A notícia do mês foram os ataques a bomba contra dois petroleiros no Golfo Pérsico, em águas territoriais da União dos Emirados Árabes.
Os EUA logo pularam, acusando os iranianos desta malfeitoria, pela voz de do seu secretário de Estado, Mike Pompeo.
Notório falcão, ele garantiu que dispunha de provas insofismáveis.
A mais importante foi divulgada pelo mundo a fora, como decisiva.
Trata-se de um conjunto de video e fotos mostrando um barco, não identificado, cujos tripulantes, não identificados, retiravam algo, não identificado, de um petroleiro…tampouco identificado…
Como ninguém entendeu nada, Pompeo esclareceu que o vídeo mostrava marinheiros de um barco militar iraniano retirando uma das minas magnéticas postadas por eles no casco de um dos petroleiros visados, que não explodira. Queriam apagar as digitais de Teerã no crime.
Experts ouvidos pela revista Newsweek (14 de junho de 2019), desprezaram essa pseudo-evidência.
William Church, durante muitos anos oficial de inteligência dos EUA no Oriente Médio, foi simples e claro: “O vídeo não prova absolutamente nada.”
Os iranianos não iriam ser tão burros para atacar navios da Noruega, um dos raros países europeus amigos. E do Japão, então, um dos principais clientes de petróleo, justamente agora quando seu primeiro-ministro chegara ao Irã para tratar de questões fundamentais do Acordo Nuclear. Se fosse real, o atentado projetaria uma imagem iraniana negativa, de país sem leis, no qual nem o Japão, nem ninguém poderia confiar.
Apesar de sua habitual boa vontade com os EUA, o governo de Tóquio não foi na onda dos falcões americanos. Pediu aos EUA mais evidências da eventual culpa iraniana: as atuais não bastavam (Japan Today, 16 de junho de 2019).
Tripulantes do petroleiro japonês garantiram terem visto um projétil, possivelmente um drone, voando em direção ao navio, pouco antes da explosão (Newsweek, 15 de junho de 2019). Nada de minas magnéticas, portanto.
Outro dirigente europeu, Heiko Mass, ministro do Exterior da Alemanha, foi no mínimo reticente: “O video não é suficiente. Nós podemos entender o que está sendo mostrado, claro, mas para chegar a uma conclusão final, isto não é suficiente para mim.”
Como se esperava, Israel e Arábia Saudita, inimigos jurados do Irã, clamaram que não havia dúvida alguma sobre as culpas do seu desafeto.
Fora eles, o único país que fechou com os EUA foi o Reino Unido, governado pelos conservadores.
Jeremy Hunt, seu secretário do Exterior, afirmou: “É quase certo que um ramo das forças militares iranianas – a Guarda Revolucionário Islâmica – atacou os dois petroleiros em 13 de junho. Nenhum outro Estado ou não-Estado poderia ter sido o responsável.”
Besteira.
Israel, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes poderiam. Seria um jeito de forçar os EUA a apelarem para o jogo bruto contra o arqui-inimigo de todo o grupo.
Um Não-Estado, o ISIS, amaria provocar uma guerra que inundasse o Oriente Médio com sangue americanos e iraniano, para eles, gente igualmente satânica.
Anthony Cordesman, analista do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos, também acha impossível responsabilizar os quatro países pelo duplo ataque, somente através das revelações de Pompeo. Isso apesar de apostar no Irã.
Mas há quem ponha suas fichas nos próprios EUA.
E não se trata de teoria da conspiração, não. O governo de Washington já fez algo semelhante há 55 anos atrás.
Em 1964, era Guerra Fria, e os EUA estavam ajudando militarmente o Vietnam do Sul no seu conflito com o Vietnam do Norte, aliado da então União Soviética.
Todas as ações militares yankees eram secretas, já que formalmente havia paz entre EUA e Vietnam do Norte.
Dando cobertura a uma incursão bélica sul-vietnamita no território do inimigo, o destroier Maddox foi atacado por duas canhoneiras do Vietnam do Norte. Houve uma breve troca de tiros (sem vítimas e com danos mínimos). Como estava em águas territoriais norte-coreana, o Maddox retirou-se para neutras águas territoriais internacionais.
No dia seguinte, o capitão americano julgou ver no radar indícios de um novo ataque partindo da marinha norte-coreana.
