Anunciado em 2017, o “acordo do século”, que para seu autor, Donald Trump, resolverá o problema palestino, deve , por fim, ser apresentado.
Versões diferentes divulgadas nestes últimos dois anos fazem supor que não passavam de balões de ensaio, usados pela Casa Branca para testar possíveis propostas.
O que tinham em comum eram certas ideias que jamais seriam aprovadas pelos palestinos.
Na verdade, dizem especialistas, nenhuma das duas partes dará seu OK ao “acordo do século”. Suspeita-se que tudo fora combinado para que Netanyahu o aprovasse, contando com a rejeição certa da Autoridade Palestina, o que reverberaria no mundo como uma decisão de “radical irracionalidade.”
Diante desta suposta intransigência, não haveria clima para as partes negociarem a paz numa boa. E a “solução dos 2 estados independentes”, que a comunidade internacional há anos defende, ficaria cada vez mais improvável, se não impossível.
Tanto melhor para Netanyahu.
Apesar de suas declarações em favor da criação de uma Palestina independente ao lado de Israel, ele já provou, por palavras e obras, sequer admitir a viabilidade do sonho palestino.
Em 2015, depois de ter defendido a “solução dos 2 Estados “ no início do seu primeiro mandato, em 2009, ele se retratou: “Penso que qualquer um que estabeleça o Estado palestino hoje e evacue terras está dando espaço para o Islam radical contra Israel.”
Um ano depois exigiu o desarmamento da Cisjordânia como pré-condição de negociações de paz. Diz matéria do The Times of Israel (em 2-12-2017), que o primeiro-ministro israelense foi bem claro, afirmando que a experiência ensinara: somente o IDF (forças armadas de Israel) poderia garantir um desarmamento real da Cisjordânia. “Não, a ONU ou qualquer outra força internacional.”
Passou-se mais um ano, pressionado pelo apoio tardio de Trump aos “2 Estados”, Netanyahu não perdeu o pique: ‘Minha visão de um acordo potencial é que os palestinos tenham todos os poderes para se governarem, mas nenhum dos poderes para nos ameaçar (CNN, 29-9-2018).” Mais adiante, esclareceu: ”O poder chave, que não pode, não pode ficar nas mãos deles. é a questão da segurança…”
O que implicaria fatalmente na exigência de um Estado palestino desarmado. Mesmo, como já se aventou, numa garantia de segurança severa, através do controle por Israel dos espaços aéreo e marítimo, da livre atuação dos serviços de segurança de Telaviv na Palestina e na permanência de unidades militares israelenses em seu território.
Desse jeito, a soberania no novo Estado não iria rolar.
Sem armas e sujeito a autoridades estrangeiras no seu próprio país, um Estado não tem como afirmar sua soberania. Não vejo como os dirigentes palestinos poderiam aceitar uma exigência tão humilhante.
Mas Netanyahu naõ ficou nisso. Coerente com suas verdadeiras intenções, o primeiro-ministro sabotou diligentemente as várias tentativas para se negociar o acordo dos 2 Estados independentes.
Sobe isso, veja o que Obama, então presidente dos EUA, afirmou, em entrevista a rádio de Israel: “As propostas de paz de Netanyahu incluíam tantas advertências, tantas condições que não é realístico pensar que essas condições poderiam ser atendidas em qualquer momento num futuro próximo”.
Agora, quando a solução dos 2 Estados vai somando iniciativas fracassadas e se desvanecendo, cresce a ideia de um só Estado, incluindo Israel e a Cisjordânia.
Há profundas divergências a respeito da sua arquitetura.
De um lado, se fala um único Estado democrático na região, com igualdade para todas as raças e religiões.
Do outro lado, a ideia consiste em simples anexação por Israel da Cisjordânia. Ou mesmo somente de 60% da região, a chamada área C, 60% do território palestino, onde estão as melhores terras e as grandes concentrações de assentamentos.
Quanto ao que sobrar, laissez faire, laissez passer, que continue ocupado pelas forças israelenses até que se pense numa estrutura definitiva, num futuro indefinido.
A primeira solução é aprovada pelos palestinos, árabes cidadãos de Israel, judeus de esquerda ou moderados, além de grupos de direitos humanos. Aceitam mesmo um Estado definido como bi-nacional – judeu e palestino.
Parte da população judaica, dos partidos e, é claro, a coalisão de direita que governa o país, querem a anexação.
Netanyahu procura esconder sua posição favorável, para não aborrecer a maioria dos americanos (inclusive judeus), o Partido Democrata e os europeus. Porém, em fevereiro de 2018, o primeiro-ministro pisou na bola. Através do seu porta-voz, deixou escapar que estava discutindo com os EUA “há algum tempo” projeto de anexar colônias na Cisjordânia ocupada.
Seja como for, nenhuma dessas opções parece viável, atualmente.
