A volta dos militares egípcios.

As imensas manifestações populares, exigindo a queda de Morsi, eram parte do jogo democrático.

Mesmo quando ameaçavam com resistência civil, caso não ouvidas. Claro, que isso envolve coisas como recusa a pagar impostos, a participar de eleições, a colaborar com o governo de todas as maneiras, enfim.

Trata-se de uma opção desestabilizadora, que os Estados enfrentam com punições específicas, como auto-defesa.

A situação ficou grave quando os militares lançaram um ultimato, prometendo intervir caso Morsi não renunciasse.

Um golpe de estado virtual, que a massa oposicionista saudou e apoiou.

A Frente de Salvação Nacional, que comanda as manifestações, afirmou que, no ultimato, Exército demonstrou respeitar “os princípios da democracia e s vontade da nação como fonte do poder.”

Poucos membros demonstraram receio que os militares voltassem a comandar o país, como fizeram durante 1 ano após a queda de Mubarak.

O que levou a oposição a esquecer o que aconteceu então?

Nesse tempo, a praça Tahir foi palco de grandes demonstrações, exigindo da Junta Militar a demissão de figuras da ditadura Mubarak, que permaneciam em elevados cargos; a punição de policiais comprometidos com violências; o fim do julgamento de civis por tribunais militares e a entrega do poder a civis.

As manifestações populares foram reprimidas violentamente. Houve grande número de presos: 14.000 em 7 meses. Julgados por tribunais militares, centenas deles pegaram penas que iam de alguns meses a 8 anos de prisão.

Na maior das manifestações, o exército e a polícia mataram 38 pessoas e feriram cerca de 1.300, provocando horror internacional.

Somente depois de muitos meses de disputas, os partidos e organizações populares conseguiram impedir que os militares ditassem a nova Constituição.

Que razões tão definitivas levaram a oposição a assumir os sérios riscos de uma volta dos militares ao poder?

De um modo geral, Morsi é visto como um traidor da revolução egípcia, que não está cumprindo suas promessas de democracia.

As grandes restrições que são feitas a ele são de natureza política, religiosa e econômica.

Ele estaria pretendendo monopolizar o poder, ficando acima da Justiça. Alguns críticos o chamaram de “faraó”. A Irmandade Muçulmana, da qual Morsi faz parte, tomou conta do Parlamento e da Constituinte, impedindo a participação dos oposicionistas. Morsi nomeou para os governos dos estados e posições- chave somente pessoas da Irmandade ou aliados.

Morsi e a Irmandade estariam tentando islamizar o estado egípcio. A Constituição, feita por eles, dá a autoridades religiosas certo controle do processo legislativo e até de muitos aspectos da vida das pessoas.

Embora a maioria da população seja de religião islâmica, o Egito vem sendo um estado secular há muitos anos e a maioria da população não deseja que o regime siga o mesmo caminho do Irã.

Mas é a economia a principal causa da rejeição ao presidente.

Ela já vinha fazendo água nos últimos anos de Mubarak. A crise mundial a pôs ainda mais para baixo. E tudo ficou ainda pior com a instabilidade normal em um país em fase pós-revolucionária e com os receios dos investidores.

Claro, as grandes e continuas manifestações da praça Tahir e as brutais repressões das força de segurança contribuíram para a retração dos negócios.

Com tantos problemas, a economia egípcia está derrapando.

No ano passado, ainda houve um pequeno crescimento de 2,2%. Neste ano, deve ser negativo.

A prestigiosa instituição inglesa, Capital Economics, informou que o déficit orçamentário foi de 8%, em 2011, para 14%, em 2012. Os débitos do setor público alcançaram 80% do PIB.

A pobreza continua com os mesmos duros níveis de sempre, agravados por altas constantes nos preços dos alimentos e dos produtos de limpeza.

As atividades econômicas são prejudicadas por frequentes cortes de eletricidade e falta de combustível.

A situação do povo piorou em relação à era Mubarak. E a expectativa geral era de que, com a revolução, tudo iria melhorar…

As esperanças desfeitas causaram uma queda do prestígio de Morsi nas pesquisas – no ano de 2012, foi de 75% de aprovação a apenas 25%, enquanto a Irmandade Muçulmana tinha 28%.

E, bem mais grave, o povo agora aprova os militares – 80%, segundo recente pesquisa Zogby.

Embora a Irmandade tenha mesmo demonstrado sofreguidão ao garantir para si o domínio do processo constitucional, é inegável que Morsi ofereceu posições de destaque no governo aos líderes oposicionistas que não as aceitaram.

