No governo austero de Margareth Thatcher, a Inglaterra empurrou para baixo do tapete uma sujeira extremamente mal cheirosa.
Houve uma primeira tentativa de torná-la pública, em 1983, quando o parlamentar (conservador) Geoffrey Dickens apresentou acusações de pedofilia ao ministro do Interior.
Eram muito graves, pois envolviam parlamentares, como sir Cyril Smith (liberal) e outras figuras públicas.
Smith tinha sido um assíduo freqüentador da Elm Guest House, onde crianças sofriam abusos sexuais.
O desdobramento da denúncia foi um raid policial no local e detenção dos proprietários, condenados posteriormente, à prisão por dirigirem um prostíbulo. Mas nada se fez quanto às denúncias de abuso sexual de menores e seus autores.
Muitos anos depois, em 2012, o parlamentar Tom Watson (trabalhista) inquiriu o ministro do Interior sobre no que deram as acusações do dossiê de Dickens.
Nessa ocasião, foi informado que a polícia estaria investigando casos de pedofilias por parlamentares nos anos 70 e 80.
Dois anos se passaram e nada de resultados.
Foi então que, em 1 de julho de 2014, outro parlamentar trabalhista, Simon Danczuk, repetiu o pedido de Tom Watson.
O Ministério do Interior respondeu que além do dossiê de Dickens, outros 114 documentos sobre abusos sexuais de menores haviam sido destruídos, perdidos ou simplesmente desapareceram.
Explicou que Dickens apresentara um conjunto de cartas, implicando por ação ou omissão todos os ministros do Interior dos últimos anos. O que foi considerado absurdo.
Foi informado ainda que dezenas de milhares de denúncias são enviadas anualmente ao ministério. Cada 5 anos se faz uma revisão e aquelas consideradas improváveis são destruídas.
As relativas ao Dickens affair teriam seguido esse destino, certamente por não apresentarem evidências consistentes.
Estas explicações não foram aceitas, nem pela oposição trabalhista, nem por grande número de parlamentares conservadores, liberais e verdes do bloco governamental.
120 deles assinaram uma carta dirigida a Thereza May, ministra do Interior, exigindo o mais amplo inquérito público.
Questionou-se a integridade ou capacidade dos funcionários incumbidos da revisão dos documentos, que eliminaram as denúncias.
Há claras suspeitas de que tivesse havido acobertamento de crimes de pedofilia praticados por políticos e autoridades públicas. Considerou-se suspeito o fato de não ter sido informado a Watson o desaparecimento do dossiê Dickens, em resposta à sua solicitação.
Isso só foi feito em julho de 2014, depois da nova solicitação feita por Simon Danczuik.
Danczuik, aliás, declarou poder apresentar pelo menos o nome de um membro da Câmara dos Comuns entre os culpados.
Sucederam-se a seguir vários depoimentos reforçando a tese do acobertamento.
Para lord Terbit, presidente do Partido Conservador e ministro no gabinete de Margareth Thatcher, na época das denúncias, houve provavelmente um “enorme acobertamento”.
Ele foi mais longe: ”Naqueles dias, proteger o sistema vinha antes de punir os delitos.”
Lord Warner, ex-ministro da Saúde trabalhista, declarou que pessoas poderosas, nos anos 80, usaram os orfanatos como “fontes de suprimento” para abusos sexuais de crianças.
Peter MCkelvie, ex-chefe do serviço de proteção a menores, denunciou que pelo menos 20 membros de ”uma elite, extremamente poderosa nos mais altos níveis da classe política”, abusaram de crianças nos orfanatos, durante os últimos 30 anos.
Para a opinião pública inglesa, trata-se de crimes muito graves que não devem passar sem castigo.
Todas as circunstâncias que o cercaram são revoltantes.
As crianças nos orfanatos estavam completamente indefesas diante daqueles que as submetiam a abusos.
Esses personagens eram particularmente condenáveis por usarem do poder das suas posições para praticarem atos criminosos.
O acobertamento demonstra a hipocrisia do establishment de uma era marcada pela austeridade, como foi o governo Thatcher.
Diante do clamor nacional, a ministra do Interior, Theresa May, determinou um inquérito público, cujas conclusões seriam levadas aos tribunais.
A minoria trabalhista acha pouco.
E com ela, figuras insuspeitas como dignatários de diversas Igrejas cristãs do Reino Unido.
Paul Butler, bispo anglicano de Durham, declarou que o inquérito deve ser judicial, pois “nessa condição as pessoas precisam prestar juramento e portanto jurar falar a verdade Meu medo é que, sem isso, a verdade completa não venha a público.”
De fato, ao contrário do que ocorre nos tribunais, num inquérito não-judiciário, as pessoas não tem de jurar dizer a verdade. Podem mentir que não serão punidos pela lei.
A posição de Butler foi apoiada em carta a Theresa May pelo arcebispo anglicano de Canterbury, o católico cardeal Nicholls e o presidente da Igreja Metodista.
A ministra do Interior assegura que o inquérito, a ser presidido pela ex-juiza Elizabeth Butler-Sloss terá “o acesso mais completo possível a testemunhas, vítimas, comissões, experts, investigadores e denunciantes. Nenhuma instituição ficará de fora: igrejas, partidos políticos, polícia, lares de órfãos, até mesmo escolas públicas.”
Ótimo, alguns jornalistas lembram o que aconteceu com o inquérito Chilcot, sobre o papel da Inglaterra na guerra do Iraque.
Correu tudo muito bem até esbarrar nos interesses políticos americanos.
O governo Cameron impediu a revelação do conteúdo das conversas telefônicas entre Bush e o então primeiro-ministro, Tony Blair.
Disse que poderia representar um “perigo significativo” às boas relações anglo-americanas.
Dá para imaginar as barbaridades que os dois estadistas devem ter proferido para justificar a atitude castradora da liberdade de informação do governo da corte de Saint James.
Desta vez, parece que a opinião pública não vai deixar os crimes dos seus políticos passarem batido.
Abusar de órfãos e acobertar os culpados é dose!
A honra da Inglaterra está em jogo.