A ovelha rebelde no rebanho americano.

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A concentração de mais 100 mil soldados russos na fronteira com Ucrânia deixou a Europa de cabelos em pé.

Liderados por Biden, a maioria dos países membros da OTAN colocou-se praticamente em pé de guerra.

Embora Putin negue que vá fazer qualquer ataque militar ao país dos cossacos, todos têm medo, alguns de virem a ser as próximas vítimas da sede por poder do autocrata. 

A América, que já vinha suprindo a Ucrânia de munições e armamentos, destinou mais 400 milhões de dólares nestas remessas. E a defesa dos países da OTAN vizinhos da Rússia deve ser reforçada por 8.500 soldados de Tio Sam.

Num lance aparentemente decisivo para deter uma eventual invasão, os EUA anunciaram sanções da pesada, com potencial para fazer Putin tremer.

Inicialmente, Biden achava o ataque russo apenas possível. Provavelmente, se trataria de uma ameaça, visando assustar a OTAN e forçar os EUA e aliados a aceitarem as exigências dele, tais como:  interrupção da expansão da OTAN, proibição do ingresso da Ucrânia na organização e  retirada dos mísseis capazes de atingir o território russo dos países onde estão instalados.

Mais recentemente, o morador da Casa Branca mudou seu discurso: na verdade, Putin pretenderia mesmo invadir a Ucrânia, o que aumentou as tensões nos países-membros da OTAN e está estimulando o empenho dos aliados em apoiar o governo do presidente Volodimir Zelensky, contra o autocrata das estepes, com acusações e armas.

Quer Biden realmente aposte ou não na invasão russa, está conseguindo formar uma grande frente político-militar ocidental, de apoio público generalizado, pronta para encarar o desafio de Putin, de cabeça erguida e mão no gatilho.

Outro objetivo fundamental de Joe Biden na crise da Ucrânia é usar o conflito  para reafirmar a hegemonia americana no Ocidente, unindo os países da OTAN, sob sua liderança, mesmo porque, parafraseando antiga propaganda dos EUA, America knows better (a América sabemais), como o mais poderoso país do mundo.

Há quem ponha em dúvida esse postulado.

A Alemanha anda saindo da casinha no affair ucraniano, desagradando os EUA e seus fiéis seguidores da OTAN.

Embora ressaltando sua disposição em somar forças com os demais membros da OTAN contra a postura agressiva dos russos, o premier Olaf Scholz  se recusa a tratar a Rússia como um inimigo agressivo e sem escrúpulos, que só entende a linguagem das armas e das ameaças. Prefere vê-la como uma importante parceira, cujo conflito com os países da OTAN deve ser resolvido através do um diálogo, não das armas e das sanções.

Recente pesquisa revela que os alemães concordam com seu primeiro-ministro: apenas 16% dos cidadãos ouvidos consideram a Rússia uma ameaça aos valores  alemães. E, para 80%, o país de Tchekov é visto como uma ameaça insignificante ou inexistente.

Contrariando o que está sendo feito pelos EUA, Scholz recusou-se a enviar armamentos para a Ucrânia e proibiu que outros países destinem ao governo de Kiev armas ou equipamentos militares originados da Alemanha.

Ele agiria em qualquer situação análoga, pois trata-se de um princípio alemão, que visa  marcar a posição do país, contrária ao uso da força na decisão de pendências internacionais.

Nos meios americanos e dos seus seguidores da OTAN esta posição causou mal- estar.

Que se intendificou raiva quando o premier Scholz começou a pôr sua teoria em prática, negando à Estônia o direito de despachar canhões Howitzer para a Ucrânia, pois seriam armamentos originários da antiga Alemanha Oriental (Reuters, 21/2/2022).

Indignado ,Artis Pabrik minisro da Defesa da Lituânia, lamentou : ”No presente momento, quando observamos o modo como eles (os alemães) estão agindo na defesas europeia e da OTAN, a postura da Bundeswehr (governo alemão),  hesitando no uso de forças militares, nós a vermos como absurda nos tempos correntes (al jazeera, 31/2/2022).”