Quanto os artigos constitucionais contestados por conferirem poderes legais a autoridades religiosas, os partidos contra Morsi também podem ser responsabilizados, pois se negaram a participar da Constituinte.

Quanto à acusação da incapacidade administrativa de Morsi, 1 ano seria muito pouco para se esperar resultados significativos considerando as difíceis condições da economia egípcia.

Para enfrentar a crise, principal responsável pela revolta popular, o presidente buscou a ajuda dos EUA e das ricas monarquias do Golfo.

Atendendo aos interesses americanos na Palestina, agiu em favor de Israel ao manter o bloqueio de Gaza; destruir os tuneis subterrâneos por onde entravam na Faixa 30% dos bens ali consumidos e honrar o acordo de paz com Israel.

Isso apesar de se apresentar como o campeão dos direitos da população de Gaza e dos palestinos.

Mesmo insistindo em que iria reatar relações com o Irã, Morsi não o fez, o que rendeu pontos com os EUA e os países do Golfo.

Seu firme apoio aos rebeldes sírios também agradou ao Ocidente e aliados árabes ricos.

Mas Morsi não poderia decepcionar às massas que o viam como o líder do mundo islâmico.

Ele declarou em entrevista à TV americana que o Egito não seria hostil ao Ocidente, mas também não seria submisso aos EUA, como fora Mubarak.

Exemplos desta relativa independência foram a inclusão que Morsi fez do Irã em negociações de paz na Síria, propostas por ele; a condenação a Israel por suas ações na guerra de Gaza e na ocupação da Palestina; as pressões para que os movimentos pela independência da Palestina – o Fatah e o Hamas – se unissem, e as constantes reclamações de intromissão americana nos negócios internos egípcios.

Essa posição pendular não garantia a confiança da diplomacia dos EUA.

Obama continuou ajudando o Egito, com 1,3 bilhões de dólares, porém apenas em armamentos.

Apesar das promessas, nada mais foi concedido: limitou-se às promessas.

O Cairo esperava que, com o empenho da Casa Branca, o FMI concederia um crédito de 4,8 bilhões de dólares, essencial para tirar o Egito de um colapso que se avizinha e permitir um empuxo no seu crescimento.

Com urgência, pois o Egito estava perdendo seu fôlego.

No entanto, passados vários meses, com todas as exigências atendidas, o Fundo ainda falava em esperar pelas eleições parlamentares, que deveriam acontecer daqui a 6 meses.

Tarde demais.

O drama chegou ao desfecho.

As Forças Armadas formalizaram o golpe.

Decretaram o fechamento do parlamento, a anulação da constituição atual e a formação de um governo de técnicos, presidido pelo presidente da Suprema Corte.

Eleições serão em 6 meses.

Para esse período, será feita uma constituição provisória.

Quem nomeará os ministros “técnicos”? Quem serão os autores da constituição provisória? Que poderes terá presidente? Que poderes terão as forças militares agora?

Embriagados pela derrota do inimigo Morsi, os líderes liberais, socialistas, nasseristas e coptas, que formam a oposição, não devem ter as respostas.

A realidade se encarregará de lhes contar.

Não acredito que, com o afastamento de Morsi e da Irmandade Muçulmana, os militares egípcios se recolham aos quartéis.

Historicamente, em circunstâncias análogas, eles nunca fizeram isso.

Por que agora irão mudar?

A democracia de um país só se constrói através de sua prática reiterada.

No Egito, com a volta dos militares, ela pode estar saindo pela porta dos fundos.

 

 

 

 

 

2 pensou em “A volta dos militares egípcios.

  1. Excelente artigo. A grande questão é saber se a manifestação do povo nas ruas é favorável à democracia. Em princípio, sim, mas desde que não visem derrubar um regime minimamente democrático. Ora, foi isto o que vimos no Egito.
    Claramente, os egípcios não estão maduros para a democracia.

  2. Excelente artigo. Uma questão é saber se a manifestação do povo nas ruas é favorável à democracia. Em princípio, sim, mas desde que não visem derrubar um regime minimamente democrático. Ora, foi isto o que vimos no Egito.
    Outra questão é saber se um povo e a estrutura de sua sociedade já estão prontas para a democracia; se ali já existe uma ampla classe média; se o país já completou sua revolução capitalista e o controle do Estado já não é mais condição de sobrevivência dos grupos dominantes. Esse ainda não é o caso do Egito. Ali já existe uma classe média que defende a democracia, mas ao se manifestar não se mostra disposta a fazer os compromissos que ela envolve.

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