O Nobel da paz defende a guerra

De boas intenções o inferno está cheio, diz o ditado, mas com elas dá para ganhar o Prêmio Nobel da Paz.

Em declarações e discursos, Barack Obama afirmou que tudo faria para que a paz reinasse sobre a Terra. Pena que até agora suas ações ainda não estiveram à altura de suas intenções.

Claro que a escolha de Obama não pode ser comparada a alguns prêmios Nobel do passado, verdadeiras piadas de mau gosto, como Kissinger, por exemplo, que se cansou de engendrar e apoiar golpes militares pelo mundo. Ou o ex-presidente Theodore Roosevelt, cuja “stick diplomacy” (diplomacia do porrete) levou os EUA a intervirem militarmente num sem número de governos latino-americanos.

Estranho foi que, quando se encerrou o prazo das indicações para o Nobel em 1 de fevereiro, Obama mal tinha completado 12 dias de governo, período em que ele nada fez pela paz. Nem teria tempo…

Como um comentarista americano disse, foi o mesmo que conceder o Oscar a um filme ainda em produção.

Mesmo assim, caso Obama fizesse por merecer o prêmio nos meses seguintes, poderíamos falar nos dons proféticos dos homens da academia sueca.

Longe disso. No Iraque, ele aumentou o prazo de saída formal das tropas americanas de 16 para 19 meses e deixará cerca de 50 mil homens para “treinar” os soldados iraquianos até fins de 2011 – prazo já negociado por seu antecessor George Bush.

No Irã, ele tem alternado boa vontade com ameaças. Mas jamais sequer admitiu, contra os pareceres do próprio serviço secreto americano e da agência de controle de armas nucleares da ONU, a possibilidade do programa nuclear iraniano ser pacífico.

No Afeganistão, mandou mais 20 mil soldados e prepara-se para acrescentar 45 mil a esse número.

No Paquistão, quase dobrou os bombardeios da fronteira com aviões sem piloto, elevando consideravelmente o número de civis inocentes mortos.

Na Palestina, depois de exigir o cancelamento da expansão dos assentamentos israelenses como pré-condição para se iniciarem negociações de paz de Telaviv com os palestinos, acabou voltando atrás diante da negativa de Netanyahu.

Apesar de tudo, comparando com George Bush, não há dúvida de que Obama é um grande avanço na política externa americana. Triste é que, em Gaza, ele derrapou.

Em primeiro lugar, não tomou nenhuma atitude para fazer Israel suspender o bloqueio da região pelo exército, o que está impedindo a reconstrução da semi-destruída região, a recuperação de sua economia e de suas escolas e o fornecimento de remédios e alimentos, cujo ingresso é limitado pelos militares israelenses. E, talvez mais grave: tentou salvar Israel da condenação de suas barbaridades no ataque a Gaza.

O chamado relatório Goldstone da missão da ONU que investigou o ocorrido condenou os foguetes lançados pelos palestinos, mas reservou as críticas mais pesadas à atuação de Israel: “Foi um ataque intencionalmente desproporcional, planejado para punir, humilhar e aterrorizar a população civil, reduzir drasticamente os recursos econômicos da comunidade local para poder trabalhar e prover seu sustento e, com isso, forçar uma dependência e vulnerabilidade sempre crescentes”.

A comissão reportou que em 11 situações o exército israelense alvejou civis diretamente, em alguns casos “quando tentavam sair de casa, buscando locais mais seguros, agitando bandeiras brancas”. Foi verificado que quase nunca havia qualquer justificação militar para estas violências.

O relatório citou outros possíveis crimes de responsabilidade dos israelenses: destruir intencionalmente plantações de alimentos e serviços de água e esgotos; destruir áreas com grande número de civis com o objetivo de matar uns poucos combatentes; usar palestinos como escudos humanos e aprisionar homens, mulheres e crianças em covas.

Talvez um das mais graves acusações foi a de que cerca de 10 bombas, inclusive de fósforo branco, foram lançadas contra o principal edifício da ONU, em Gaza, onde 700 civis estavam refugiados. Havia um grande depósito de combustível no local, mas, embora avisados várias vezes, os israelenses continuaram o bombardeio (resumo do New York Times).

Os palestinos foram acusados de lançar mísseis que, intencionalmente ou por negligência, atingiram zonas urbanas de Israel matando três civis e traumatizando a população local. Considerou-se também “sérias violações dos direitos humanos” assassinatos e outras violências praticadas pelo Hamas contra membros do Fatah.

O relatório Goldstone terminava propondo que o Conselho de Direitos Humanos da ONU solicitasse que as partes realizassem investigações independentes para apurar os responsáveis pelos crimes apontados, monitoradas pela ONU. Caso se recusassem ou atuassem de forma parcial, o relatório deveria ser encaminhado pelo Conselho de Segurança da ONU à Corte Internacional de Justiça para o processamento devido.

Imediatamente após a divulgação do relatório, Israel tachou-o de parcial e mentiroso. E Susan Rice, a representante do governo Obama na ONU, surpreendentemente uniu-se a essa contestação. O que foi absurdo, pois o presidente da comissão da ONU, o juiz Richard Goldstone, além de judeu, dispõe de um autoridade inatacável, tendo inclusive atuado como promotor-chefe nos processos contra os crimes de guerra praticados na Iugoslávia e em Ruanda.

Submetido o relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, o presidente da Autoridade Palestina, Abbas, sofreu pressões de representantes do governo Obama, que afirmaram que, sendo aprovado, Israel não admitiria mais negociações de paz com os palestinos, conforme declarações do primeiro-ministro Netanyahu. Abbas retirou seu endosso e a discussão foi adiada por seis meses, como queriam os EUA e Israel.

Não contavam com a reação dos palestinos, tanto do Hamas quanto do próprio Fatah de Abbas, que foi considerado traidor. Assustado, Abbas voltou atrás e o relatório Goldstone foi reapresentado ao Conselho de Direitos Humanos.

A essas alturas já havia um consenso da opinião mundial favorável a ele. E até aliados dos EUA mudaram sua posição.

“Apelamos ao governo de Israel para que conduza investigações críveis e imparciais sobre as alegações do relatório Goldstone”, declarou ao Conselho John Sawers, embaixador da Inglaterra na ONU.

“Achamos que as partes devem agora realizar investigações independentes de acordo com os padrões internacionais sobre as violações alegadas das leis humanitárias internacionais e dos direitos humanos durante a crise de Gaza”, afirmou o embaixador Gerard Araud, que ocupa o mesmo cargo, representando a França.

Sem deixar de criticar o suposto “viés anti-Israel” do relatório, o vice-representante dos EUA no Conselho, Alejandro Wolff foi na mesma direção: “Israel tem instituições e capacidade de efetuar sérias investigações das alegações e nós os encorajamos a fazer isso”.

No final, a resolução apoiando o relatório e pedindo investigações às partes foi aprovado por 25 votos a favor (inclusive do Brasil) contra 6 e 11 indecisos.

Os EUA foram contra. Douglas Grifith, seu representante, apoiou os protestos israelenses e declarou-se “decepcionado com o resultado e pelo fato de terem sido tomadas decisões às pressas”.

Decepcionados devem ter ficados aqueles que deram o Nobel da Paz a Barack Obama pois a rejeição do relatório Goldstone, defendida por seus representantes, significaria, como disse Sarah Leah Whitson, diretora da Ong Human Rights Watch, “enviar uma terrível mensagem no sentido de que violações das leis da guerra por Estados aliados seriam toleradas”.

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