Depois de muito condenar a política de Bush no Iraque, Kerry acabou revelando algo sobre a sua. Caso eleito, trará as tropas de volta antes do fim do seu mandato (2008). Bush aproveitou a deixa. E o fez magistralmente, prometendo fazer o mesmo muito antes: em janeiro de 2006, após a posse do governo iraquiano a ser eleito pelo povo.
Marcou ainda mais pontos no jogo da sucessão presidencial americana. Para calar a boca dos que duvidavam de suas boas intenções ao invadir o Iraque, anunciou que, já em 30 de junho, com a passagem do poder ao governo iraquiano interino, o país gozaria de “soberania total”. Será que é para levar a sério?
Ao apresentar o Plano Bush na ONU, visando obter a chancela da entidade, o representante americano sofreu uma série de críticas. O embaixador chinês Wang Guangya notou que no texto do plano “a soberania completa não parece completamente refletida”.
Na verdade, muita coisa não está clara. Fala-se em “autonomia absoluta” para mais adiante indicar situações em que não é tão absoluta assim, permitindo interpretações diversas; por exemplo, atribui-se expressamente à Assembléia Nacional, a ser eleita em 2005, a função de elaborar a nova Constituição. Para a BBC de Londres, isso significa que o governo interino não terá poderes para criar, alterar ou modificar as leis básicas do país.
Teoricamente, o novo governo deverá controlar as receitas do petróleo, mas o orçamento deste ano já foi estabelecido e está sendo executado. As possibilidades de exercerem influência nesta área são mínimas – lembre-se de que a produção e comercialização do petróleo iraquiano é supervisionada por um consórcio anglo-americano.
O exército da coalizão continuará no país sendo comandado por seus próprios generais, com independência para tomar decisões. Não se sabe se o governo iraquiano terá poder de veta-las. Nem se, caso o governo peça, os exércitos de ocupação se retirarão antes de haver um governo eleito pelo povo.
Os soldados estrangeiros não estarão sujeitos à lei iraquiana. E se as infringirem? Ficará por isso mesmo? Não é especificado ainda se o governo interino poderá revogar contratos de longo prazo ou as privatizações de empresas estatais iraquiana já praticadas pelas autoridades norte-americanas.
Por tudo isso, a BBC considera que “ele (governo interino) terá poderes muito limitados, que não significam soberania no verdadeiro sentido da palavra”. O certo é que há muitos casos omissos na proposta americana que poderão no futuro gerar disputas entre o governo interino iraquiana e as autoridades americanas.
O plano do governo Bush de democratização do Iraque prevê as seguintes etapas:
– 30 de junho de 2004 – entrega do poder a um governo interino iraquiana;
– Fins de janeiro de 2005 – eleições para a Assembléia Nacional, com a função de elaborar a nova constituição;
– Outono de 2005 – votação e referendo popular da constituição;
– Janeiro de 2006 – eleição direta e posse dos novos governantes, com a saída das tropas.
A democracia prometida só seria para valer no fim do processo, em janeiro de 2006, ao ser empossado o governo eleito pelo povo.É claro, se tudo caminhar bem desde o início. Será que isso está acontecendo?
A indicação do primeiro ministro do governo interino – chefe do executivo – foi feita por Paul Brehme, governador do Iraque, Bhraimini, representante da ONU, e pelos membros do Conselho Consultivo do país. Levou-se em conta o veto americano a qualquer político xiita próximo ao Irã e adepto dos regimes do tipo islâmico. Al Alawwi, o escolhido, é xiita, como 60% do povo, mas tem uma linha política não religiosa; não tem ligações com o Irã, mas com países amigos como a Arábia Saudita e o Kuwait. Até cair em desgraça junto a Saddam Hussein, foi membro destacado do Partido Baath, de cujos ex-oficiais os americanos hoje se aproximam; tem boas relações com a CIA, que apoiou tentativa de golpe contra Hussein liderada por ele; como membro do Conselho Consultivo do Iraque, atuou na área da segurança, tendo criticado as autoridades americanas pela dispensa dos soldados do antigo exército iraquiano (coisa de que hoje se arrependem). É um homem dinâmico e eficiente, que queria muito o cargo – tanto é que pagou 300 mil dólares a um lobista nos Estados Unidos para promover sua candidatura.
É considerado um nacionalista, mas suas ligações com a CIA o tornam suspeito. A respeito do seu ministério, diz Mustafá Bakhi, editor do jornal árabe Al-Osboa (A Semana): “não é uma transferência de soberania, mas uma simples mudança de rostos, escolhidos por Paul Brehme”.
Para ter êxito em sua missão, Alawwi precisa de um clima de paz e estabilidade para as empresas crescerem e criarem empregos, para dar confiança aos investidores estrangeiros no país, para que o Estado possa recuperar os serviços públicos e para que a indústria petrolífera possa produzir e gerar divisas. Não será nada fácil.
Aparentemente, Bush mostra-se disposto à tolerância. Paz no Iraque representaria preciosos pontos nas pesquisas presidenciais, agora, mais necessários do que nunca. Não é de estranhar que ele tenha, pela primeira vez, reconhecido diferenças entre os terroristas e os insurgentes, cujas motivações ele disse entender. O comando americano planeja alterar sua linha de conduta: em vez de atacar os rebeldes, vai se limitar a proteger as instalações do governo e das empresas.
Conquistar a confiança dos radicais xiitas e sunitas, como Al Sadr, que até outro dia o general Sanchez, comandante das forças americanas, queria prender ou matar, será outra coisa. Missão impossível, se a soberania prometida para 30 de junho não for de fato absoluta.