O ano em que George Bush caiu do cavalo

O desprezo pelas leis e pelos princípios de humanidade pegou muito mal em todo o mundo. A imagem internacional dos Estados Unidos, que já não era das melhores, piorou acentuadamente, em especial nos países muçulmanos. Agora, Bush não pode mais esperar que seja respeitada a bandeira da democracia que ele vinha agitando com tanto ardor.

Em 2006, George Bush sofreu sua mais contundente derrota quando o Partido Democrata ganhou as eleições legislativas. De acordo com as pesquisas, este evento relacionou-se diretamente ao fracasso americano na guerra do Iraque.

No começo do ano, Bush ainda mantinha muitas esperanças. O Iraque realizara eleições livres, com grande comparecimento popular. Era a prometida democracia que começava a se impor no país. E o novo governo iraquiano, fortalecido por grande votação, teria, segundo a Casa Branca, condições de frear a insurgência e iniciar uma nova era de paz e progresso, sob a proteção dos Estados Unidos. Querendo ou não, os xiitas vencedores teriam de aceitá-la, pois, por um período indeterminado, ainda precisariam dos exércitos da coalizão para garantir a segurança interna e do capital estrangeiro para recuperar a infra-estrutura econômica do país.

Na verdade, este quadro róseo ficou no esboço. As ações rebeldes só aumentaram. E tudo se agravou a partir de fevereiro, quando a famosa mesquita xiita de Samarra foi destruída por bombas presumivelmente sunitas, o que deflagrou uma verdadeira guerra civil entre as duas facções religiosas.

Isso foi desastroso para a “pax americana”. As diversas milícias dos dois lados trataram de armar-se e aumentar seus efetivos, voltando suas armas também para os exércitos da ocupação, que tentavam inibir sua ação. Não é preciso dizer que o clima para investimentos no Iraque passou de péssimo a inqualificável.

Esta guerra civil não deixa de ter aspectos vantajosos para os países da coalizão, EUA e Reino Unido. De fato, se efetivada, a aliança entre xiitas e sunitas, buscada por líderes dos dois grupos, daria força para o novo governo garantir a paz, deixando a Al Qaeda sem apoio, o que deixaria Bush sem argumentos para manter a ocupação.

Por isso, quem mais perde com a guerra civil iraquiana são exatamente os insurgentes. No entanto, é temerário afirmar que foram os americanos quem praticaram o atentado em Samarra. Não há provas. 

Os reflexos desta situação na política interna dos Estados Unidos foram desastrosos para Bush. A derrota nas eleições parlamentares foi o principal.

Durante muito tempo, os seguidores do presidente sustentaram que a guerra estava sendo ganha. Mas a persistência e o vulto dos ataques insurgentes, mais o aumento das perdas de vidas americanas – hoje, aproximam-se das 3.000 – , liquidaram qualquer argumento. Pesquisa da Associated Press-Ipsos (dezembro/2006) revelou que o povo americano rejeitava a política de Bush no Iraque por 71 a 26. No mesmo mês, em outra pesquisa destas instituições, apenas 9% dos respondentes acreditavam numa vitória final dos Estados Unidos. Esta quase unanimidade chegou até aos meios militares e a líderes republicanos, como o senador Gordon Smith, até há pouco defensor da guerra: “Para mim não dá mais para apoiar uma política que faz nossos soldados patrulharem as mesmas ruas, do mesmo jeito, sendo explodidos pelas mesmas bombas, dia após dia. É um absurdo. Pode ser até criminoso”.

O que não deu certo no Iraque, não deu certo nas outras regiões onde a política externa unilateralista do governo Bush enfrentou seus principais desafios.

Na América Latina, onde Bush já havia perdido a Argentina, a Venezuela, Uruguai, o Brasil e o Chile (estes dois últimos em termos), perdeu também a Nicarágua, o Equador e a Bolívia. Neste país, Evo Morales, em 2006, revelou-se. Desprezado por muitos como um demagogo, radical e primitivo, ele mostrou competência e porte de estadista ao conseguir acordos -vinicialmente rejeitados pela poderosa Petrobras e por multis da Espanha, Inglaterra e Argentina -, que multiplicaram para o seu povo as rendas do gás e do petróleo boliviano. E foi extremamente hábil ao praticamente garantir a aprovação da reforma agrária no senado contra a oposição de direita majoritária na casa. É verdade que os grandes empresários do sul boliviano, inconformados com a perda do poder político que detinham há muitos anos, ensaiam ações separatistas. Mas não se acredita que logrem êxito.

