Assumindo a liderança do Labour em 2015, depois de sucessivas derrotas de seguidores de Tony Blair, Jeremy Corbyn levou os trabalhistas para a esquerda.
Inicialmente foi muito bem.
O partido deixou de ser uma versão atenuada do conservadorismo moderno, atraindo dezenas de milhares de novo membros.
Sob a direção de Corbyn, o Labour teve grande sucesso nas eleições nacionais de 2017, ganhando 30 deputados a mais e reduzindo ao mínimo a antes imensa vantagem dos tories.
A essas alturas, já haviam passado dois anos da vitória do Brexit no referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia sem que a Primeiro-ministro Teresa May conseguisse firmar um acordo para orientar a separação.
Desanimada, ela renunciou, em maio de 2019.
Boris Johnson, seu substituto, viu que sem a maioria dos parlamentares seria difícil se chegar a um acordo favorável com a União Europeia.
Pensando em recuperar o controle da Câmara dos Comuns, Johnson marcou novas eleições parlamentares para dezembro de 2019.
A discussão sobre os termos do Brexit já durava mais de quatro anos e o povo inglês estava farto e apreensivo. A falta de decisão tornava o futuro incerto. Esperto, Johnson lançou sua campanha eleitoral com o tema VAMOS RESOLVER O BREXIT LOGO.
Os trabalhistas não tinham uma posição firmada, dividido entre a separação e a permanência na União Europeia.
Para enfrentar os conservadores nas eleições, Corbyn apostou numa estratégia racional.
Foi elaborado um programa, o chamado manifesto, que defendia não uma reforma mas uma verdadeira revolução no regime capitalista inglês, com eixo no bem-estar do povo.
Apresentava um comprometimento com políticas corajosas, ausentes do programa conservador, como a re-nacionalização de certos serviços públicos e outros setores onde a iniciativa privada fracassara; educação para todos, sema cobrança de mensalidades aos universitários; taxas pesadas sobre os ricos e os lucros e dividendos; revalorização do Sistema Inglês de Saúde, negligenciado pelos governos conservadores; participação dos trabalhadores nos lucros e na direção das empresas; garantia estatal de emprego; priorização na defesa do meio ambiente, entre outras metas ambiciosas.
Quanto à discussão sobre a saída britânica da União Europeia, o Labour no poder teria um prazo de três meses para oferecer uma nova proposta à União Europeia. Se aceita, haveria mais seis meses para ser submetida a um referendo.
Em caso de rejeição, o Reino Unido permaneceria na União Europeia.
Não era uma ideia popular pois metade da população inglesa ansiava por tirar da frente esse problema o mais breve possível (pesquisa Ipsos Mori, 20-09-2019).
Todas as esperanças dos trabalhistas estavam depositadas no seu programa de governo, ao qual capacitados especialistas dedicaram muitos meses na elaboração.
Diz editorial do Guardian (24-11-2019): “Não há dúvidas de que o manifesto do Labour, se realizado, mudaria a rota da Grã-Bretanha para torná-la um lugar melhor e mais justo para se viver”.
Note que o Guardian não apoiou os candidatos trabalhistas, manteve uma posição independente. Com exclusão do Daily Mirror que ficou a seu favor, todos os demais s jornais ingleses defenderam o voto em outros partidos, em especial no conservador, de Boris Johnson.
A maioria fez de Corbyn alvo de matérias agressivas, várias delas mentirosas. Os donos da grande mídia não aceitavam a mudança radical da sociedade inglesa, alvejada pelo líder trabalhista e seu partido.
Um dos mais virulentos ataques jornalísticos foi desfechado no apoio à campanha da comunidade judaico-inglesa de denúncia do suposto anti-semitismo de Corbyn.
Os lobbies anglo-israelenses e seus aliados da imprensa interpretavam de forma enviesada atitudes e declarações do líder palestino em relação a conflitos entre Israel e palestinos.
Tais ataques não tinham qualquer fundamento pois sabidamente Corbyn, desde seu início na política sempre condenou toda forma de racismo, inclusive o anti-semitismo.
