Irmandade Muçulmana: quem te viu, quem te vê.

Anteontem, uma multidão que tentava invadir o Parlamento egípcio, reclamando a retirada imediata dos militares do poder, foi detida por centenas de membros da Irmandade Muçulmana.

Não foi um simples debate, houve luta e muitos feridos.

A razão invocada pela Irmandade para justificar esta posição contra seus aliados e a favor dos adversários foi pragmática. No fim do ano passado, acertara um acordo no qual a Junta Militar que governa o país concordava em entregar o governo ao presidente eleito, após a promulgação da nova constituição, em junho.

Para os líderes da Irmandade, era melhor do que nada, pois na opinião deles, os militares não largariam o governo agora, e sob pressão popular intensa, poderiam acabar endurecendo sua posição e resolver permanecer “ad aeternum”.

Essa postura moderada da Irmandade Muçulmana contrasta com seu tradicional radicalismo.

Ela foi fundada em 1928, no Egito, por um intelectual e professor, Hassan al-Bana, com o objetivo de lutar pela criação de um estado islâmico, subordinado à Sharia – conjunto de leis do Alcorão, que controlaria tanto o governo, quanto a sociedade.

Desde o início, a Irmandade mesclava ações políticas com assistência social, oferecendo hospitais e escolas gratuitos para os pobres. Deu certo: em 1940, com 12 anos de vida, já contava com 2 milhões de membros.

Estando o Egito sob domínio dos ingleses, a Irmandade combateu-os com atentados terroristas, o que a pôs fora da lei até a independência do país.

Mas o novo governo egípcio não tolerou suas manifestações radicais e dissolveu a organização, prendendo seus ativistas.

A Irmandade apoiou a revolução de 1952, que derrubou a monarquia, ganhando outra vez a liberdade, que, aliás, durou pouco. Uma tentativa de assassinato do Presidente valeu-lhe nova proibição e prisão de líderes.

No governo Mubarak, a Irmandade continuou proibida. No entanto, muitos dos seus membros se candidataram nas eleições parlamentares de 2005. Apesar das fraudes generalizadas garantirem a vitória do governo, a Irmandade elegeu 88 candidatos (20% do total), enquanto os demais grupos de oposição elegeram apenas 14.

A Irmandade seguiu fora da lei, com seus membros presos e torturados, mas não deixou de agir. Devido ao pouco espaço aberto na política, concentrou-se nas ações de caridade, ajudando a população pobre.

Em 2007, divulgou sua nova plataforma política. Entre outras medidas, propunha a formação de um conselho de clérigos muçulmanos para supervisionar o presidente, o qual só poderia ser um muçulmano. Embora propondo igualdade entre homens e mulheres, estas não poderiam ser presidente porque os deveres religiosos e militares do cargo conflitariam com sua natureza e papel social.

No advento da Primavera Árabe, a Irmandade manteve-se, inicialmente, à parte. Mas logo passou a participar ativamente das manifestações de protesto. Sua organização, que estava intacta, conferiu-lhe poder para colocar-se na primeira linha dos rebeldes. Foi decisiva na recusa à renúncia de Mubarak, em favor do vice, o general Omar Suleiman, ex chefe da polícia secreta, que torturou muitos suspeitos de terrorismo, trazidos pela CIA por avião, nos tempos de Bush.

No movimento que se seguiu à queda de Mubarak e à ascenção dos militares ao poder, esperava-se que a Irmandade Muçulmana, dado seu passado radical, liderasse as ações mais violentas contra o despotismo que o governo militar vinha revelando.

Para surpresa geral, ela mostrou-se moderada, procurando conseguir acordos e só partindo para a confrontação em circunstâncias especiais.

Surpreendeu também a declaração de Issan al-Aryan, do Comitê Central: “Nós queremos um estado civil, baseado nos princípios islâmicos. Um estado democrático, com um sistema parlamentar, com liberdade para formar partidos, liberdade de imprensa e um judiciário independente e honesto.”

Bem diferente das primeiras proposições da Irmandade Muçulmana que visualizavam um estado islâmico ( e não civil), subordinado à Sharia(e não baseado nos princípios islâmicos).

Em novembro, os militares apresentaram, através de um fantoche civil, um documento que lhes dava poderes de vetar as leis da futura constituição e de indicar 80 dos 100 constituintes a serem nomeados pelo parlamento; autoridade exclusiva para aprovar qualquer lei relativa a assuntos militares internos; proibição do presidente e dos deputados de inspecionar os orçamentos militares; prazo até 15 de maio para a Constituição ser redigida, caso contrário, em 6 meses o governo militar nomearia pessoas de confiança para fazer sua elaboração.

