Bagdá vale bem muitas missas

Bush quer aumentar o poderio do exército de ocupação. E só sairá do Iraque quando forem firmados contratos PSA nas principais regiões petrolíferas do país. Garantido o botim, a América e seu satélite inglês poderão dizer adeus a Bagdá. Enquanto esse dia não chega, milhares de soldados americanos continuarão morrendo, bilhões serão torrados e o ódio aos Estados Unidos não parará de crescer no mundo muçulmano.

“O petróleo é a riqueza do povo do Iraque. Nós não invadimos o país atrás do seu petróleo”.
Colin Powell; press briefing, 10 de julho 2003”.

Quatro meses antes de Colin Powell afirmar suas boas intenções no affair Iraque, Tony Blair já havia declarado: “As rendas do petróleo, que as pessoas falsamente nos acusam de querer tomar, devem constituir um fundo para o povo do Iraque”. O tempo fez crescer os narizes desses dois estadistas. No mesmo ano da invasão, o petróleo iraquiano passou a ser gerido por um consórcio anglo-americano. E em 2006, as potências aliadas concluíram o texto de uma lei que privatiza o petróleo iraquiano em benefício das empresas petrolíferas.

Três mil soldados mortos mais o gasto de 200 bilhões de dólares (números que aumentam dia a dia), a perda do controle das duas Casas do Congresso americano, incalculável perda de prestígio interno de Bush e externo dos Estados Unidos… Aparentemente, é um preço absurdamente alto que o presidente está pagando pela ocupação do Iraque. Mas Bush não pode voltar para casa de mãos vazias. Seu plano é só sair quando puder levar consigo a chave da arca do tesouro iraquiano: sua espantosa riqueza petrolífera.

O Iraque possui reservas conhecidas de 115 bilhões de barris de petróleo (só a Arábia Saudita tem mais), ou seja, 10% do total mundial. Estimam-se em 220 bilhões de barris as reservas ainda não descobertas (Departamento de Energia dos Estados Unidos). Dos seus 71 campos petrolíferos já descobertos, apenas 24 foram desenvolvidos. O petróleo representa 70% da economia do país e 95% das rendas do governo.

Com a eleição do governo iraquiano, a exploração do petróleo do país voltou a ser feita por ele. Mas devido à falta de recursos e de técnicos qualificados (muitos foram presos ou fugiram do Iraque) e às ações terroristas, os resultados são fracos – ainda não se chegou a atingir os índices dos tempos de Saddam Hussein. 

A proposta anglo-americana é acabar com o monopólio estatal do petróleo. A exploração seria privatizada, através dos chamados contratos PSA (Production Sharing Agreements), nos quais todas as etapas ficariam a cargo de empresas estrangeiras, que reteriam porcentagens dos lucros. Isto já estava decidido desde 2003, quando um grupo de trabalho do Departamento de Estado concluiu que “o Iraque deveria ser aberto às companhias de petróleo internacionais tão rápido quanto possível depois da guerra através dos contratos PSA” (Ibrahin Bahr al Uloum, membro desse grupo do trabalho e posteriormente ministro do petróleo em 2005).

Convém informar que nenhum dos grandes produtores do Oriente Médio aceita os PSAs, apenas 12% do volume mundial são explorados assim – mais exatamente por países em situação desesperadora. Em 1999, a Rússia, então à beira da bancarrota, firmou contratos PSA com a Shell para exploração do petróleo e do gás das ilhas Sakalinas. Em 2006,porém, por pressão do governo Putin, a multinacional anglo-holandesa foi forçada a aceitar a sociedade da estatal russa Gazprom no projeto.

Nos contratos PSA que Bush pretende tornar lei, as empresas ficarão com 70% dos rendimentos obtidos até recuperarem seus gastos nas obras de infra-estrutura e instalação dos equipamentos nos campos petrolíferos. São condições espantosamente generosas, pois normalmente as petrolíferas se conformam com apenas 40%. Recuperadas as despesas, a empresa passaria a receber 20% dos lucros. Mais uma benesse! Em outros países, é somente a metade. 
Para garantir esses contratos por muito tempo, seu prazo seria de pelo menos 30 anos. Mesmo que o Iraque venha a ter nos próximos anos um governo sério, ele não poderia mudar estas cláusulas mais dignas dos 40 ladrões do que de Ali Babá.

Por fim, havendo um contencioso entre qualquer setor do governo iraquiano e as empresas petrolíferas, não seria julgado nos tribunais do país, mas por arbitragem internacional. Em outras palavras: o Iraque teria de aceitar a aplicação de leis estrangeiras em seu próprio território, uma renúncia explícita à sua soberania.

Essa lei foi discutida nas embaixadas e nos ministérios dos Estados Unidos e da Inglaterra, com participação de representantes das “big five”: Exxon/Mobil, Chevron/Texaco, Conoco/Phillips, BP/Amoco e Royal Dutch Shell. Raros membros do governo iraquiano e do congresso puderam conhecê-la. A sociedade civil iraquiana foi ignorada. Mas, em dezembro último, o jornal inglês The Independent teve acesso a uma cópia e a analisou numa série de artigos, que revelaram tudo.
Sendo a nova lei aprovada pelo Congresso, os contratos com as petrolíferas tenderiam a ser leoninos, pois a administração Maliki acha-se fragilizada, dependendo do exército da coalizão para se manter. Não teria força para, ao menos, amenizar as duras regras dos PSAs. Assim, durante anos, pode-se esperar um cenário assim:

1 – Lucros imensos para as “big five”, bem acima do normal no mercado petrolífero mundial, contrastando com imensa perda da receita a que o Iraque faria jus se os termos dos contratos fossem os vigentes no mercado;

2 – Enfraquecimento dos novos governos do Iraque, uma vez que não poderiam usar a arma do petróleo em seu favor, estando ela sob controle estrangeiro;

3 – Manutenção desse status quo pelo menos durante 30 anos – prazo dos PSAs. Se o governo tentar alterá-lo, estará violando contratos amparados pelas leis internacionais e teria de se haver com as forças americanas das bases que Bush construiu no Iraque;

4 – Controle pela Casa Branca daquela que pode se tornar a segunda mais importante região petrolífera do mundo e suprimento de petróleo garantido para atender às crescentes exigências do mercado americano. 

Claro, Bush morreu de rir quando o grupo de experts dos dois grandes partidos americanos propôs começar a retirada em 2008.

Pelo contrário, Bush quer aumentar o poderio do exército de ocupação. E só sairá do Iraque quando forem firmados contratos PSA nas principais regiões petrolíferas do país. Garantido o botim, a América e seu satélite inglês poderão dizer adeus a Bagdá. Enquanto esse dia não chega, milhares de soldados americanos continuarão morrendo, bilhões serão torrados e o ódio aos Estados Unidos não parará de crescer no mundo muçulmano.

Talvez Bush ache este preço um tanto caro. Mas o domínio dos fabulosamente ricos campos de petróleo iraquianos vale os maiores sacrifícios. Especialmente porque são feitos pelo povo americano. Não por Bush.

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