Quando em operação, o gasoduto russo Nord Stream 2, iria garantir o suprimento de gás a toda a Europa, e a preços baixos.
De olho no interesse das empresas americanas concorrentes, o ex-presidente Trump procurou convencer as empresas europeias envolvidas no financiamento e na construção desse gigantesco gasoduto a se retirarem do projeto.
O que seria o fim do Nord Stream2.
Como não conseguiu nada, The Trump fez jogo bruto: lançou fortes sanções contra quem persistisse a continuar no projeto, desobedecendo sua orientação.
Seus parças reforçaram o chefe.,
Dirigindo-se aos europeus ameaçados, Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA, rugiu, no legítimo estilo celebrado por Al Capone: ”Caiam fora, ou arrisquem as consequências (FP, 20/7/2020).”
Os europeus subiram pelas paredes, por esse desrespeito à soberania das suas nações.
O primeiro-ministro Olaf Scholz, então ministro das Finanças alemãs, considerou as sanções “uma severa interferência nos assuntos europeus e alemães.” E concluiu: “É tempo da Europa afirmar seu poder. Ela não pode tolerar um tal ataque na sua soberania energética.”
E a grande Angela Merkel ergueu sua voz dramaticamente:” Está na hora da Europa tomar seu destino em suas próprias mãos.”
Trump não se tocou. Dando certa sua chantagem, o bilionário mercado europeu ficaria aberto para as concorrentes americanas deitarem e rolarem.
Pode ser pouco ético, mas era lógico para um presidente cujo lema era America,First (e que os europeus se virassem…).
Com certeza não seria ético, nem lógico que o presidente Biden imitasse seu rival.
Mas, em tom sério ele declarou a jornalistas: ”as outras nações seguem nossa liderança porque sabem que a América não protege simplesmente seus interesses, mas tenta promover as aspirações de todos (New York Times, 12/2/2020).”
Biden e seus próximos vivem replicando esse conceito da sua liderança.
No entanto, os fatos nem sempre batem com as palavras.
Aconteceu na Guerra da Ucrânia.
Veio a invasão russa e Biden comandou a reação, sendo sua liderança prontamente aprovada pelas potências da Europa, que viam nos EUA sua proteção contra o expansionismo de Putin.
Todas elas concordaram em condenar a ação brutal do Kremlin, enviar armamentos para os ucranianos se defenderem e aplicar sanções para destruir as forças e a economia moscovitas.
Nesse último ponto, talvez não tenha sido uma decisão exatamente multilateral, já que foi tomada unilateralmente por Biden. Mas, os europeus aceitaram logo. Até mesmo a proibição de importar petróleo e gás da Rússia, apesar de serem produtos indispensáveis à maioria dos países do Velho Continente.
No caso do gás, a situação poderia ficar catastrófica.
Com a chegada do inverno no hemisfério norte e suas temperaturas abaixo de zero, os europeus arriscavam-se a virar sorvete se não contassem com o aquecimento, até então garantido pelo gás russo.
Tendo obedientemente cortado suas compras desses seus fornecedores habituais, os europeus foram obrigados a mudar para o gás liquefeito americano.
E se deram muito mal.
Têm de pagar quatro vezes mais do que pagavam pelo gás dos russos, preços oito vezes maiores do que os vigentes nos EUA (Le Monde, 17/9/2022).
Claro, isso é um maná para os empresários americanos do setor, que conquistaram o mercado europeu sem precisar fazer força.
Eles estão vendendo como nunca. De uma parcela irrisória do consumo europeu, passaram a dominar 70%, cobrando preços com margens de lucro jamais sonhadas. Para esses felizes cidadãos, a guerra na Ucrânia não é um inferno, mas um paraíso.
Os dirigentes europeus passaram a reclamar dessa situação injusta.
Diplomaticamente; Macron, o presidente da França, chamou os altos preços americanos de “nada amigáveis”.
Em 1 de dezembro, o primeiro-ministro da sempre cordata Bélgica, Alexander Croo, disse à imprensa que os preços do gás e da eletricidade estão tão fora das proporções que uma intervenção no mercadototrnata-se necessária (Brussels Times, /12/2022).
De Croo acrescentou que é inaceitável permitir que os EUA exportem gás liquefeito por preço quatro vezes maiores do que os pagos pelas empresas nos EUA.
