacre. Com o aumento do clamor mundial, a ONU e a NATO exigiram um inquérito externo. Karimov negou.
O governo Bush viu-se numa situação difícil. O objetivo atual de sua cruzada é derrubar o regime da Belarus, aliado de Putin, substituindo-o por uma democracia pró-americana. Provavelmente através de uma “revolução popular pacífica”, sob seu beneplácito, como foi na Geórgia e na Ucrânia. Mas, aí seria difícil usar o mote da “democratização”, apoiando um regime muito mais despótico e cruel do que o da Belarus. Sem cruz a cruzada perderia a força.
Talvez por isso, a Casa Branca passou a pedir “reformas reais” e “defesa de direitos humanos” a Karimov. Ele até pode aceitar estas recomendações. Mas, só em parte: eleições livres, com participação da oposição, nem pensar, seria derrota certa.
Quanto a Trujilo, 20 anos depois das explicações de Cordell Hull, ele se tornou inconveniente à nova política americana. Caso não saibam, acabou assassinado.