Sair, sem sair.

Para Barack Obama, a retirada americana em 2014 é muito importante.

Ele vem garantindo isso repetidas vezes pois é algo que agrada ao povo e, portanto, influi nas decisões de voto nas eleições de novembro.

Há também o fator economia, já prevista nos seus planos de governo, que aliviará o país de uma pesada carga financeira.

Previdente, ele começou a discutir os termos da retirada das tropas com o Presidente Karsai há cerca de um ano atrás.

Por enquanto, nada feito.

O acordo final esbarra em duas exigências de Karsai : a detenção de civis somente por policiais ou soldados afegãos e o fim dos raids noturnos.

Este último ponto é o grande pomo de discórdia.

Na verdade, a retirada das tropas americanas não será total.

A maioria dos 90 mil soldados irão embora, sim, mas Obama pretende manter, até sabe Deus quando, unidads das Special Operation Forces (SOF) e a aviação, justamente os responsáveis pelos raids noturnos que o povo afegão odeia.

Ninguém gosta de ser acordado no meio da noite, sua casa revistada, a família assustada e você levado à força para uma prisão onde ficará por tempo indeterminado até acharem que você é inocente.

Os raids noturnos tem se realizado com grande frequência. Em 2010, por exemplo, houve 3 campanhas, totalizando 270 dias, com 12 a 20 operações por noite. Sem a precisão cirúrgica alardeada por Obama. Comandantes americanos  estimam que cerca de 50% dos cidadãos presos nos raids são posteriormente soltos por falta de evidências.

Karsai aceita que os raids passem a ser efetuados por tropas afegãs, treinadas por americanos. Pensando, talvez, em limitar o número de ações ao máximo.

Mas, o Comando do exército dos EUA não aceita nem acabar com os raids, nem treinar afegãos para que os assumissem.

A esse respeito, lembro o que diz o Coronel Davis no relatório que apresentou sobre a campanha do Afeganistão: “Numa série de missões de grande importância, o Exército Nacional Afegão e a Polícia Nacional Afegã muitas vezes fugiram do combate, fugiram devido a boatos  ou fizeram acordos secretos com o Talibã.”

É preciso convir que os americanos podem ter razão em não querer confiar sua mais eficiente arma a soldados afegãos.

As restrições de Karsai aos raids noturnos são feitas para atender às inúmeras reclamações do seu povo que, afinal, vai decidir quem será o próximo governo.

No entanto, Karsai não tem como continuar resistindo, pois ele sabe que, sem os americanos, ele não durará nem um ano no poder.

De repente, surgiu outro grave problema atrapalhando os planos de Obama de sair do Afeganistão, sem deixar de controla-lo.

Nas discussões do Afeganistão pós-retirada americana, havia algo que as duas partes consideravam fundamental: o trabalho dos assessores e instrutores.

Atualmente eles são muitas centenas, atuando nas mais diversos áreas, desde o treinamento das tropas afegãs, até pesquisas geológicas e assessoria no setor da Administração Pública.

Eles trabalham conjuntamente com técnicos afegãos com o objetivo de construir um governo bem organizado, suficientemente forte  e eficiente para resistir à ameaça dos talibãs e enfrentar os problemas mais agudos da população.

Até então parecia que esse trabalho em parceria ia razoavelmente bem, embora nesses 11 anos de ocupação, soldados ou policiais afegãos, ou milicianos disfarçados com uniformes militares, mataram a tiros cerca de 75 assessores e instrutores dos EUA e dos outros países integrantes das forças de coalizão.

No episódio da queima do Alcorão aconteceu algo particularmente sério.

Dois assessores militares americanos de alta patente foram assassinados, com tiros nas costas, dentro do Ministério do Interior, um dos locais mais fortemente guardados de Kabul. Por isso mesmo, ficou evidente a responsabilidade ou cumplicidade de parte dos soldados e oficiais afegãos encarregados da segurança.

Horas depois dos corpos dos militares americanos serem encontrados, o general John Allen, comandante em chefe das tropas dos EUA ordenou a retirada para os quartéis das centenas de assessores que trabalham nos ministérios “por óbvias razões de segurança”. Os comandantes dos exércitos do Reino Unido, da França, da Alemanha e do Canadá o imitaram em suas regiões de atuação.

Os assessores deverão voltar ao serviço em breve, quando o clima de ódio gerado pela queima de exemplares do Alcorão.

Um assessor de nível sênior informou que os assessores e instrutores deverão passar a usar coletes a prova de balas e viajar somente em grupos, com escoltas armadas. Além disso, será necessário marcar hora para visitar os ministérios e reduzir ao máximo o contato diário com afegãos.

De qualquer modo, é inegável que foi perdida a confiança.

Para Martin van Bijlert, co fundador da Afghan Analyst Network, “a grande questão é: continuará havendo um relacionamento que permita o trabalho (dos assessores)? Penso que é possível. Mas nunca será como antigamente.”

Nesta fase de transição, o trabalho dos assessores é crucial. Os instrutores precisarão conseguir que os militares afegãos estejam aptos a substituir os contingentes dos EUA que forem se retirando. E os assessores nas áreas administrativas deverão ir completando os projetos a que se dedicam, inclusive o treinamento do pessoal afegão que ficará em seu lugar.

Isso até 2014, quando as tropas americanas e da OTAN embarcarem para seus países de origem..

Além da desconfiança existente entre afegãos e assessores americanos, será preciso vencer a corrupção da burocracia estatal.

De acordo com um relatório do Banco Mundial, as crianças afegãs sofrem um dos piores índices de desnutrição crônica do mundo. Mais da metade das que tem menos de 5 anos vivem uma situação de fome permanente, apesar dos bilhões de dólares que foram enviados para ajuda alimentar, durante os a nos de ocupação.

Uma das razões principais é que grande parte do dinheiro desaparece nas mãos de funcionários afegãos desonestos.

Josephine Bassinette, do Banco Mundial, aponta outra razão: “A ajuda estrangeira vai em quantidades desproporcionais para as províncias onde há concentração de tropas e a luta tem sido mais pesada. Mas, a análise neste relatório mostra que os índices de pobreza e insegurança alimentar são na verdade mais altos nas províncias mais pacíficas.”

Aí o projeto de combate à fome falhou por ter sido subordinado a interesses militares. No caso, usar a distribuição de alimentos ao povo para ganhar seu apoio na luta contra os talibãs.

Evidentemente, Karsai gostaria que as tropas americanas saíssem do Afeganistão sem deixar um só soldado.

Mas ele sabe que até 2014 seus soldados não estarão em condições de enfrentar os talibãs.

Por isso, precisa dos americanos e aceitará a continuação dos raids noturnos, por mais que enfureçam os cidadãos.

Por sua vez, Obama sabe que terá de manter parte de suas tropas, por tempo indefinido, gastando preciosos dólares e perdendo soldados, se quiser manter o Afeganistão alinhado com a América.

Problemas de relacionamento com o povo afegão, ele deve ter percebido, são inevitáveis.

O caso da queima do Alcorão e seus reflexos na segurança dos assessores vão forçosamente reduzir o ritmo de construção do novo Afeganistão que ele visualiza.

2014 está chegando e Obama não pode perder tempo.

 

 

Um comentário em “Sair, sem sair.

  1. Tenho acompanhado as notícias do seu site, mas sinto falta de seus comentários mais coloquiais de antes!
    Inclusive, aquelas informaçôes sobre a Guiné E quatorial, são absolutamente incríveis! Mas são verdade!!! A gente fica indiganada!

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