Por sua vez, Le Maire, ministro das Finanças da França, colocou os EUA numa posição difícil, ao afirmar que esse país não poderia ter licença para dominar o mercado da energia, enquanto a União Europeia sofre as consequências da guerra da Ucrânia (Balkan Green, Energy News).
O alarme dos estadistas do velho mundo nada tem de exagerado pois se estima que o alto preço da energia resultaria em alta letalidade nos seus países. 100 mil cidadãos seriam mortos, segundo recentes estudos do The Economist. Chega perto dos 120 mil vitimados durante todo o primeiro ano da Guerra da Ucrânia (Brussels Times, 2/12/2022).
Em busca dos culpados, os olhos dos estadistas da Europa viraram para o presidente Biden. Graças às sanções comandadas por ele contra o gás russo, os europeus foram sacrificados, enquanto os americanos estão surfando numa onda de lucros.
Diante de protestos cada vez mais indignados, os EUA, no começo, não se tocaram. Sustentaram que o aumento do preço do gás foi causado pela invasão russa. Tratava-se de uma guerra de energia de Putin contra a Europa, afirmou um porta-voz do Conselho Nacional de Segurança do presidente Biden.
O que nos leva a concluir: para os americanos, os EUA não tinham nada a ver com os preços do gás. O problema é entre vocês, europeus, e Vladmir Putin. Virem-se, como Donald Trump diria.
O porta-voz admitiu que os preços estão realmente muito altos, mas a Europa também saiu ganhando pois se livrou da dependência ao gás russo.
Livrou-se mesmo e, também se tornou dependente do gás americano, infelizmente muitas vezes mais caro. É como um remédio que cura a rouquidão das pessoas mudas, mas as deixa mudas.
Não me parece que esse desinteresse dos EUA reflita a visão de Barack Obama (2008, no famoso discurso de Berlin) sobre “aliados (EUA e Europa) que prestam atenção uns aos outros, que aprendem com cada um, que, acima de tudo, confiam uns nos outros.”
Biden não precisaria ter talentos especiais para prever o que aconteceria se, graças às suas sanções, os europeus trocassem o barato gás natural russo pelo caríssimo gás americano. Qualquer assessor com algum nível de esclarecimento saberia antecipar que as empresas americanas do setor iriam bombar, enquanto os europeus entrariam numa fria, ou melhor, numa gelada.
Certamente, Joe Biden pensou muito na situação do seu povo, sofrendo os efeitos de uma persistente inflação, mais uma altamente possível recessão. Não deve ter sobrado tempo para avaliar eventuais consequências negativas para seus aliados e liderados europeus.
A solução veio em agosto deste ano, quando ele assinou o Ato de Redução da Inflação, causando uma elevação da desconfiança dos europeus já detonada pelo suspeito affair dos preços colossais do gás americano. .
Esta lei autoriza 370 bilhões de dólares em subsídios às indústrias verdes (cujas atividades buscam minimizar danos ao ambiente) na construção de turbinas de vento , painéis solares, micro-processores, baterias e equipamentos de energia renovável e, principalmente, carrlos elétricos. Para estes últimos haverá mais uma vantagem: desconto de 7.500 dólares na compra, desde que o veículo tenha sido fabricado numa empresa americana..
Embora os carros elétricos sejam a estrela do plano, os outros itens são componentes essenciais de uma imensa variedade de produtos.
Com tantas vantagens, nenhuma empresa europeia do setor teria mínimas condições de competir com as americanas. E não só nos EUA; até mesmo no próprio mercado europeu.
Já avança uma onda que arrasta para os EUA novos negócios que normalmente iriam para a Europa. Recentemente, a multinacional química Solvax decidiu por essa opção, foi uma das diversas outras gigantescas empresas que seguiram o mesmo caminho.
As consequências para os países do continente podem ser arrepiantes.
Elizabeth Borbe, primeira-ministra da França, declarou que as novas vantagens oferecidas pelos investimentos americanos representam uma adulteração da concorrência e poderiam causar na França uma perda de “10 bilhões de euros em investimentos e 10 mil empregos em potencial.”
Diante de fatos semelhantes, um diplomata francês reagiu com espontaneidade: “A Lei da Redução da Inflação mudou tudo. Washington é nosso aliado ou não ? (Reuters, 26/11/2022).”
