AS VINHAS DA IRA.

Ninguém esperava nos EUA a vitória de Trump, como ninguém espera ser atropelado ou contrair uma doença rara.

Primeiro porque todas as pesquisas indicavam vitória de Hillary Clinton.

Segundo, porque seria inadmissível que o eleito fosse um indivíduo racista, xenófobo, misógino, anti – muçulmanos, anti-imigração, anti-mexicanos… ideias  que em toda parte seriam vistas com repulsa. A não ser é claro numa conversa de vestiário…

Ao lado de Hillary Clinton estavam todo o Partido Democrata, incluindo o bem-visto presidente Obama; grande parte dos principais nomes do Partido Republicano; os neo-cons, intelectuais conservadores que apoiaram George W.Bush; a grande mídia em peso e a maioria da imprensa alternativa liberai ou de esquerda.

E, o que era fundamental: o apoio maciço do establishment econômico.

O Crowdpac, que acompanha as doações empresariais, divide a economia americana em 10 categorias industriais. Nada menos do que 9 delas doaram mais dinheiro a H.Clinton do que a Trump.

Mesmo no setor imobiliário, onde o republicano atua, Hillary saiu-se melhor: 5,5 milhões de dólares versus 1,2 milhões, de acordo com o Centro de Políticas Responsáveis.

Até o fim de julho, a campanha de Clinton levantou mais de 200 milhões de dólares entre os 1% mais ricos, enquanto Trump só conseguiu 63 milhões.

Neste mesmo período, somente o establishment financeiro (bancos, seguros e financeiras) doou a Hillary 58,4 milhões de dólares, contra apenas 5,4 milhões atribuídos a Trompa. Que foi rejeitado pelos mais tradicionais e poderosos contribuintes do Partido Republicano, os notórios Koch Brothers, maiores empresários individuais dos EUA. Essa dupla, pela primeira vez, negou-se a abrir sua carteira a um candidato presidencial republicano, limitando-se a apoiar apenas candidatos ao Congresso.

Sendo claramente uma aliada do establishment, particularmente do financeiro, Hillary Clinton tinha falhas ética sérias- reveladas pelos Wikkileaks; como senadora e secretária do Interior apoiara ou incentivara várias intervenções militares americanas sem motivos justos- na Líbia, Iraque, Honduras e Síria; defende a adoção de políticas agressivas contra a Rússia, inclusive, através da NATO; é defensora incondicional dos interesses do governo de Israel e ultimamente bastante próxima do governo ditatorial saudita.

Para os liberais e progressistas (a esquerda) dos EUA, ela seria um presidente muito mais próximo de Bush do que de Obama.

Mesmo assim, a maioria absoluta deles apoiou Hillary porque o populista de direita Trump parecia bem pior, por suas declarações politicamente mais do que incorretas, que o aproximavam do fascismo.

Mas a massa dos americanos com pouca educação – que inclui tanto a classe média baixa quanto os pobres, viam as coisas de outro modo.

Clinton seria uma representante da classe política, instrumento de poder dos grandes interesses econômicos. Um grupo visto como o responsável por tudo de mal, que o povo americano vinha sofrendo nos últimos decênios.

–  Como as constantes guerras, que há anos as pesquisas mostram serem repudiadas pelo povo. Fato que não incomoda os donos do poder, tanto é que sua candidata, Hillary Clinton, era uma figura conhecida por ter sempre o dedo no gatilho, sempre favorável a posturas beligerantes e intervenções militares.

Segundo recente pesquisa, para apenas 14% dos americanos, a tradicional política americana intervencionista não os deixou mais seguros. Mais de 50% acham que o novo presidente deveria usar menos a força no campo internacional. E 80% sustentam que ele precisaria obter autorização do Congresso antes de colocar a nação em guerra;

– Como a globalização e acordo comerciais duvidosos, especialmente o NAFTA que teria forçado muitas empresas a fecharem suas fábricas nos EUA e mudarem para o México, roubando centenas de milhares de empregos americanos;

– Como a recente crise econômica, suposta obra de interesses financeiros, que, além de aumentar o desemprego, deixou grande parte das famílias das classes média baixa e pobre sem suas casas, suas economias, sem seu futuro. Hoje, na maioria dos lares americanos, os pais já não acham que os filhos terão uma vida melhor do que a deles. Sentem que provavelmente será o contrário;

– Como leis criadas em favor dos mais ricos, ignorando as necessidades dos americanos mais pobres. Segundo o CENSUS, em 2015 , havia 43,1 milhões de americanos pobres e 19,4 milhões vivendo em condições de extrema pobreza, mais gente do que em 2007, antes da recessão;

– Como a proteção aos imigrantes, que conquistam empregos dos americanos, e às minorias, todas elas turbulentas e mesmo assim beneficiadas por programas e leis governamentais.

Apresentando-se como inimigo da aliança entre os establishments político e econômicos, contra uma fiel representante desses grupos, Trump conseguiu capitalizar os ressentimentos e a raiva dos que mais sofrem com os desacertos dos governos.

Em um livro escrito no século 20, The Grapes of Wrath, John Steinbeck, tem um texto verdadeiramente premonitório: “Nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, amadurecem com ímpeto para a vindima.”

A vindima começou em 8 de novembro.

Pelos primeiros nomes sugeridos para as secretarias, dá para antecipar que seus frutos devem ser amargos.

O acordo nuclear com o Irã, o Obamacare e a busca de uma paz justa na Palestina correm sérios riscos.

Convém deixar claro que houve de fato uma revolução nos EUA, com a derrota do establishment político -econômico, que costuma influir fortemente nos governos de Washington.

O presidente Obama, um liberal-progressista, foi obrigado a fazer muitas concessões ao Congresso, dominado pelos republicanos e democratas de direita e pelos lobbies das grandes corporações, das forças armadas e de Israel (em política externa).

Por isso mesmo, Obama nunca foi capaz de levar até o fim as mudanças prometidas.

Teve de ceder em pontos básicos do Obamacare. Através de pressões conseguiu reduzir as violências praticadas pelo governo de Netanyahu, mas a paz na Palestina não foi e nem será conseguida. Fez aprovar algumas restrições ao uso de armas, mas não as mais importantes. Negou-se a bombardear a Síria, mas não a Líbia. Foi o principal responsável pelo acordo nuclear com o Irã, voltou a ter relações diplomáticas com Cuba – mas seu papel foi dúbio no golpe de Honduras.

Se no governo Obama, o establishment freou as medidas mais corajosas do Executivo, no próximo governo deve frear eventuais retrocessos agitados por Trump na sua campanha.

Pois os apetites do establishment americano tem limites. Prefere assegurar uma certa liberdade, se possível trazer alegria ao povo, não deixando que o desemprego e a pobreza o levem ao desespero, além de procurar manter a imagem (um tanto desacreditada) de país defensor das leis e da ordem internacional, protetor das nações fracas.

Trump terá de se enquadrar.

Sendo populista, ele provavelmente escolherá o caminho que a curto prazo agrade ao povo, desde que  não traga grandes problemas a seu governo.

O caminho das concessões.

 

 

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