Mas Scholz não se perturba. O princípio de restringir a exportação de itens miliares para regiões em crise é apoiado por todos os partidos no  Bundestag (parlamento), desde a extrema -direita até a esquerda radical. Com maciça posição popular a favor, conforme o revelado em pesquisa por 71% das pessoas ouvidas (The Guardian, 4/2/2022).

Oposição mais séria é o silêncio de Scholz às repetida exortações de Biden para que concorde em congelar o  NordStream2, caso os russos ataquem a Ucrânia.

O Nord Strem2 é um gasoduto da russa Gazprom, recém-construído, que dobrará seu fornecimento de gás natural à Alemanha, passando a responder por 80% das necessidades alemãs e 40% das necessidades de outros países da Europa.

Impedindo que ele comece a funcionar, a OTAN vibrará duro golpe no governo de Putin, que ficaria com um elefante branco nas mãos, que custou até agora 11 bilhões de euros. E perderia um trunfo nos seus jogos de poder com a Europa.

A Alemanha também sairá lesada pois ficaria sem segurança de disponibilização de todo o gás que precisa. Fato que se agudizará em prazo curto, quando a segunda fase do inverno russo já  mostra suas garras, passando a rondar temperaturas abaixo de zero.

A alternativa que Biden tenta montar, com gás  proveniente do Oriente Médio, especialmente do Qatar, e gás liquefeito produzido por empresas americanas, não é confiável  pois envolve  preços mais altos e, o que é pior, exige muito tempo para oferecer uma estrutura sólida, como os russos já tem há muitos anos.

Scholz tem sido pressionado pelo governo americano a concordar com a ameaça de paralisar o gasoduto russo. Talvez já, de acordo com fontes anônimas. Ele resiste, limita-se a fazer afirmações genéricas, anunciando que a Rússia poderá pagar um preço elevado, porém somente se tomar uma atitude invasora do território ucraniano.

A sanção que estabelecia o congelamento da participação da Rússia no Swift também foi mal-recebida. E não somente pela Alemanha.

O Swift é o sistema global de pagamentos que intermedeia a maior parte das transações entre bancos internacionais. É uma das mais duras sanções com que o presidente dos EUA ameaça a Rússia, caso seus soldados ultrapassem a fronteira russo-ucraniana.

Fora do Swift, Moscou não teria como comercializar petróleo e gás natural, de longe seus principais produtos de exportação. Sua economia receberia um golpe demolidor.

Scholz se opôs firmemente a esta sanção que, além de devastar a economia russa, ainda prejudicaria os países que precisam do gás e do petróleo produzidos na Rússia. Por isso mesmo, vários integrantes da OTAN fizeram sérios reparos ao uso desta autêntica “ arma do juízo final.”

Recentemente, face às sucessivas restrições de Scholz às posições dos EUA e aliados da OTAN, os aviões ingleses transportando armas para a Ucrânia evitaram voar sobre o território alemão. Temiam que a permissão do governo de Berlin demorasse um tempo excessivo a ser concedida.

Surpreendentemente, os ucranianos, os beneficiários da política de Biden, contestam a veracidade de suas previsões alarmistas.

Para o ministro da Defesa da Ucrânia faltariam motivos para justificar o temor da guerra. Afinal, a concentração de poderosas tropas russas nas fronteiras não tem nada de novo, já que algo assim já existe desde o longínquo abril de 2021, e até agora não deu em nada (Newsweek, 24/1/2022).

 Por sua vez, o chefe do Conselho Nacional de Segurança achou outros culpados pela crise: alguns países ocidentais e muitos veículos da mídia, que exagerariam o perigo por “objetivos geopolíticos” (New York Times, 25/1/2022).

Um alto funcionário americano expressou profunda irritação com a insistência do governo de Kiev ao repetir que não há perigo de ataque russo, desmentindo Biden, que, diariamente, garante o contrário. Diz essa fonte: “Nós somos seu mais importante aliado e ele (o governo Kelensky) está nos dando verdadeiros socos na cara e criando dissensões entre Washington e Kiev. É sabotagem, mais do que qualquer coisa (Washington Post, 6/2/2022).”

Exageros à parte, há razões para Zelensky criticar o alarmismo americano.

Volodimir Ischenko, sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos do Leste Europeu, garante  que o medo se espalha pela Ucrânia devido à mídia. Para ele: “este nível de histeria provoca consequências negativas e, na verdade, prejudica a Ucrânia. A moeda ucraniana está instável e se desvalorizando e os investidores estão deixando o país (al Jazeera, 28/1/2022).”

