Depois de derrubarem o rei Farouk e proclamarem a república egípcia, os militares assumiram o governo do país.
A partir da ditadura de Mubarak, foram também ocupando um grande espaço na economia.
Hoje eles controlam fábricas, estabelecimentos comerciais e agrícolas, além de empresas de prestações de serviços, representando entre 30% e 40% da economia nacional.
Quando Mubarak passou a ser odiado por sua corrupção, pela pobreza e desigualdade crescente e a economia em retração, o povo se revoltou.
Em 2011, desafiando a repressão do governo, milhões de pessoas encheram a praça Tahir repetidas vezes, exigindo a queda do ditador e a instauração da democracia.
Vivíamos o início da Primavera Árabe e a opinião pública internacional acompanhava com aprovação a rebelião pacífica do povo egípcio.
Os militares notaram que estavam no bonde errado.
Trataram de descer.
Perdendo o apoio deles, Mubarak caiu.
Na fase de transição para a democracia, formaram-se partidos, dos quais o mais poderoso era o da Irmandade Muçulmana. Ela elegeu Morsi presidente, no primeiro pleito democrático do país, além de fazer a maior bancada de deputados.
Apesar das esperanças do povo, Morsi não deu certo.
A Irmandade Muçulmana quis governar somente com os salafitas, a mais radical das seitas islâmicas. Com isso, assegurou o controle do Legislativo mas ganhou um aliado incômodo, com posições religiosas exageradamente conservadoras, mal vistas pelos partidos seculares.
Desse modo a oposição ganhou força. Cresceu ainda mais, quando Morsi tentou aumentar seus poderes.
Enquanto isso, ele se mostrava impotente para recuperar a economia, cujos problemas herdados do governo Mubarak agravaram-se.
E os tão esperados benefícios sociais não aconteceram.
O povo egípcio não perdoou, voltou à praça Tahir, gritando seu descontentamento.
Os militares viram sua chance de recuperar o poder político.
Em 2013, promoveram um golpe de estado que foi apoiado pela população desiludida.
Seu chefe, o general Sisi, assumiu o a chefia do governo, prometendo reformar a economia e melhorar a vida do povo egípcio.
No entanto, seu objetivo imediato era destruir a Irmandade Muçulmana por ser a única força capaz de se opor aos militares.
Nisso foi bastante eficiente.
As forças de segurança reprimiram a bala duas grandes manifestações de protesto da Irmandade, matando centenas de pessoas.
Somente numa dessas manifestações, foram mortos 600 civis, alvejados por soldados e policiais.
Nem um só foi punido.
A perseguição contra os membros da Irmandade Islâmica continuou extremamente dura. Justificando-a, o governo os acusou de terrorismo, associando-os a atentados terroristas praticados na região do Saara.
Não era verdade, os terroristas são grupos jihadistas fundamentalistas, que nada tem a ver com a Irmandade, a qual rejeita os métodos e princípios radicais dessa gente.
Mas as constantes violações dos direitos humanos do governo militar não pegavam bem junto à comunidade internacional. Os militares alegaram que precisavam ser adotadas para garantir a ordem, numa fase de transição.
A democracia logo seria institucionalizada.
E, em maio de 2014, eles promoveram eleições presidenciais, que viriam legalizar o novo regime egípcio.
Sissi candidatou-se, apresentando-se como o homem do destino que salvaria o Egito do desastre causado pelos políticos.
Uma vasta campanha de propaganda em Tvs, Rádios, jornais e cartazes glorificava o patriotismo e a dignidade do general Sissi e o exaltava como um novo Nasser (o grande herói da república egípcia).
O povo foi sensível a esse bombardeio publicitário.
Com suas esperanças renovadas, a maioria aceitava que nada importante fora resolvido até então pois o governo militar tivera apenas um ano para trabalhar.
Sissi concorreu contra um único opositor, a maioria dos líderes adversários estavam exilados no exterior, presos ou mortos.
Sua vitória era inevitável e o secretário de Estado americano, John Kerry, a saudou, alardeando que a democracia chegara ao Egito.
Não foi bem assim.
A repressão contra os membros da Irmandade Muçulmano foi alargada para atingir toda a oposição.
Os grupos liberais e esquerdistas e os ativistas jovens, que tanto haviam se destacado na praça Tahir, tiveram um tratamento semelhante ao dos membros da Irmandade.
Torturas, espancamentos e detenções ilegais se sucederam.
Em 2013, os cárceres estavam lotados por 40 mil cidadãos.
Mais 20 mil juntaram-se a eles, em 2014.
