Dois Fantoches em Apuros

Parece o título de uma comédia. Na verdade, trata-se mais de um drama.

Karsai, presidente democraticamente eleito do Afeganistão, governa o país, com ajuda das forças da OTAN, especialmente soldados americanos, que combatem os rebeldes talibãs.
Zardari, também presidente segundo as regras democráticas do Paquistão, conta com substancial auxílio econômico e militar dos EUA.
Seriam eles fantoches?
Como se sabe, o governo Karsai depende do exército americano e da OTAN para sobreviver.
De acordo com repetidas declarações de oficiais militares, a situação no Afeganistão está melhorando claramente. Não é o que os números da própria OTAN falam. Os combates aumentaram em 21%, em relação a 2010. Prova que as coisas não andam nada fáceis.
Por isso mesmo, o general John Allen, comandante americano no Afeganistão, declarou que a permanência do exército do seu país será necessária mesmo depois de 2014, prazo que Obama deu para a retirada.
AÍ, Karsai surpreendeu: declarou que só assinará um acordo nesse sentido se os “raids” noturnos acabarem. .Este ato inesperado de coragem foi motivado pela indignação profunda dos afegãos ante os “raids”. Karsai é político, por maior que seja sua dependência aos EUA, convém respeitar um sentimento que atinge com impacto cada vez maior toda a população do seu país.
Os afegãos não agüentam mais viver sob a ameaça de, no meio da noite, serem acordados por soldados americanos que os obrigam a se levantarem, revistam suas casas e podem até arrastá-los violentamente para uma prisão onde ficarão vários dias, até serem libertados, com a explicação de que foi um engano.
Isso na melhor das hipóteses.
Pode acontecer também que os soldados entrem atirando, de casa em casa, em busca de talibãs. Havendo ou não reação, civis acabam morrendo.
Os “raids” noturnos são uma estratégia central da Guerra do Afeganistão. Orientados por informantes, as tropas americanas chegam em helicóptero às casas visadas e pegam seus moradores de surpresa. As baixas do lado dos EUA são irrelevantes, enquanto que, do outro lado, tem sido consideráveis. No ano de 2010, em 3 campanhas de 90 dias cada, 2.599 militantes foram mortos (entre os quais 723 líderes). Além disso, muitos foram aprisionados.
Diante desse sucesso, o governo Obama mais do que triplicou o número de “raids” noturnos. Um informe da Open Society Foundation estima que se realizam de 12 a 20 por noite.
O problema não é só o susto e as humilhações dos civis envolvidos pelos “raids”. Nada menos do que 1.588 foram assassinados nesse tipo de operações, em menos de 10 meses no ano de 2010.
Entre os milhares que foram levados presos para triagem, boa parte eram civis. Houve muitas detenções em massa, prendendo aldeias inteiras para interrogatórios durante períodos prolongados. Comandantes do Joint Special Operations Command (Comando de Operações Especiais Conjuntas) admitem que 50% das pessoas alvo desse tipo de operações eram civis inocentes.
Mas os EUA não deram atenção à ameaça de Karsai e declararam que os raids noturnos continuariam. “Francamente”, disse o Capitão John Kirby, porta-voz do Pentágono,”ninguém quer ver cidadãos feridos, mas os “raids” noturnos são eficientes e não resultam num grande número de vítimas civis”.
Claro, Karsai deu o dito por não dito.
Não passou muito tempo e, novamente, ele esqueceu sua condição de fantoche e aceitou firmar com seu vizinho, o Irã, um memorando de cooperação na defesa. E Karsai declarou que seu país ficaria fora de quaisquer ações hostis entre EUA e Irã.
Mas Leon Panetta, Secretário da Defesa dos EUA, logo chamou-o à realidade. Disse que continuariam os vôos de drones, a partir de bases no Afeganistão, para espionagem na região da fronteira com o Irã.
Se houve alguma objeção de Karsai, ninguém soube…
O que se sabe é que seu prestígio popular caiu bastante.
E agora falemos do outro fantoche: Zardari, presidente do Paquistão.
Seu país recebe anualmente nada menos do que 3 bilhões de dólares dos EUA, pouco mais da metade em armamentos e a parte restante em ajuda econômica.
O Paquistão é muito importante para os EUA. Além de ser um grande país (tem 180 milhões de habitantes), possui armas nucleares e extensas fronteiras com o Afeganistão.
Em troca da ajuda americana, Zardari tem acordos com os EUA que permitem o livre ingresso de agentes da CIA no país; o uso de uma base para os aviões sem piloto americanos atacarem as regiões tribais da fronteira, onde os talibãs costumam se esconder; e o policiamento dessas regiões pelo exército do governo de Islamabad.