A demografia torna a primeira praticamente impossível e ergue obstáculos aparentemente insuperáveis para a outra.
A população judaica de Israel e dos assentamentos chega a 6 milhões e 589 mil habitantes (Israeli Central Bureau of Statistics).
Os palestinos cidadãos de Israel são 1 milhão e 500 mil (Israeli Central Bureau Statistics and Jerlem Municipality).
Os palestinos habitantes da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e estreito de Gaza somam 4 milhões e 88 mil (Palestinian Authority Central Bureau Statistics).
Portanto, existem mais 1 milhão de judeus do que de árabes palestinos.
Uma diferença que tende a diminuir e se inverter rapidamente, pois a população árabe cresce mais depressa.
Daqui há não muitos anos deve haver mais árabes palestinos do que judeus em todo território unificado em Israel.
Nesse momento, os árabes iriam querer e conseguir (pelo voto) igualdade racial e religiosa. Israel deixaria de ser sionista, um Estado do povo judeu, para se tornar um Estado aberto a todos.
Um amanhã totalmente inaceitável pela maioria da população judaica e das forças políticas e econômicas do país.
Os defensores da anexação tem no fator demográfico um obstáculo aparentemente insuperável.
Para manter a maioria e assim o caráter sionista do Estado, teriam de negar cidadania aos moradores árabes. Seria um apartheid escarrado, fascismo sem tirar nem por, certamente repudiado pela comunidade internacional. E mesmo por um número avultado de judeus, não só de Israel, como em todo o mundo.
Pensando nisso, Netanyahu e sua coterie vem desenvolvendo um plano com objetivos firmes: estimular a saída de palestinos para fora do país e tornar quase impossível a aquisição da cidadania pelos que ficarem. Com isso, seria impedido que se tornassem maioria no país, e, condições de derrubar o status quo sionista.
Preparando o terreno para medidas mais duras, em 19 de julho de 2018, o governo e o Knesset aprovaram a Lei Básica (equivale à constituição), estabelecendo que Israel é o Estado-nação do povo judeu.
Numa tentativa de democratizar esse conceito, o Meretz, partido de esquerda, apresentou emenda que dizia: ”O Estado de Israel mantém direitos políticos iguais para todos os seus cidadãos, sem qualquer diferença de religiões, raças e sexos.”
Houve rejeição total. Sequer foi aprovado para discussão pelo Knesset. Apesar de repetir ipsis verbis texto da Declaração de Independência de Israel.
Ben Gurion deve ter tremido no seu túmulo…
Como disse o famoso pianista e defensor de direitos humanos, o judeu israelense Daniel Bueraboin: “… nós temos agora uma lei que confirma a população árabe como cidadãos de segunda classe. Isto é, portanto, uma forma clara de apartheid”.
Mais um motivo para que parte dos árabes de Israel viessem a pensar em mudar de país, para onde fossem bem recebidos.
Pesaria ainda mais nesse tipo de decisão o caso dos atingidos por assentamentos e demolições de casas.
Ambos são políticas de Estado.
Os assentamentos ganharam destaque na nova Lei Básica, de julho do ano passado: “O Estado vê o desenvolvimento de assentamentos judaicos como um valor nacional e agirá para encorajar e promover seu estabelecimento e consolidação.”
É o que os governos de Telaviv vem fazendo, muito especialmente no último período da administração Netanyahu (2009/2018).
Os assentamentos triplicaram desde o Acordo de Oslo, em 1993, (que definiu os passos para se chegar ao acordo de independência palestina, aliás jamais seguidos).
Hoje existem mais de 200 na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, com cerca de 800 mil habitantes.
Isso apesar de terem sido condenados pela ONU por violarem o direito internacional. Transferência de populações em uma região sob ocupação militar e desapropriação de terras pertencentes aos habitantes dessa região são crimes, previstos nas Convenções de Genebra.
Netanyahu não se limitou a passar por cima de leis definidas pelo concerto das nações civilizadas, também ignorou leis do seu próprio país.
No embalo da onda de assentamentos oficiais, ele tem aprovado um número enorme de assentamentos ilegais, os outposts (postos avançados). Em vez de fechá-los, em respeito à lei israelense, e devolver as terras ocupadas por eles aos legítimos donos.
Lei especial, emitida há um ano e pouco, legalizou 53 outposts, construídos sem autorização oficial, com a desapropriação de 800 hectares de terras de propriedade privada palestina, onde se construiu cerca de 4.000 habitações (El País, 12-12-2017).
Expulsos de suas casas e terras pelos assentamentos e outposts ilegais, os legítimos proprietários palestinos acabam tendo de se mudar da área C (onde palestinos são virtualmente proibidos de adquirir terras ou construir casas) para outras áreas da Palestina. Ou mesmo de um país estrangeiro.
