Jean Claude Duvalier, o “Baby Doc”, sucedeu a seu pai no mais bárbaro governo da história do Haiti. Apoiado inicialmente pelos EUA, Duvalier pai impôs um regime de terror, onde bandos de paramilitares, os “Tontons Macoutes”, prendiam, torturavam e mataram cerca de 50 mil pessoas.
Assumindo o poder em 1971, Baby Doc parecia disposto a democratizar o país. Permitiu a formação de dois partidos de oposição e liberdade de imprensa. E anunciou publicamente o começo de uma nova era de liberação.
Encorajados pela melhoria do clima político, diversas empresas estrangeiras instalaram-se no país e a economia começou a recuperar-se. O Haiti aumentou suas exportações de banana e cereais. Mas, a pobreza ainda afligia a maioria da população. Para sobreviver, um grande número de pessoas vendiam sangue à empresa Home Caribbean para exportação de plasma sanguíneo.
Mas, a primavera acabou bruscamente.
Em 1979, milicianos armados com porretes atacaram brutalmente os assistentes numa concentração pelos direitos humanos realizado em Port-au-Prince. Em seguida, políticos oposicionistas foram espancados, muitos deles feridos. A imprensa foi silenciada. E o terror voltou.
A corrupção, que corria solta, levou a economia ao caos. Estima-se que 100 milhões de dólares de obras sociais foram desviados pelo Duvalier filho.
Enquanto 80% da população viviam abaixo da linha da pobreza, os esbanjamentos se sucediam. Em 1980, a festa de casamento do Baby Doc entrou para o almanaque Guinness de recordes, como a mais cara de todos os tempos, tendo custado 3 milhões de dólares.
A partir de 1981, a população pobre, numa média de 4.000 pessoas por mês, passou a fugir para a Florida em barcos improvisados, buscando oportunidades de uma vida melhor.
Nas eleições de 1984 para a Câmara dos Deputados, nenhum candidato de oposição foi autorizado a concorrer. O governo desencadeou uma perseguição aos partidos contrários, prendendo e torturando seus líderes. Os poucos comícios de protesto foram dissolvidos pelos pistoleiros do governo. Em consequência, o comparecimento da população às eleições foi tão baixo que o governo nem revelou os resultados.
Em 1986, a política de Glassnot do premier Gorbatchev havia abrandado a Guerra Fria. Os EUA não precisavam mais dos ditadores que controlavam a América Latina. O Duvalier filho tornara-se incômodo. Depois de uma série de manifestações populares, pressões americanas forçaram o Baby Doc a renunciar ao governo. Enquanto ele voava para um exílio dourado em Paris, a população haitiana dançava nas ruas.
No entanto, seus partidários não o esqueceram. Lançaram uma fundação para exaltar sua imagem e, posteriormente, refundaram seu partido político. Em muitas oportunidades, os poucos aspectos positivos do seu governo eram divulgados.
Esperavam que um dia ele voltaria.
25 anos depois, em janeiro do ano passado, o Baby Doc voltou.
Desde logo teve de haver-se com a justiça, foram apresentadas acusações de apropriação de fundos públicos, violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade.
Atualmente, ele está tecnicamente em prisão domiciliar, mas isso não o impede de levar uma “dolce vita” de milionário, frequentando os restaurantes chiques de Petionville.
Na semana passada, o Baby Doc compareceu, com escolta policial, a cerimônia no memorial do governo para marcar o segundo aniversário do terremoto do Haiti. À sua chegada, levantaram-se para saudá-lo o Presidente Michel Martelly, seu primeiro ministro e o ex- Presidente Bill Clinton, como se fosse uma figura respeitável e não um ditador que barbarizou seu povo durante 15 anos.
Depois de muitos meses, nos quais 3 promotores atuaram sucessivamente, o caso de Baby Doc ainda está na dependência do juiz decidir se irá ou não a julgamento.
‘Ele será inocentado de todas as acusações”, afirma o advogado do ex-ditador, Reynold Georges. Para esse advogado, os eventos alegados – tortura e desaparecimento de pessoas- excederam o estatuto de limitações. ”E mais”, Georges continua,”eles não tem provas de nada”.
Reed Brody, do Human Rights Watch discorda. Acha que o estatuto de limitações não se aplica nesse caso: ”O Haiti ratificou tratados que o obrigam a investigar graves violações de direitos humanos. Existem casos de 30 anos sendo processados no Cambodja, Chile, Peru, Argentina e Uruguai”.
Quanto aos desaparecidos, Brody afirma que os crimes continuam, já que ninguém sabe o que aconteceu às vítimas.
Renê Perval, que presidia o Haiti antes de Martelly, o atual mandatário, moveu processo para recuperar o dinheiro do governo haitiano, depositado pelo Baby Doc numa conta em banco suíço.
Existem boas chances do processo ter êxito. A legislação sobre restituição dos ativos roubados por políticos foi aprovada na Suíça no ano passado.
O governo atual, do Presidente Martelly, faz questão de ganhar esse processo, especialmente no momento presente, em que as esquálidas receitas públicas não podem atender a necessidades mínimas do país.
No entanto, ele se mostra estranhamente benevolente em relação aos crimes de Baby Doc.
“Ele é parte do passado. É tempo de unir o país, mostrar tolerância, mostrar compaixão, mostrar amor a todos”, declarou ao Washington Post.
Talvez porque o governo Martelly inclua figuras com ligações antigas com o governo Duvalier, como o Primeiro Ministro Garry Conille, cujo pai foi Ministro dos Esportes e da Juventude, na ditadura do Baby Doc.
A Anistia Internacional está longe de aceitar tanta compreensão: “se a verdadeira justiça deve ser feita no Haiti, as autoridades haitianas precisam abrir uma investigação criminal sobre a responsabilidade de Duvalier na imensa quantidade de violações dos direitos humanos que foram cometidas no seu governo.”
É claro que ela tem razão. Infelizmente, é bem possível que o Baby Doc sequer vá a julgamento pelas torturas, detenções arbitrárias, estupros, desaparecimentos e execuções extrajudiciais do seu governo.
É até provável que ele seja mesmo candidato à presidência.
O advogado Georges, que é muito próximo ao Duvalier filho, declarou: ”Se ele decidir candidatar-se a presidente, ele será elegível, e se ele fizer campanha, ele vencerá, com meu apoio.”
Por mais chocante que pareça, Georges isso pode acontecer.
Mais de 60% da população haitiana tem menos de 25 anos, não tem lembrança alguma do governo do Baby Doc.
E os mais velhos, diante da situação absolutamente devastadora em que vive o Haiti pós-terremoto, tendem a achar que antes só podia ser melhor. A lembrar com saudade os tempos em que os turistas afluíam. Que Port-Au-Prince estava de pé.
Esquecendo as misérias de então, quando o povo arriscava a vida em frágeis barquinhos para fugir do Haiti. E vendia seu sangue por 3 dólares o galão para poder sobreviver.
Luiz Eça
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20/01/2012