A causa real da campanha eram as posições do líder trabalhista em defesa da independência e dos direitos humanos do povo palestino, violentados pelas políticas israelenses.
Numa vitória eleitoral do Labour, que elevaria Corbyn a primeiro ministro, o Reino Unido, até então pendendo para o governo de Telavive, iria mudar de lado. E os palestinos ganhariam um aliado de peso para suas reivindicações, debilitando a imagem de Israel.
Embora alguns dos mais destacados intelectuais, escritores e líderes estudantis judeus do Reino Unido defendessem Corbyn, os cidadãos mais influentes da colônia aderiram aos ataques e convenceram a maioria dos judeus ingleses a formarem contra o suposto anti-semita em comícios e reuniões promovidos desde 2015 (eleição do líder do Labour) até as eleições parlamentares de 2019.
Enquanto isso, grupos de políticos trabalhistas blairites sabotaram o quanto puderam a performance eleitoral do seu próprio partido, visando enfraquecer a liderança da esquerda.
Essas ações somaram-se à uma estratégia eleitoral equivocada para vibrar nos trabalhistas uma derrota muito acima das expectativas.
Foi nos Midlands, no País de Gales e no Norte, tradicionais redutos trabalhistas, que o Labour perdeu a maioria dos seus assentos no parlamento.
Nessas regiões, que concentram grande parte da população operária inglesa, tinha havido muito desemprego, fecharam-se indústrias carboníferas e de outros setores. Os trabalhadores locais, temiam a entrada em massa de imigrantes que viriam tomar seu trabalho, caso o Reino Unido continuasse na União Europeia. A indefinição do Labour em relação à Brexit, foi responsável pela perda de muitos votos desse segmento da população.
Mesmo assim, a maioria dos operários dos Midlands, Norte e País de Gales, onde os conservadores tiveram ganhos não previstos, teriam continuado a votar no Labour se acreditassem que suas promessas de governo fossem realmente factíveis.
O manifesto, elogiado até por críticos, pareceu aos trabalhadores algo como um ilusório presente de Papai Noel, confrontado com a concreta promessa de Boris Johnson: vamos logo resolver o Brexit.” Que era o que estava exatamente no centro de suas aspirações mais prementes.
E, assim, trocaram um sonho maior e talvez impossível por uma realidade menor, porém possível.
Os trabalhadores perderam 59 deputados na sua maior derrota eleitoral desde 1935.
Diante do fracasso, Jeremy Corbyn pediu demissão, sendo eleito em seu lugar o centro-esquerdista, Keir Starmer, que venceu uma série de candidatos, inclusive o 2º mais votado, Rebeca Long-Bailey, apoiada por Corbyn.
O novo líder tem características diferentes das do anterior: é bom orador, moderado e, especialmente, pragmático- antenado com os problemas, aspirações e posições do povo no presente.
No seu discurso de pose, ele apresentou seus principais objetivos: unir o partido e defender as mudanças na sociedade, com proposições que sejam credíveis pelo eleitorado.
Até aí, tudo bem.
No entanto, as facções da esquerda preocupam-se com um possível distanciamento dos tradicionais princípios do Labour, fielmente sustentados por Corbyn, seu antecessor na liderança.
Aparentemente, o passado de Starmer é irrepreensível.
Vem defendendo no parlamento a Lei de Prevenção de intervenções militares, que coloca os direitos humanos como básicos na política internacional e promove o fim nas guerras ilegais, tornando legalmente obrigatório que qualquer conflito militar seja aprovado pela Câmara dos Comuns, antes de qualquer ação bélica ser tomada.
Não contente em votar contra a invasão do Iraque, Starmer participou em manifestações de rua contrárias, tendo ainda publicado um artigo no The Guardian demonstrando porque a guerra era insustentável.
Na confronto Arábia Saudita versus Irã, Starmer mostrou-se contrário ao isolamento do Irã e apoiou a já antiga reclamação do Labour pela proibição das vendas de armas inglesas para o reino do deserto usar na Guerra do Iêmen.