O presidente atual, Zardari, chegou ao poder com apoio do embaixador americano, e tem procurado cumprir fielmente sua parte no acordo com os EUA.
Os primeiros problemas surgiram devido à ação dos aviões sem piloto americanos, os chamados drones.
A história dos drones começou nos tempos de Bush, em cujo quatriênio foram lançados 42 desses mortíferos engenhos. Obama foi muito além. Já no seu primeiro ano de governo, superou os 4 anos de Bush, com 53 viagens. Atualmente, é desfechado 1 ataque a cada 4 dias (dados da New American Foundation).
A Brooking Institution afirma que morrem 10 camponeses para cada talibã eliminado por drone. Segundo o Birô de Jornalismo Investigativo, de 2004 até agora, os drones liquidaram mais de 2.300 civis, dos quais 175 eram crianças. Para a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão, em 2011, somente até setembro, foram 957 os inocentes executados.
Natural que a população odeie os drones, nada menos do que 97%, segundo as pesquisas.
Tanto os militares quanto os deputados passaram a exigir o fim desses vôos, não só pelo morticínio que causam em inocentes, como também por representarem uma violação da soberania nacional.
Zardari, é claro, bem que reclamou várias vezes, mas os EUA jamais deram atenção.
Com isso, a relação americanos/paquistaneses foi se azedando até chegar a um ponto em que o Pew Research revelou serem os EUA considerados a maior ameaça à paz por 71% da população.
Sucederam-se então vários fatos que geraram novos atritos.
Um agente da CIA foi preso por ter matado a tiros dois cidadãos paquistaneses e o governo Zardari, obediente a seus aliados, arrumou um jeito de libertá-lo.
A seguir, houve a execução de Bin Laden. Enquanto os militares ficaram irritados pelas Forças Especiais americanas terem agido sem autorização do governo do Paquistão, violando portanto sua soberania, os EUA protestaram pelo fato do chefão da Al Qaeda estar há tanto tempo vivendo perto de um quartel local, sem que o exército ou a polícia tomassem providências.
Entre os militares e os americanos, Zardari optou por estes: esmerou-se em dar desculpas, prometendo um rigoroso inquérito.
Não demorou muito e aconteceu o chamado “memogate”. Um conhecido empresário informou que levara ao governo americano um memorando, ditado por Zardari, no qual denunciava-se um possível golpe militar. Segundo o texto do memorando, o presidente pedia apoio americano para derrotar o golpe e propunha-se a nomear figuras do agrado da Casa Branca para postos-chave no aparelho de segurança do país.
O presidente desmentiu tudo, mas a dúvida ficou.
Não tinham ainda os generais digerido o “memogate”, quando uma força de helicópteros americanos atacou um posto de fronteira paquistanês, matando 28 soldados.
Pressionado, Zardari ordenou a expulsão dos americanos da base dos drones, o fechamento de estrada usada para o transporte de suprimentos para o exército da OTAN no Afeganistão, além de exigir investigações e pedidos de desculpas do governo americano.
Por sua vez, altas autoridades militares anunciaram que derrubariam qualquer drone que penetrasse no espaço aéreo do Paquistão.
Obama limitou-se a lamentar as vítimas do ataque. Mas, aceitou fazer investigações, as quais concluíram que tudo foi resultado de falhas de comunicação das duas partes: dos exércitos do Paquistão e dos EUA. E a OTAN novamente lamentou o ocorrido.
É sabido que os militares do Paquistão não vão aceitar as conclusões americanas, pois garantem terem provas de que, durante as duas horas do ataque, a força americana foi repetidas vezes avisada do engano, sem interromper os disparos.
Ao mesmo tempo, o primeiro ministro Gilani anunciou que se preparava um golpe, insinuando que seria militar.
O certo é que agora os generais estão furiosos com o governo Zardari e sua submissão aos EUA. Garantem, no entanto, que respeitarão a legalidade democrática.
Convém lembrar que na recente história do Paquistão, os militares já derrubaram 3 governos eleitos.
Zardari encontra-se numa posição crítica.Totalmente enfraquecido diante do seu povo – teve 9% na última pesquisa eleitoral- vê-se seriamente ameaçado por seus agora furiosos generais.
Não será, porém, abandonado pela Casa Branca.
Trata-se de um aliado de peso. 3 bilhões de dólares ainda valem bastante.

24/12/2011

Luiz Eça

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