A Primavera Árabe está em jogo no Egito nas eleições presidenciais, nos dias 23 e 24 de maio.
Elas se realizam em circunstâncias tão especiais que podem fazer naufragar todo o esforço do povo egípcio para derrubar um sistema opressivo e lançar as bases de uma democracia social.
Em primeiro lugar, porque o presidente eleito não tem seus poderes definidos. A comissão constituinte nomeada pelo Congresso para elaborar a nova Constituição foi dissolvida pela Justiça que a considerou não representativa de todo o povo do país. E, por enquanto, os deputados não conseguiram concordar na formação de uma nova constituinte.
Em segundo lugar, porque não havendo constituição, a Junta Militar permanece com seus amplos poderes executivos.
Eles dizem que transferirão o governo ao presidente eleito.
Se o fizerem, o que não é certo, o que vale é a lei constitucional provisória, feita após a queda de Mubarak , na qual se permite o julgamento de civis por tribunais militares e não se toca nos privilégios da classe militar, proprietária de 20% das empresas do país.
Sem contar que nessa lei constitucional feita às pressas há inúmeros pontos obscuros que permitem interpretações contraditórias.
E quem as dirimirá senão a Justiça, a mesma da era Mubarak, da qual não se deve esperar muito, se considerarmos sua origem.
Ainda há um terceiro ponto que vai repercutir exageradamente nos votos.
Com a vitória da Irmandade Muçulmana nas eleições para as duas casas congressuais, o povo esperava que se fizesse muita coisa para a solução dos seus problemas.
No entanto, isso não aconteceu.
Inicialmente, porque a Irmandade desgastou-se tentando firmar um acordo que afastasse o governo fantoche nomeado pela Junta Militar.
E como não conseguiu, aliou-se às organizações populares numa série de gigantescas manifestações de protesto, reprimidas pela Junta Militar com uma tal violência que chocou o mundo.
O país ficou praticamente paralisado durante meses por essas manifestações que exigiam o fim do julgamento de civis por tribunais militares, a punição dos policiais e militares autores de violências, a punição de Mubarak e seus ministros mais odiados e, por fim, a saída da Junta Militar.
Esse ambiente conflagrado causou uma profunda insegurança, que se refletiu em retração dos investimentos e do turismo (grande fonte de renda nacional), piorando (em vez de melhorar) o desemprego,a inflação e o abastecimento.
Grande parte da população, acreditando que o domínio da Irmandade Muçulmana sobre as duas Câmaras lhe daria poderes para governar o país, passou a descrer de sua eficiência.
Muitos agora acreditam que partidos de ideologia declaradamente islâmica não seriam capazes de governar bem.
A isso somou-se o esgotamento do apoio da “maioria silenciosa” às grandes manifestações de protestos, consideradas por ela como excessivas e prejudiciais a um clima de tranqüilidade essencial ao desenvolvimento econômico.
E aconteceu o inesperado: dois ex-ministros de Mubarak aparecem com grandes chances de serem eleitos.
O general Shafik, que foi o último Primeiro Ministro do regime deposto, está sendo visto por muitos como uma garantia de ordem e seriedade.
Ele tem o apoio da maioria dos generais que mandam no país (o que não é pouco), dos jornais e emissoras de TV estatais e de grandes interesses financeiros. Sua campanha de propaganda é a maior, tendo chegado a publicar um anúncio de página inteira dois dias antes do pleito, o que é ilegal.
Amyr Moussa, foi Ministro das Relações Exteriores de Mubarak entre 1991 e 2000 e depois tornou-se Secretário da Liga Árabe. Nessa função, ganhou uma reputação de firmeza na defesa dos palestinos contra Israel.
É um candidato liberal-democrata, muito valorizado por sua experiência e serenidade.
Num debate pré-eleitoral, declarou que Israel era um adversário, não um inimigo.
Moussa alega que rompeu com Mubarak desde sua saída do ministério, em 2000.
A Irmandade Islâmica tem um candidato pouco carismático, o que não tem ajudado em nada na campanha.
No entanto, Morsi não pode ser descartado, pois a Irmandade, apesar das críticas que ultimamente sofreu, continua muito poderosa em todo o Egito.
São 600 mil militantes, defendendo a candidatura Morsi, a qual, aliás, tem credenciais impecáveis já que jamais teve qualquer ligação com o governo Mubarak.
O outro candidato islâmico, Abdel Fotouh, foi membro destacado da Irmandade até ser expulso por ter se lançado candidato à presidência quando esse movimento, na ocasião, pretendia ficar fora da disputa.
Fotouh é um islâmico moderado, que não governará com a sharia (leis do Alcorão), mas inspirando-se nos seus princípios. Portanto, é considerado um candidato secularista, contando com apoio de organizações revolucionárias, liberais e até com o ultra-conservador partido salafista.
Bom orador, ele é duro na contestação a Israel, a quem chamou de “inimigo”.
Quando ninguém esperava, surgiu um out-sider, o nacionalista Hamdeen Sabbahy.
Ele se apresenta como um continuador de Gamal Abdel Nasser, que governou o Egito, como um baluarte do anti-colonialismo e da redenção do povo (fez a primeira reforma agrária na África).
O famoso slogan de Nasser, “levanta a cabeça, oh irmão, porque o tempo do colonialismo já passou”, emocionou o povo. Seu enterro foi um dos mais concorrido de todos os tempos, com a participação de 8 milhões de pessoas.
Nasser ainda é um herói para os egípcios e Sabahy procura associar-se às suas qualidades – nacionalismo, coragem, honestidade, amor ao povo- deixando de lado os defeitos –culto da personalidade, centralismo, partido único.
Apesar de contar com escassos recursos financeiros, sua campanha vem deslanchando nas últimas semanas, sob o impulso de grupos de jovens das manifestações da Praça Tahir, nacionalistas, organizações de esquerda e secularistas.
É visto como a alternativa a candidatos religiosos e candidatos ligados ao regime de Mubarak.
Seu passado político é irretocável: foi preso muitas vezes por Mubarak.
Entre todos os candidatos, Shafiq é o preferido pelos EUA e Israel, por seu bom relacionamento com os generais israelenses e o Pentágono nos anos de Mubarak.
Moussa seria aceitável. Ele não estreitará relações com Israel, nem brigará com o Irã. Em compensação, deverá continuar amigo dos EUA, pois precisa de sua ajuda.
Continuará apoiando as reivindicações palestinas, mas sem agressividade.
Pode até pretender alterar o Tratado do Egito com Israel. Se o fizer, será sem traumas, de comum acordo.
Os candidatos islâmicos e o candidato nacionalista são indesejáveis para os EUA e inaceitáveis por Israel.
Todos eles apoiarão o Hamas, o Hisbolá e o Irã. Tentarão acabar ou modificar substancialmente o acordo com Israel.
A posição do Irã, obviamente, é exatamente oposta.
Para os manifestantes da Praça Tahir inaceitável é apenas Shafir.
Sua vitória, para eles, só aconteceria com fraudes.
Nesse caso, dizem seus líderes, terá de haver uma nova revolução, para que a Primavera Árabe perdure.