Tudo foi devidamente comunicado aos seus superiores e deles f para Robert McNamara, então secretário de Estado.
Ele e o presidente Lyndon Johnson analisaram a questão. No primeiro ataque, o destroier americano estava numa situação ilegal e o inimigo tinha o direito de agir contra intrusos em suas águas territoriais.
No segundo era diferente: como o Maddox passara a navegar em águas internacionais o ataque do inimigo fora ilegal.
Os dois políticos decidiram levar o caso ao Congresso, pedindo autorização para que o presidente declarasse guerra ao Vietnam do Norte, por sua ação contrária ao direito internacional.
Nesse ínterim, o comandante do Maddox examinou melhor as indicações do radar e concluiu que, na verdade, não havia certeza de qualquer ataque, fato que fez chegar rapidamente a seu superior, o almirante Grant Sharp.
Por sua vez, o almirante comunicou à Casa Branca que o segundo ataque era rebate falso. E, portanto, não havia razão para retaliações militares.
Johnson e McNamara não se tocaram.
Estavam perto das eleições e o candidato republicano, Barry Goldwater, crescia nas pesquisas, acusando Johnson de ser mole com os viets. Era uma chance de Johnson se mostrar duro na defesa da honra americana.
E o presidente foi ao Congresso e conseguiu a autorização que desejava: pela resolução do Golfo de Tonkin, o governo de doa EUA poderia declarar guerra aos norte vietnamitas.
Foi o que Johnson fez.
E assim começou a Guerra do Vietnam, onde morreram mais de 1 milhão de soldados e civis vietnamitas e 58.226 soldados americanos.
Em 1971, Daniel Ellsberg, analista militar do Pentágono, divulgou através do New York Times e do Washington Post cópia de um relatório, que mostrava as decisões secretas dos presidentes durante a guerra do Vietnam.
Os chamados Pentagon Papers chocaram profundamente os hearts and minds do povo americana. Como explicou Ellsberg: “os documentos demonstravam um comportamento anti constitucional de uma sucessão de presidentes, a violação dos seus juramentos e do juramento de cada um dos seus subordinados.” Ele os entregara aos jornais na esperança de que sua revelação pudesse ‘‘tirar a nação de uma guerra errada”.
O então governo Nixon procurou barrar a publicação dos Pentagon Papers, mas a Suprema Corre decidiu contra ele.
Tentativas presidenciais de punir Ellsberg, recorrendo à lei de Espionagem, de 1917, e também através de diversas acusações de furto e conspiração foi rejeitada pela Justiça. Se fosse condenado por todas elas, Ellsberg pegaria 115 anos de prisão.
Em, 2005, em The Gulf of Tonkin Incident – 50 years later A Footnote to the History of the Vietnam War, John White apresentou um novo responsável pela declaração de guerra contra o Vietnam do Norte: o Serviço Nacional de Inteligência dos EUA, que teria prestado a Lyndon Johnson informações deliberadamente distorcidas, para caracterizar falsas culpas comunistas.
Seja como for, não acredito que a inteligência americana atual seja mais ética do que a de 1964. E evidentemente, por mais possíveis falhas de caráter de Johnson e McNamara, eles são verdadeiras vestais perto de Trump e seu acólito, Mike Pompeo.
Agora, veja, não digo que o incidente do Golfo Pérsico seja um bis do incidente do Golfo de Tonkin.
Nem que o Irã seja inocente nessa violenta transgressão.
Por enquanto, não se pode concluir nada, faltam provas para haver um julgamento justo. E, como diz o velho samba: ”primeiro é preciso julgar pra depois condenar.”
O certo é que The Donald está usando o evento para convencer os governos dos outros países, particularmente os signatários do Acordo Nuclear do Irã, de que o governo de Teerã não merece confiança, sendo capaz das mais violentas e ilegais transgressões. Portanto, somem com os EUA para destruir esses semi-bárbaros, cujo fanatismo maligno ameaça a humanidade.
E, se for necessário, nos apoiem numa guerra.
Apesar de Trump negar essa hipótese, sua política errática não tranquiliza ninguém.
Nunca é demais lembrar a declaração do Tribunal de Nuremberg, que julgou os líderes do nazismo:
“Iniciar uma guerra de agressão não é apenas um crime internacional; é o supremo crime internacional, diferente apenas dos outros crimes de guerra porque contém em si o mal acumulado de todos eles.”