A Europa como um todo ainda não está sofrendo os efeitos da escalada russa. No entanto, ainda que a invasão não se concretize, a possibilidade de ciber ataques ou ações militares isoladas, mesmo sem mortos,  refletirá no acúmulo das tensões, com repercussões negativas na ordem econômica de países vizinhos.

Neste horizonte nebuloso, o diálogo da OTAN com a Rússia, não deveria focar apenas no encontro de soluções do presente impasse, mas incluir a busca de um entendimento completo com a Rússia, como defende o premier alemão.

Só assim a Europa estaria livre de frequentes e danosos problemas com Moscou.

É possível que Biden deseje ver a Rússia bem longe do convívio com os países europeus. Afinal, se trata do inimigo número 2 dos EUA, ainda mais indesejável agora que Putin firmou um acordo de amizade inabalável e irrestrita com Xi, o presidente da China, inimigo número 1 de Tio Sam.

No último ano de Merkel no governo da Alemanha, ela se aproximou de Putin, enfatizando a importância de se tentar melhorar as relações da Euro-russas.

Deu continuidade a seu posicionamento nos tempos execráveis do presidente Trump.

Quando ele começou a  sancionar o Nord Stream2, a ex-chanceler alemã não deixou passar batido: “Está na hora da Europa tomar seu destino em suas próprias mãos.”

Não parou aí. Em maio de 2017,  proclamou: “Este parece ser o fim de uma era, na qual os EUA mandavam e a Europa obedecia.”

Em outras ocasiões, sua pregação foi no mesmo tom: ”A Europa tem de agir em conjunto e falar com uma só voz“.

E mais adiante“As nações da Europa precisam saber que nós temos de lutar por nosso futuro e de construir nosso próprio destino como europeus”.

Olaf Scholz, então ministro das Finanças do governo Merkel, ecoou sua chefe, acusando as sanções anti-Nord Stream2 de Trump de serem “uma severa interferência nos assuntos europeus e alemães.” Concluindo: “É tempo da Europa afirmar seu poder. Ela não pode tolerar um tal ataque na sua soberania energética.”

 Agora, como primeiro-ministro, ele não parece ter mudado.

 Só que, com o governo Biden, a tese da independência europeia perdeu o ímpeto. A relação de respeito do presidente americano em relação aos aliados, e sua manifesta intenção de decidir em comum com os parceiros, nem sempre praticada, dificultam a bandeira de independência.

Na verdade, o atual governo dos EUA costuma tomar as posições mais convenientes ao seu país e orienta seus aliados a segui-las, como se fossem do interesse deles. É o que eles fazem, pois ainda se sentem inseguros, sem a proteção do colosso yankee.

De um modo geral, o premier alemão aceita a liderança americana. Não vivemos o momentum da tese de união da Europa, com força e economia poderosas em condições de definir e seguir seu próprio caminho. 

.No entanto, em questões pontuais, quando está em jogo o interesse alemão, Scholz sai do rebanho, discretamente se possível.

 O caso do conflito da Ucrânia é emblemático.

Ao se recusar a enviar armas ao governo de Kiev e proibir que outros países o façam, usando armas de origem alemã; ao se manifestar contra a expulsão da Rússia do Shift; ao substituir a propaganda de guerra pela defesa do diálogo com Putin e ao insistir na liberação do Nord Stream 2, o chanceler alemão caiu em desgraça com os EUA, do fiel Reino Unido e dos países da OTAN mais radicais no ódio à Rússia, ou seja, a Estônia, a Lituânia e a Polônia.

Nos países ocidentais, começou a ganhar força uma onda de censuras a  Scholz, alimentadas pela imprensa internacional e pelos membros do War Party americano, a qual parece ter refluído depois do chanceler assegurar sua plena integração na OTAN e no alinhamento aos EUA.

Foi uma mudança apenas formal, já que as criticadas posições pontuais do governo  alemãs continuam de pé.

Breve, haverá outros motivos para a Alemanha se sentir desconfortável no rebanho dos EUA.

Espera-se que seu premier saiba lidar com a situação, sem sair tosquiado.

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