Eram condições inaceitáveis. O povo egípcio levantou-se em revolta, reprimida pelas forças de segurança com extrema violência, que causou muitas mortes e feridos.

Assustados com as repercussões mundiais, os militares abrandaram e aceitaram um acordo com a Irmandade Muçulmana, prometendo passar o poder em junho ao presidente, com a garantia de que não seriam processados pelas violências cometidas.

Poder que iria para a Irmandade Muçulmana, pois o Partido da Paz e da Justiça, por ela fundado, vencera  as eleições parlamentares, com 45% dos votos e certamente liderará a coligação que será formada.

Para muitos analistas, a batalha pela democracia no Egito ainda não foi vencida.

Os militares já descumpriram muitas promessas; poderão negar-se a sair.

Os EUA têm mantido os acordos militares que tinha com Mubarak: 3 bilhões de dólares em armamentos anualmente. No Partido Democrata dos EUA há importantes líderes que vêm a Irmandade Muçulmana com bons olhos. Apoiar seu futuro e eventual governo seria uma forma de Obama justificar, pela primeira vez, as promessas de amizade com os árabes que fez no famoso discurso do Cairo. E mostrar que os EUA não pretendem mais apoiar apenas ditadores amigos no Oriente Médio.

Os líderes da Irmandade tem se mostrado extremamente pragmáticos. Souberam adaptar as ideias e os métodos do seu movimento à atualidade. Tudo indica que farão o mesmo quando tiverem de lidar com questões de governo.  Na difícil situação econômica em que se encontra o Egito, não poderão se dar ao luxo de rejeitar investimentos e empréstimos externos.

Quanto à política no Oriente Médio, a independência da Palestina e o fim do bloqueio de Gaza, terão firme apoio do novo Egito. Ainda mais porque o Hamas origina-se da Irmandade Muçulmana, com a qual mantém fraternal aliança.

O Tratado com Israel não deverá ser revogado, mas certamente terá de sofrer modificações que Telaviv poderá ou não achar aceitável.

No governo Mubarak, as relações com o Irã foram minimizadas. Possivelmente, isso não acontecerá num Egito governado pela Irmandade Muçulmana, que, pelo contrário, poderá  reforçar os laços políticos e econômicos entre os dois países.

A Irmandade Muçulmana existe em todos os países de religião islâmica (inclusive da África) e mesmo entre os imigrantes que vivem nos EUA e na Europa.

Na Tunísia, o Ehnnada, inspirado na Irmandade obteve 37% dos votos, conseguindo o primeiro lugar. As posições do seu líder foram extremamente moderadas. Prega a democracia, as liberdades de imprensa, de formar partidos, de expressão e até a igualdade dos sexos.  Claro sempre se baseando nos princípios do Corão.

Gadhafi perseguiu os seguidores da Irmandade na Libia, prendendo 200 e forçando centenas a se exilarem.

Eles voltaram com a revolução. E vieram fortes, pois, apesar da repressão, contam com dezenas de milhares de membros.

Sua disposição também aqui é pacífica. Disse Abdelkader, um dos seus chefes: “Não queremos substituir uma tirania por outra. Todos juntos, vamos construir uma sociedade civil que use o Islam moderado na sua vida diária.”

A Irmandade Muçulmana é muito forte no Kuwait, onde deve ser o partido mais votado nas próximas eleições.

Na Síria, na Argélia, na Arábia Saudita e no Yemen ela se opõe aos respectivos governos, que, ora a toleram, ora a põem fora da lei.

O Hamas, que governa a faixa de Gaza, é um aliado muito próximo da Irmandade.

Apesar de existir em praticamente todo o mundo, a Irmandade Muçulmana não tem uma coordenação internacional. Existem, é claro, contatos entre líderes e ativistas dos vários países. Daí porque em quase todos eles, a Irmandade ter suavizado seus métodos e ideias, privilegiando a democracia e o apoio à independência, sem subordinações a impérios. Por esses motivos, ela se vincula diretamente à Primavera Árabe.

Há quem ache excessiva sua moderação e seu pragmatismo, particularmente no Egito, mas o tempo dirá se a Irmandade Muçulmana que se vê hoje será mais eficiente do a que foi vista no passado.

 

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