De agora em diante, os países da Europa não serão mais tratados como colônias, aos quais o presidente republicano impunha posições favoráveis aos americanos, porém desvantajosas para os europeus.
The Donald acostumou-se a atacar ou ameaçar seus aliados do Velho Mundo como se fossem seus inimigos. O objetivo foi sempre o mesmo: rejeitar pleitos legítimos dessas nações, em nome dos interesses do governo e das empresas do país gerido pelo bizarro mandatário republicano.
Vide a tentativa de afundar o projeto do gasoduto Nord Stream 2, que garantirá o suprimento de gás aos países da Europa. Quando inaugurado, os preços do gás devem cair 25%, muito inferiores aos do seu concorrente de além Atlântico, o gás liquefeito. Depois de tentar assustar os europeus com um conto de fadas –o domínio do mercado de gás daria a Putin poder para mandar no continente- – Trump lançou sanções pesadas ás empresas que continuassem participando da construção do Nord Stream 2. Eufórico, Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA, bradou como um autêntico mafioso: “Agora, ou vocês caem fora, ou sofram as consequências!”
Fiel a seu “America,first”, The Donald pressionou os europeus com seu argumento preferido : as ameaças. Afirmou que sairia da OTAN, a aliança militar dos EUA com a Europa, caso os governos aliados não aumentassem seus gastos militares.
Indignado com o aumento das compras americanas de carros europeus, ele reportou à CNN, que conversara com o presidente da Comissão Europeia, deixando-o aterrorizado: “Olhe”, disse,” se nós não conseguirmos algo, eu vou ter de entrar em ação e a ação será tarifas muito altas nos seus carros e outras coisas que venham de seu país (al Jazeera, 22-01-2020).”No caso, uma sobretaxa de 25%, que deixaria os fabricantes de carros alemães, ingleses e francês abalados.
Quando o governo de Paris anunciou que iria taxar os serviços digitais, reduzindo assim os lucros das empresas americanas de tecnologia, Trump vociferou: façam isso e se preparem para pagar 100% de direitos alfandegários sobre suas exportações aos EUA! Assustado, Macron aceitou adiar seu plano para o ano seguinte.
Mais recentemente, o ocupante temporário da Casa Branca está empenhado em brecar a expansão pelo mundo da tecnologia 5G, da chinesa Huawei, maior empresa mundial de tecnologia de comunicação.
A tecnologia 5G é a próxima geração de rede de internet móvel. Prevê-se que seja 50 vezes mais veloz que as atuais redes 4G, oferecendo velocidade de até 5 GBs em condições ideais. O 5G da Huawei é mais barato e oferece financiamentos e prazos mais longos, vantagens superiores às oferecidas pelas únicas rivais, a Erickson (sueca) e a Nokia (finlandesa). Na sua campanha para prejudicar economicamente a rival China, Trump vem pressionando os países aliados para banirem a 5G da Huawei dos planos das empresas de comunicação locais. O que seria bastante anti-econômico. Como a maioria delas já tem instalada a 4G da Huawei, seria fácil e sem custo passar para a 5G da empresa chinesa. Mudar para uma 5G da Erickson ou da Nokia consumiria vários anos e custaria muito caro.
Sob pressão do governo de Washington, quase todas as nações europeias cederam e estão proibindo o uso da 5G da Huawei e irão perder muito dinheiro.
Com o advento de Biden ao poder, elas contam que ficarão livres das pressões e ameaças do America,first de Trump que as coloca numa posição inferior.
Biden deve levar em conta os interesses dos amigos da Europa, não apele ao jogo bruto para “convencê-los” a aceitar o que não lhes convém só por ser conveniente à Washington.
Há motivos para essas esperanças. O novo presidente anuncia-se firmemente adepto do multilateralismo. Sendo assim, as principais decisões dos EUA na área internacional provavelmente serão tomadas em conjunto com outros países. Biden deve buscar consensos, especialmente com a União Europeia e demais aliados de peso, respeitando direitos humanos e leis internacionais.
Se haverá desvios éticos da Casa Branca, difíceis de engolir pela comunidade internacional, é algo a conferir.
Espera-se que Biden revogue os rompimentos unilaterais do governo Trump com o Acordo de Paris, a Organização Mundial de Saúde, a UNESCO, o Comitê de Direitos Humanos da ONU e o Acordo Nuclear com o Irã, todos eles de interesse universal.
Será um passo gigantesco em relação aos EUA sob Donald Trump.
Caso reeleito, o republicano certamente não voltaria atrás em nenhuma das suas desavisadas retiradas.