Qualquer das opções faz Netanyahu abrir champagne.
Com esse mesmo objetivo de reduzir o volume de habitantes árabes, Netanyahu atualmente não busca mais promover obras nos assentamentos existentes, necessárias para atender ao crescimento natural das famílias.
Privilegia assentamentos em novas regiões, para provocar a saída do maior número possível de palestinos.
Algumas regras foram aprovadas nesse espírito de limpar a Cisjordânia da etnia desprezada: lei que determina a expulsão do país de famílias de terroristas árabes caminha célere no Knesset, apesar de representar punição coletiva vetada pelo Direito Internacional; o Fundo Nacional Judaico pode vender terras somente a judeus, mesmo aqueles que acabaram de chegar no país.
As demolições de casas palestinas que também integram o arco de medidas para reduzir a população árabe, efetiva-se por diversos motivos.
O mais frequente é a ausência de aprovação pela municipalidade da construção do imóvel. Coisa que, na verdade, é extremamente difícil.
As exigências são múltiplas e complicadas, as licenças para construção raramente são concedidas. Conforme relatório da ONU: entre 2010 e 2014, Israel atendeu apenas 1,5% das solicitações (Middle Easts Eye, 14-3-2018).”
A maioria dos palestinos nem tenta pedir porque sequer tem condições de pagar as altas taxas cobradas. Eram 43.600 dólares em Jerusalém Oriental no período 2010-2014 (não há notícias de que os preços atuais baixaram).
Como os palestinos poderiam pagar já que 80% da população vivem abaixo da linha da pobreza.
Diante desta realidade, milhares acabam fazendo suas construções sem seguir os regulamentos oficiais (VICE, 15-4-2014).
Em Jerusalém Oriental, são 93.100 palestinos morando em casas não licenciadas. Qualquer deles pode ter sua casa demolida a qualquer momento, ficando ele e sua família sem teto (Al Monitor, 2-9-2013).
Depois de receber a comunicação de que a casa de sua família será demolida, o palestino ainda tem de encarar outra punição: pagar à prefeitura pela demolição.
Por sinal, o preço é tão alto que os palestinos muitas vezes preferem eles próprios se encarregarem da triste tarefa.
Em Jerusalém Oriental, os palestinos sofrem uma discriminação especial.
Tendo sido sido esta parte da cidade (então sob administração da Jordânia) conquistada e anexada por Israel na guerra de 1967, os palestinos locais receberam um status de “residente”, que lhes facultava as mesmas vantagens dos israelenses, Só não podiam votar nas eleições nacionais, além de estarem sujeitos a expulsão pelo governo.
Como é natural, muitos palestinos buscaram ascender à categoria de cidadãos. A lei israelense permitia, mas na prática as coisas eram diferentes. Poucos palestinos conseguiam superar a profusão de barreiras levantadas para resistir aos frequentes requerimentos de cidadania.
Exige-se perfeito conhecimento da língua hebraica, prova de lealdade ao país, garantias de ausência de imóveis em outras regiões da Cisjordânia e outros itens severamente examinados pelas autoridades.
Com o tempo, tudo foi ficando pior.
Atualmente, só é marcada para 3 anos depois a data em que o requerente deverá entregar os documentos exigidos. Depois, a espera é de mais 3 a 4 anos até a decisão final.
Em 2018, diante destas condições manifestadamente hostis, apenas cerca de mil requerimentos de cidadania vagueavam pelas vielas da burocracia israelense.
Até hoje, muito poucos pedidos de cidadania receberam decisões positivas.
Mais de 95% dos palestinos de Jerusalém Oriental tem status de residentes. Mas não são cidadãos, não podem votar em defesa dos direitos que lhes são negados.
Os planos do grupo de Netanyahu para reduzir ao máximo o peso dos palestinos num futuro Israel, integrado também pela Cisjordânia ou ao menos pela área C (60% do território, com as melhores terras), vão indo bem.
Tendo a “solução dos 2 Estados” quase totalmente bloqueada pelos assentamentos, que avançam na área C, as esperanças de independência dos palestinos estão num nível cada vez mais baixo.
Como seus principais movimentos – o Hamas e o Fatah- estão divididos e os grupos favoráveis à resistência passiva ainda desorganizados e frágeis, parece que só lhes resta esperar até 2020.
Nesse ano, haverá eleições nos EUA, quando um candidato democrata, comprometido com a paz e a justiça na Palestina, poderá vencer.
Ainda assim, não será suficiente.
É preciso que o povo israelense faça a sua parte.
Que ouça a advertência de Albert Einstein: ““Se formos incapazes de encontrar um meio para cooperar honestamente e fazer acordos honestos com os árabes, então não aprendemos absolutamente nada durante os 2 mil anos de sofrimentos e mereceremos tudo que cairá sobre nós.”