Entre 2013 e 2014, as forças de segurança assassinaram cerca de dois mil. Paralelamente o direito de reunião foi praticamente suprimido por lei, a liberdade de imprensa foi solapada, com dezenas de jornalistas presos somente por comentários que desagradaram às autoridades.
Os tribunais, formados por juízes conservadores e ligados aos militares, já condenaram, sem respeitar as exigências legais, milhares de pessoas a pesadas penas, inclusive centenas condenadas à morte (a Suprema Corte suspendeu a maioria das condenações extremas).
“Este regime é mais violento do que Mubarak”, declarou ao The Telegraph, Hazim Abdel Azin, sintetizando as opiniões da maioria dos que , tendo inicialmente apoiado Sissi , sentem-se agora totalmente decepcionados.
Parece que os EUA não vêm as coisas assim.
Diante da sucessão de violações aos direitos humanos dos egípcios, o governo Obama apresentou várias vezes os já tradicionais “lamentos”, “preocupações” e até (em casos raros) ”condenações”, apelando sempre para que Sissi e seus militares abrandassem seu entusiasmo repressor.
A realização de eleições bastou para Washington justificar o envio de um bilhão e quinhentos milhões de dólares em equipamentos militares, escapando assim da própria lei americana, que proíbe ajuda militar a regimes oriundos de golpes de Estado.
Por sua vez, desde 2013, a Arábia Saudita e os Emirados do Golfo, inimigos jurados da Irmandade Muçulmana, acorreram com generosa ajuda à ditadura militar: nada menos do que 50 bilhões de dólares.
Como naquela época as reservas do governo atingiam 20 bilhões de dólares (hoje são apenas 5,15 bilhões), adicionando-os aos 50 bilhões dos países árabes amigos, Sissi e os seus companheiros dispunham de 70 bilhões de dólares para encarar os desafios de uma economia em apuros e das seríssimas carências sociais.
Não fizeram grande coisa com todo esse dinheiro.
A crise econômica tornou-se ainda mais grave do que nos tempos de Morsi.
Em 2016, a dívida externa egípcia foi de 48 bilhões de dólares para 55,7 bilhões até outubro. Nos últimos cinco anos, esse valor aumentou em 21 bilhões de dólares.
A inflação que era de 9%, em fevereiro de 2016, seis meses depois chegava a 16,45%. E seguia subindo.
As melhorias sociais tornaram-se promessas vazias.
O desemprego (segundo dados oficiais discutíveis) já superou 13%, atingindo duramente os jovens. Cerca de 30% deles estão sem trabalho.
E 28% da população vive abaixo da linha da pobreza.
Há escassez de alimentos e de medicamentos em todo o Egito enquanto os preços sobem sempre.
Diante dos indicadores negativos, o governo pediu socorro ao FMI.
12 bilhões de dólares foram concedidos, porém, o país teve de aceitar um programa de medidas de austeridade rígidas, que tornará as condições de vida do povo ainda mais penosas a partir dos próximos meses.
O povo sente que foi novamente enganado.
O descontentamento acentua-se dia a dia.
Sentindo a barra, Sissi acaba de prometer revisar a lei que restringe profundamente os direitos de protesto. Aventou ainda a possibilidade de libertar jovens presos por crime de opinião.
Não parece que vá adiantar.
Muitos grupos pensam em voltar à praça Tahir, repetindo as manifestações que já derrubaram dois governos.
Mas as condições são desfavoráveis.
Os militares perderam parte de sua arrogância, a realidade desastrosa que criaram não lhes dá moral para reprimir massas revoltadas.
No entanto, duvida-se que eles se deixem afastar facilmente das posições de mando.
Mesmo porque, como disse ao The Telegraph o ativista Abdel Azim : “Não há nada que se chame de oposição. Todas as forças políticas estão ou desesperadas ou dispersas. ”
Existem atualmente 60 mil prisioneiros políticos, inclusive os líderes mais expressivos.
Sem eles, quem vai liderar novamente os indignados da praça Tahir?
É fato que, nos últimos meses, espalham-se manifestações de protesto em várias regiões do país.
Na maior delas, em Port Said, uma multidão bloqueou as principais ruas da cidade cantando “queremos os nossos direitos” e pedindo a renúncia de Sissi. Alguns grupos de ativistas exigiram em público a demissão do prefeito.
Há algum tempo atrás, ninguém teria coragem para fazer tudo isso.
Agora, o clima parece estar mudando.
No Cairo, corre de boca em boca o chamado para uma grande manifestação em 11 de novembro.
Será um teste para aferir o tamanho do descontentamento popular.
Se o governo Sissi permitir e o povo comparecer em massa poderá ser o começo do fim de mais uma ditadura militar egípcia.
Quem sabe, a última.