Pelo contrário.
Diz Lissner, professor no Colégio de Guerra Naval dos EUA que, fortalecido por uma eventual reeleição, Trump poderia formar um realinhamento com países populistas de direita, de lideranças autoritárias, como a Índia, o Brasil, a Polônia, a Hungria e as Filipinas , mais os parceiros Arábia Saudita e outras ditaduras monárquicas do Golfo Arábico, além daqueles que se sentem ameaçados pela China, ou seja, o Japão e a Austrália, e por fim, “last but not least”, Israel.[LADE1]
Por falar em China, a guerra econômica que se trava entre EUA e esse país deve continuar. Evidentemente, Biden a conduzirá de forma mais civilizada e cuidadosa para evitar repercussões danosas incidindo até no resto do mundo.
Ninguém imagina que Joe Biden usará o farto vocabulário de ofensas e agressões do trumpismo. Nem lançará ações passíveis de incentivar um conflito armado.
Os EUA continuarão competindo com a China em todo o mundo, tendo como força principal o poder de influenciar outros países, através do seu enorme mercado interno, fonte insubstituível de lucros para a maioria das nações. Não vão também deixar de usar suas forças especiais, para manter e conquistar regimes satélites na África. No sudeste e nordeste da Ásia, a marinha e a aviação americanas estarão sempre a postos para defender e granjear aliados que temem a expansão chinesa.
Enquanto a China é um rival temível pelo poder de sua economia, a Rússia compete com Washington pelo poder das suas forças armadas.
Na luta contra estas duas potências, Trump continuaria a usar sanções, ameaças e demonstrações militares, enquanto que, com Biden, os EUA usarão mais a diplomacia, embora circunstancialmente possam também mostrar-se agressivos.
A priorização da diplomacia sobre a opção militar no trato das questões internacionais é uma das distinções básicas entre as estratégias de Biden e Trump.
Talvez seja por isso que quando os países do velho continente saudaram, eufóricos, a vitória de Biden também proclamaram por diversos dos seus dirigentes ser agora o momento certo para a Europa buscar caminhos próprios, sem depender dos EUA.
Em 2008, em Berlin, Barack Obama, referindo-se à amizade EUA-Europa, afirmou sua crença em “aliados que prestam atenção uns aos outros, que aprendem com cada um, que, acima de tudo, confiam uns nos outros.”
Com a Trump, isso não existe mais.
Cedo, os estadistas europeus começaram a descobrir que os EUA não eram mais aquela nação, solidária com os problemas europeus, ao menos nas causas em que estavam em jogo os destinos do mundo.
Foi quando Donald Trump saiu do acordo climático de Paris, demonstrando que, para ele, os lucros das empresas americanas de carvão e petróleo estavam acima da segurança do mundo, ameaçada pelo aquecimento da Terra.
Isso não passou batido.
Os líderes da Europa sentiram fundo a pancada, perceberam que o que eles esperavam dos EUA não tinha espaço no America,first de Donald Trump.
Em maio de 2017, a chanceler Ângela Merkel proclamou: “Este parece ser o fim de uma era, na qual os EUA mandavam e a Europa obedece.”
Sendo assim, a conclusão lógica foi exposta pela chanceler alemã algum tempo depois.
“As nações da Europa precisam saber que nós temos de lutar por nosso futuro e de construir nosso próprio destino como europeus”.
Enquanto ações de Donald Trump tratando os europeus como súditos, insubmissos no caso da Alemanha, cujos carros ousavam conquistar o mercado americano, os governantes europeus somaram-se a Merkel, pedindo união e independência.
Mas ficaram nisso.
Porque não foram adiante durante o governo Trump e prometem agir somente agora? Justamente quando o novo presidente promete respeitar as necessidades dos aliados europeus e decidir em conjunto com eles as questões internacionais.
Acredito que não encararam Trump simplesmente por temerem a reação do pavão entronizado na Casa Branca. Até que poderiam ter razão. Dá para esperar tudo de um presidente que manda assassinar uma alta personalidade de um país rival, disparar mísseis contra suspeitos de terrorismo, mesmo à custa de inúmeras mortes de civis inocentes,, que mandou matar o presidente Assad, da Síria conforme revela Bob Woodward no seu livro “Fear”.
Se sair do rebanho americano nos tempos de Trump representaria perigo de vida, tomar atitude semelhante agora não envolve riscos, levando em conta as ideias de Joe Biden.
Não sei se a Europa ousará dar um passo tão drástico ou preferirá acomodar-se no regaço compreensivo dos EUA de Joe Biden.