Condenou o assassinato do general Suleiman, líder da Guarda Revolucionária iranianas, afirmando que o mundo deve aproximar-se do Irã, não isolá-lo e que todos os lados devem se de-sescalar para evitar futuros conflitos,
Há ainda dúvidas em relação às atitudes de Starmer diante de Israel.
Preocupado em recuperar a imagem perdida pelo partido junto aos judeus ingleses na campanha anti-Corbyn, o novo líder assegurou que resolver o problema do anti-semitismo no partido era prioridade para ele.
Considera-se que, embora ainda haja vagos traços de anti-semitismo no partido, esse problema não é tão grave para merecer ser priorizado pelo líder do Labour.
Antes mesmo de eleito líder, Starner tuitou em janeiro que o modo do partido impedir o anti-semitismo era “completamente inaceitável”, desprezando os esforços que haviam sido feitos para suprimir o problema.
O próprio Corbyn expressou a Starmer sua inconformidade com a qualificação de anti-semitas a posições de membros do Labour contra certas políticas de Israel.
O novo líder garantiu isso não seria permitido.
No entanto, quando a deputada Rebeca Long-Bailey, compartilhou um post da atriz Maxine Pearson, contando que policiais de Mineapolis teriam sido treinados em Israel em métodos como ajoelhar no pescoço de suspeitos, Starmer taxou tal acusação de “teoria da conspiração, anti-semita” e a afastou de importante cargo na estrutura partidária.
Na minha opinião, tratava-se apenas de um fake news, que alvejava o Estado de Israel, não o povo judaico, merecendo apenas um desmentido e uma repreensão à deputada.
Corbyn e alguns adeptos procuraram Starmer, dizendo que ela não praticara um ato anti-semita, portanto sua punição deveria ser revertida.
Starmer não concordou e manteve a punição.
Acho que foi uma decisão pragmática, de olho na reconquista da maioria dos 300 mil eleitores anglo-judeus perdidos na última eleição.
Não provava que o novo líder fosse pró-|Israel.
Mesmo porque, alguns observadores argumentam, ele foi incisivo na oposição à anexação israelense de parte da Cisjordânia e do Vale do Jordão.
Não acho um ponto tão válido assim. Afinal, Stamer não propôs sanções a Israel pela anexação, o que tornaria a posição trabalhista realmente efetiva.
Além disso, os motivos alegados pelo seu protesto, não foram a ilegalidade do ato e a violação dos direitos dos palestinos, mas o aumento dos conflitos, o que seria prejudicial aos interesses da segurança de Israel.
Também não pegou bem a resposta do líder ao jornal, “Notícias Judaicas” que indagou se ele seria favorável ao sionismo.
Starmer disse que o termo sionismo significava “coisas ligeiramente diferentes para diferentes pessoas”, completando: se “a definição de sionista é alguém, que acredita no Estado de Israel, nesse sentido eu sou sionista.”
Há, porém, também razões para se acreditar que Starmer vê a questão Israel-palestinos conforme o ideário tradicional trabalhista.
Ele integra o movimento “Amigos trabalhistas da Palestina e do Oriente Médio. “ É favorável a solução dos 2 Estados para a criação de uma Palestina independente e taxou o plano Trump para a paz na região como uma “farsa” e “inconsistente com a lei internacional e a proteção dos direitos humanos.”
Ele retirou o cargo da esquerdista, Rebeca Long-Bailey mas nomeou para posição similar, Lisa Nandy, criticada pelos setores pró-Israel por assinar diversos protestos da Campanha de Solidariedade à Palestina, defendendo o direito de volta dos refugiados palestinos, expulsos por Israel na guerra de 1948.
Recente pesquisa revela que o pragmatismo e a moderação das ações públicas de Keir Starmer estão sendo bem-vistos pela população britânica.
Ele recebeu uma aprovação maior do que a conferida a Boris Johnson, o recém-eleito primeiro-ministro.
Não há dúvida de que seu objetivo de vencer eleições é evidentemente importante. O perigo é chegar ao poder, deixando os ideais trabalhistas no meio do caminho.
Ótima análise.