Antes de mais nada, convém notar que o papel dos EUA no mundo não é apenas o de aliado de um grupo de países. Por seu enorme poder militar e econômico, o país de George Washington se posiciona de forma natural como líder global, o que seus presidentes costumam assumir sem titubear. A maioria deles proclama que o fazem pelo bem-estar de toda a comunidade internacional, já que somente americanos teriam as qualidades exigidas para tomar decisões que não afetem os justos interesses de cada nação.
É o próprio Joe Biden que o afirmou em mensagem co-assinada por Kamala Harris, durante a campanha eleitoral: .
“O mundo não se organiza por si próprio. A liderança americana, baseada em objetivos claros e estratégias adequadas, é necessária para enfrentar com eficiência os desafios essenciais do mundo em nosso tempo. A fim de liderar de novo, precisamos restaurar nossa credibilidade e influência (que ele diz perdidas pelo governo de Trump).”
Concentrado na busca de uma saída para livrar os EUA de uma ameaçadora recessão, esqueceu que os liderados países europeus enfrentavam o mesmo desafio.
E trouxe soluções altamente benéficas para os americanos, porém devastadoras para seus satélites.
Ele convenceu os europeus a renunciarem ao gás russo, com a garantia dos EUA lhes fornecer o gás liquefeito para suprir suas necessidades. Como resultado, as empresas americanas ganharam lucros maravilhosos, enquanto os europeus ganharam despesas com gás muitas vezes acima dos vigentes antes da Guerra da Ucrânia.
E Biden lançou a Lei de Redução da Inflação, que vai aumentar decisivamente as vendas das indústrias do país, reduzindo seus custos e assim baixando OS preços ao consumidor, o qual, inclusive, poderá realizar o mais recente sonho americano: ser dono de um carro elétrico.
Mais uma vez Biden esqueceu os interesses dos países amigos da Europa, tradicionais apoiadores da política de Washington nos fronts internacionais. Sua nova lei deve tornar os produtos americanos donos do mercado europeu, cujas indústrias não poderão competir com os concorrentes americanos, turbinados pelos fartos subsídios previstos.
Claro, os estadistas do velho mundo não se conformam.
Bruno Le Maire , ministro das Finanças da França, observou amargamente que os EUA estariam ingressando no caminho do isolacionismo econômico da China, exortando a União Europeia a repetir essa abordagem. “A Europa não deve ser o último dos moicanos”, ele sugeriu (Sputnik, 30/11/2022).
No mês passado, o presidente Macron levou sua indignação mais longe: ”Precisamos de uma lei “Compre europeu”, como a dos americanos. Você tem a China protegendo sua indústria, os EUA protegendo a sua indústria e a Europa é uma casa aberta.”
Algumas semanas depois, Macron se acalmou, decidiu procurar resolver o problema numa boa. Foi à Casa Branca apelar para Biden proteger as indústrias europeias dos efeitos destrutivos dos privilégios com que o presidente americano presenteou as concorrentes americanas.
Fazia sentido.
Afinal o papel de um líder é cuidar também dos interesses dos países liderados, jamais submetê-los a sacrifícios em benefício da metrópole.
O presidente americano mostrou-se compreensivo. Admitiu que havia algumas falhas na sua nova lei. Mas, sem problemas. Vamos formar uma frente de trabalho EUA-Europa para corrigi-las e encontrar uma solução que satisfaça a todos.
Problemas dessa magnitude não podem ser resolvidos na esfera técnica.
Dependem de uma decisão política. Em termos crus, cabe aos chefes de estado determinar se os europeus irão ter as vantagens concedidas aos americanos, gozando dos mesmos subsídios ou de garantias de igualdade na competição pelos mercados.
Só depois de concluída essa fase, o problema passa para os assessores viabilizarem na prática os objetivos os estadistas definiram.
Tudo indica que Biden se encontre num impasse.
Deve contar com a rebeldia no Congresso a ideias que reduzam as mercês concedidas às indústrias do país, em favor dos aliados do outro lado do Atlântico.
Por outro lado, também não quer estimular os europeus a partir para uma guerra econômica, privilegiando medidas que atendam aos empresários deles.
Passando o problema para assessores das duas partes, o presidente americano procura adiar a hora em que terá de optar por um dos caminhos, ambos perigosos.
O tempo pode ser seu aliado.
À medida que ele for passando, diminui a coragem dos europeus de enfrentar o colosso yankee, até aceitar concessões que hoje rejeitariam com furor.