“Um drama está acontecendo em total silêncio no Iraque, onde as tropas de ocupação da coalizão estão usando a fome e a privação de água como armas contra a população civil.” Denúncia feita em 14 de outubro por Jan Ziegler, antigo professor de sociologia, nomeado pela ONU para investigar os direitos humanos no Iraque.
Conforme Ziegler, no ano passado, durante os ataques a Faluja, Tal Afar e Samarra, o exército americano cortou ou restringiu o fornecimento de água à população para forçá-la a fugir dessas cidades para facilitar o ataque aos insurgentes. Na Idade Média, era uma tática comum. Só que o mundo evoluiu e hoje é condenada formalmente pelo direito internacional. Mas não pelos generais americanos, que preferiram seguir os exemplos de Atila e Gengis Cã do que os preceitos da Convenção de Genebra.
Um porta-voz militar contestou o homem da ONU, é claro. Ficou a palavra de Ziegler contra a deles. Não é difícil julgar quem tem mais crédito. Alguns dias depois, vieram à luz novas violações dos direitos humanos pelos mesmos protagonistas.
Em Ramadi, o comando americano anunciou que aviões e helicópteros bombardearam um grupo de ditos “terroristas”, matando 70 deles. Na verdade, pelo menos 25 deles eram civis da região tentando pegar destroços de um blindado destruído no dia anterior. Nessa ação bélica, mais uma vez as forças de ocupação aplicaram aquele velho princípio do “wild west”: atirar primeiro, perguntar depois. A repetição de casos assim parece indicar a existência de uma orientação superior para que, em caso de dúvida, os militares devem atacar sem se preocupar em esclarecer as coisas antes.
Na mesma ocasião, na cidade de Al-Bu-Farraj, aviões bombardearam uma casa onde insurgentes tinham se refugiado. 50 deles teriam sido mortos. Além de 14 civis, acrescentou despacho da Associated Press.
Embora as autoridades militares neguem, as mortes de civis nestes dois eventos foram confirmadas por médicos e cidadãos locais, imagens de emissoras de TV e por uma circunstância definitiva: entre as vítimas havia muitas mulheres e crianças que, no Iraque, não costumam ser terroristas.
Se ao impedir civis de se alimentarem e beberem água o exército de ocupação retroagiu à Idade Média, em ataques como em Ramadi e Al-Bu-Farraj igualou-se aos terroristas. Também eles, quando lançam bombas nos inimigos, não se preocupam com a possível eliminação de cidadãos incautos.
Esta escalada de violações dos direitos humanos continuou nos ataques da coalizão a Tal Afar. Entrevistando refugiados que fugiam em massa da cidade, o correspondente do jornal turco Birgun foi informado que aviões americanos bombardearam a cidade com armas químicas. Um dos sobreviventes contou ao jornalista Dogan Tilic: “Quando o ataque terminou e fomos ao local, encontramos uma centena de corpos literalmente carbonizados. Explicaram-nos, depois, que as forças americanas haviam lançado bombas de napalm”.
O napalm já fora usado pela aviação dos Estados Unidos no bombardeio de Faluja, em novembro de 2004, que deixou corpos parcialmente “derretidos”. Os feridos falaram de “estranhas bombas que soltavam fumaça em forma de nuvens de cogumelo, explodiam em chamas que grudavam na pele e continuavam queimando, mesmo quando se jogava água”.
O Dr. Ibrahim Al Kabushi, que atendeu as vítimas, acusou: “Há um terrível crime acontecendo em Faluja e eles (os americanos) não querem que ninguém saiba. Eu transferi quatro feridos para um hospital em Bagdá. Eles me contaram que bombas químicas estão sendo usadas. Seus corpos não tinham marcas de balas, mas manchas negras”.
A respeito da ação das bombas de napalm, disse Robert Musil da ONG “Phisicians for Social Responsability”: “Elas causam horríveis ferimentos, que exigem uma imensa quantidade de recursos médicos para serem tratados”.
Por isso mesmo, desde 1980, uma convenção internacional patrocinada pela ONU já havia proibido seu lançamento em áreas com concentração de população civil. Os Estados Unidos foram os únicos que se recusaram a assinar. Mais tarde cederam e concordaram em destruir seus arsenais desse tipo de bombas.
Segundo George Bush, Saddam Hussein tinha bombas químicas e isso seria tão grave que foi um dos motivos que justificou a invasão e ocupação do Iraque. Mais tarde provou-se que a acusação era falsa. Quem tinha bombas químicas (e as usou) era Bush. Mas, na lógica maniqueísta do governo americano, esta contradição não era relevante. Como Bush representa “o Bem”, tudo que ele faz está certo. Não se pode comparar o “bom napalm” de Bush com as “bombas químicas do Mal” de Saddam (embora estas sequer existam).
No quesito direitos humanos no Iraque, o governo Bush está levando a nota mais baixa. Pensava-se que, nos horrores de Abu Ghraib, ele tinha descido ao fundo do poço. Mas as novas revelações mostraram que não era assim. O que poderá ensejar à defesa, no julgamento de Saddam Hussein, argumentos do tipo: “se ele também fez, por que não eu?”.