Moscou existe

Quando assumiu o poder em 2000, Putin era visto por Washington como digno sucessor de Yeltsin que liquidara a União Soviética, privatizando a preço de banana as estatais e subordinando a política internacional do país à americana. Em 2001, Bush encontrou-se com Putin pela primeira vez e disse: “olhei sua alma e gostei do que vi”. Depois do atentado de 11 de setembro, Putin ofereceu a colaboração máxima da Rússia à guerra contra o terrorismo e essa amizade chegou ao máximo. 

Mas à medida que as ações americanas esbarravam nos interesses russos, Moscou foi saindo de sua posição subserviente e passou a contestar a Casa Branca que, por sua vez, reagiu. Atritos fatalmente aconteceram. E agora os russos ensaiam uma volta à política da velha União Soviética, desafiando a hegemonia universal americana.

As coisas chegaram a tal ponto que, no discurso anual à nação, Putin compara os Estados Unidos a “um lobo que come e não dá atenção a ninguém”. E afirma que o governo Bush coloca seus interesses políticos acima dos ideais democráticos que procura incutir nos outros países.

Para o Daily Telegraph, Putin teria assim “ressuscitado o espectro da Guerra Fria”, pois reavivara a rivalidade militar entre Rússia e os Estados Unidos, enquanto que, para o Financial Times, “acabou a linguagem de parceria entre o Kremlin e a Casa Branca”. 

Foi o vice-presidente Dick Cheney quem provocou tudo isso, em discurso na Lituânia: “A Rússia envia sinais confusos sobre democracia, enquanto usa seus recursos energéticos para intimidar e chantagear seus vizinhos”. Referia-se às restrições impostas por Putin às ONGs estrangeiras, medidas que tinham como alvo a Freedom House, dirigida por ex-diretor da CIA. E ao fato de ele ter aumentado o preço baixíssimo do gás vendido à Ucrânia (chegaram depois a um acordo intermediário), por ter o governo desse país se afastado de sua tradicional ligação com a Rússia, aproximando-se dos países da NATO. Algo semelhante ao que fez os Estados Unidos quando, depois de romper suas relações comerciais com Cuba, pressionou outros países a fazerem o mesmo. 

Bush já vinha apoiando as oposições dos governos pró-Rússia dos países da ex-União Soviética. Usando a democracia como bandeira, Bush e aliados ganharam as eleições na Ucrânia e na Geórgia, mas perderam na Belarus. Essa bandeira foi arriada quando os Estados Unidos buscaram a amizade de governos líderes no desrespeito aos direitos humanos, como os do Azerbadijão e do Turcmnenistão A maioria destes países é de grandes produtores de gás e/ou petróleo, de que os americanos tanto necessitam. Além disso, com bases nos territórios deles, os americanos poderão facilmente bombardear o Irã e erguer, ao redor da Rússia, uma verdadeira cortina de ferro ao contrário.

Entende-se que Putin veja com péssimos olhos esta penetração no seu quintal. Os Estados Unidos também não gostariam se ele afastasse o México e o Canadá da Alca e neles instalasse bases.

Estados Unidos e Rússia também se enfrentaram em outros países. No Iraque, Putin foi contra a invasão americana e, no Irã, aliado à China, vem impedindo que os americanos levem o caso ao Conselho de Segurança. Há interesses econômicos russos em jogo.

É preciso lembrar ainda que, conquistando o Irã, consolidando o domínio sobre o Iraque e fortalecendo Israel, através da redução da Cisjordânia a um Estado emasculado pela perda das áreas engolidas pela Muralha de Sharon, os Estados Unidos ficariam senhores do Oriente Médio. Isso não interessa à Rússia, que perderia os excelentes negócios que vem tendo na região. Por isso, Putin recebeu o Hamas em Moscou e vetou na ONU sanções á Síria, acusada de embaraçar investigações do assassinato do presidente do Líbano.

Os atritos entre as duas potências deslocaram-se agora para a área militar. A Casa Branca decidiu construir um sistema de defesa antimíssil na Europa Central, teoricamente para defender o continente contra futuros ataques do Irã. O país escolhido seria a amiga Polônia, cujo governo tem criticado publicamente Putin. 

Ora, não é certo que o Irã tenha um projeto nuclear. Se tiver, sabe-se que levaria 10 anos para ser concluído, quando, então, não se sabe que governo teria o Irã… O que se sabe é que Washington não deseja que a Rússia volte a ser o que era. Um sistema antimíssil, encostado na fronteira russa (somado às bases nas ex-repúblicas soviéticas), poderia conter seus arroubos.

Os russos perceberam. O general Ivashov, do Centro de Problemas Geopolíticos, afirmou: ”Se esses planos do Pentágono se concretizarem, os Estados Unidos aumentarão consideravelmente a eficiência de sua estrutura de defesa aérea. Os mísseis lançados da Rússia serão interceptados na aceleração de sua trajetória”. Como a Rússia não dispõe de um sistema antimíssil análogo, não poderia defender-se em caso de ataque, ficando, portanto, em desvantagem.

Já em novembro do ano passado, Serguei lavrov, ministro das Relações Exteriores, advertia que os laços estratégicos entre Estados Unidos e Rússia tendiam a diminuir com conseqüências “imprevisíveis”. Não se acredita que a guerra seja uma delas. Mas é provável que os americanos tenham de dar espaço a uma potência que contesta sua hegemonia. 

Afinal, a Rússia não é um país qualquer. Além de possuir milhares de ogivas nucleares, é o segundo maior produtor de petróleo do mundo e o primeiro em gás. Ancorada nos altos preços destas matérias, ela vem crescendo firmemente. Em 2005, o PIB russo aumentou 6,4%, a renda per capita foi para 12.000 dólares, caíram a dívida pública para 12% do PIB, o desemprego para 7,6% e a pobreza para 17,8%. Sua política externa é cada vez mais desafiante, bem sintetizada por Boris Makarenko, do Centro de Políticas Tecnológicas: “Nós somos fortes, nós temos riquezas e nós as usaremos do jeito que considerarmos necessário”.

Sai de baixo.

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