Governos pró-americanos foram mantidos no Colômbia e no México, neste por diferença de votos mínima, numa eleição de honestidade duvidosa. No Peru, o candidato nacionalista foi derrotado, mas o predileto de Washington também perdeu. O vencedor, Alan Garcia, ex-socialista, é um político oportunista que poderá pender para qualquer lado. Cabe lembrar que, tanto na Bolívia quanto na Nicarágua, os embaixadores americanos envolveram-se pessoalmente nas campanhas, condenando os candidatos de esquerda que, aliás, venceram.

No Equador, país menos importante economicamente, surgiu um novo líder com qualidades raras, capaz de trazer muitos problemas para a hegemonia americana. Depois de vencer o homem mais rico do país, um candidato a presidente francamente alinhado com a política externa de Bush, Rafael Carrera deu declarações ao mesmo tempo corajosas e serenas. Dificilmente poderão acusá-lo de falta de equilíbrio, como se faz em relação a Chávez , por seus destemperos verbais.E depois que Carrera condenou os tratados bilaterais com os Estados Unidos, não dá para ver nele um segundo Lula, como certos observadores internacionais teimam em considerar.

Também no Oriente, as coisas foram mal para os sonhos imperiais dos neoconservadores que cercam George Bush. Sua atitude na guerra do Líbano pegou muito mal. Mais uma vez Bush ignorou o direito internacional e apoiou os agressores, fornecendo armas e munições que seriam usadas no bombardeio do Líbano. Enquanto isso, seu embaixador na ONU, o notório John Bolton, fazia de tudo para adiar uma intervenção do Conselho de Segurança pelo cessar fogo. Era preciso dar tempo para que o exército israelense aniquilasse as forças do Hammas, não importando quantas vidas libanesas inocentes custasse.

Esse desprezo pelas leis e pelos princípios de humanidade pegou muito mal em todo o mundo. A imagem internacional dos Estados Unidos, que já não era das melhores, piorou acentuadamente, em especial nos países muçulmanos. Agora, Bush não pode mais esperar que seja respeitada a bandeira da democracia que ele vinha agitando com tanto ardor.

Nos outros “fronts” asiáticos, nada deu certo para a política externa georgista. É verdade que ele encontrou uma frágil resistência no episódio do Líbano, pois os europeus, embora querendo a paz, acabaram aceitando que ela fosse adiada. No entanto, quando os americanos quiseram forçar a ONU a tomar atitudes radicais contra o Irã , punindo-o pelo seu programa nuclear, a China e a Rússia se opuseram. Exigiram que se continuasse buscando uma solução via diplomática. E Bush teve de aceitar.

Todas estas derrotas, culminando com o veredicto das urnas americanas, abalaram Bush. Uma mudança de rota foi sinalizada com a substituição do belicoso secretário da defesa, Donald Rumsfeld, pelo pragmático Robert Gates e os contatos do seu embaixador na Venezuela com o governo do país com o objetivo declarado de melhorar as relações estremecidas. 

Mas quando o Grupo de Estudos do Iraque, formado por experts dos partidos republicano e democrata, apresentou suas propostas para a solução da crise, Bush discordou dos pontos que significavam uma real abertura. Aceitou a proposta de acelerar o treinamento das forças iraquianas; quanto ao engajamento da Síria e do Irã no processo de pacificação e a retirada do exército da coalizão no início de 2008, nada feito.

Em 2006, Bush manteve firmemente a política neoconservadora de impor os interesses americanos no resto do mundo, com ou contra as leis, com ou sem a comunidade internacional, usando a força e o medo que o poderio americano inspira. Não deu certo. Machucado pela queda do cavalo, pensará ele em novos caminhos? Afinal, 2008 é o ano da eleição presidencial. Passar 2007 rejeitado nas pesquisas de opinião poderá ser fatal para a idéia de fazer seu sucessor.

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