Paz com o Irã tropeça no primeiro passo.

 Em 2015, os  EUA, Reino Unido, França, China, Rússia, Alemanha e Irã (o P5+1) firmaram um acordo  que, ao menos nos próximos 10 anos, elimina a possibilidade dos iranianos terem bombas nucleares.

Três anos depois, por obra de Donald Trump, os EUA saíram fora, sob a alegação de que o acordo era fraco, seria facilmente burlado por Teerã. O presidente propunha um novo acordo, com obrigações mais severas, definidas por ele. O Irã recusou-se a aceitar o diktat americano, sendo apoiado por todas as demais potências,  que permaneceram no acordo.

Para forçar Teerã a erguer a bandeira branca, Trump lançou duríssimas sanções contra a República Islâmica, as quais provocaram o embargo nas exportações e importações do  Irã, mesmo de equipamentos médicos e medicamentos necessários para o controle da covid19 que assola o país.

Graças às sanções, o Irã mergulhou na recessão, a qual vem se mantendo durante os últimos 3  anos. Em 2020, o PIB chegou      a -5%, a inflação foi a 35% e a moeda local caiu vertiginosamente: o dólar que começou o ano valendo 133 mil riais, alcançou 300 mil, já em setembro.

Como as nações signatárias não socorreram financeiramente o Irã, como lhes cumpria, Teerã, em represália à retirada dos EUA e às suas sanções, EUA, passou a acelerar o enriquecimento do urânio acima do previsto no Acordo Nuclear, até atingir 20%, muito aquém dos 90% necessários para produzir uma arma atômica.

Essa medida estaria em conformidade com o parágrafo 36 do Acordo Nuclear, que permite ao Irã descumprir suas obrigações caso outro dos signatários iniciais deixasse de as respeitar.

Com sua eleição a presidente dos EUA, Joe Biden propõe-se a resolver o conflito.

Ele garante que vai repor os EUA no Acordo Nuclear, extinguindo as sanções de Trump. Exige que, em contrapartida, o Irã volte a cumprir com suas obrigações diante do acordo, reduzindo o enriquecimento do urânio ao nível pré-determinado.

Mas, logo em seguida, os dois lados discordaram.

Tanto Biden, quanto Rouhani, querem que o outro dê o primeiro passo.

Achjo que o Irã parece ter razão.

Quem causou o conflito entre os dois países foram os EUA.

O Irã não fizera nada para justificar a retirada americana.

Diz o presidente Rouhani: para demonstrar que o novo governo dos EUA admite o erro do anterior, cabe-lhe voltar ao Acordo Nuclear renegado por Trump e suspender as sanções com que o povo iraniano vinha sendo castigado.

Ele é também pressionado por exigências internas.

O povo iraniano fora humilhado ao ser, por obra das sanções americanas a empobrecer cada vez mais. No assassinato do seu “herói nacional”, o general Suleimany, praticado pelos EUA, teve que engolir sua raiva pois o governo não respondera à altura.

A auto-imagem dos iranianos seria fortalecida ao ver os poderosos EUA cederem, voltando ao Acordo Nuclear e renunciando às devastadoras sanções. Só então o Irã faria sua parte, reduzindo  o enriquecimento do uranio e voltando a cumprir integralmente as normas do Acordo Nuclear.

Os EUA ainda não disseram por que o Irã teria de ser o primeiro a voltar atrás.

Acredito que também aqui haja emoções em jogo.

Muitos grupos americanos pensam que, caso os EUA renunciassem às medidas ora propostas, em primeiro lugar, o Irã poderia recusar-se a fazer sua parte, continuando a enriquecer o urânio. Não daria para confiar nesse país de fanáticos…

Por sua vez, os chefes iranianos também desconfiam dos EUA.

Para os ultras iranianos, Biden estaria retardando sua volta ao Acordo Nuclear para pressionar Teerã a, premido pelos efeitos desastrosos das sanções americanas, aceitasse fazer concessões.

Visando tirar os EUA de sua posição de conforto, os ultras aprovaram um projeto no parlamento que dá até 19 de fevereiro de prazo para Biden se mexer. Caso isso não acontecesse, o Irã não mais permitiria que os funcionários da IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) fiscalizassem as instalações nucleares do país para verificar se as obrigações do Acordo  estariam sendo observadas.

Sem fiscalização da IAEA, o Irã poderia tranquilamente reviver seu programa nuclear militar, encerrado em 2003.

 Claro que, se o IAEA sair da jogada, as nações do hoje P4+1 sairiam do Acordo Nuclear e a paz iria para o espaço.

O presidente Rouhani afirmou que se recusaria a executar a lei do parlamento, e a disputa entre os dois poderes irá para o Conselho dos Guardiães, a quem compete decidir divergências entre instituições estatais.

Suspeito que talvez a demora dos EUA na retirada das sanções seja mesmo intencional- usada para aumentar seu poder de influenciar (leverage) o Irã e forçá-lo a engolir medidas indesejáveis.

Jack Sullivan, novo conselheiro de Segurança Nacional, nomeou essas concessões, em programa  patrocinado pelo Instituto de Paz, dos EUA,  informando que seu governo queria também focar questões com o Irã como “mísseis balísticos”, “ações irresponsáveis” e “patrocínio do terrorismo.”

Em audiência no Senado, Anthony Blinken, novo secretário de Estado, mostrou que seu governo não tem pressa: “ O Irã não está cumprindo com suas obrigações em várias frentes. Teria de fazer muita coisa para estar em conformidade (in compliance) com o Acordo Nuclear. E concluiu: “Portanto, eu não acho que alguma coisa vá acontecer amanhã ou no dia seguinte.”

Heiko Maas, ministro do Exterior da Alemanha, foi mais adiante: “Será necessário uma espécie de ‘acordo nuclear plus’.Temos expectativas claras a respeito do Irã: nem armas nucleares nem programa de mísseis balísticos que ameace toda a região(Der Spiegel)”.

Por sua vez, Macron, o primeiro-ministro da França, insistiu no fim do programa balístico iraniano e do seu alegado patrocínio do terrorismo no Oriente Próximo. E ainda veio com uma ideia despropositada: incluir a Arábia Saudita, inimiga figadal do Irã, no grupo dos países participantes do Acordo Nuclear. Sendo partidária do fim desse acordo, não seria propriamente uma voz imparcial em eventuais negociações de possíveis alterações.

As concessões iranianas, já referidas por expoentes de governos ocidentais, dificilmente serão aceitas.

Elas se baseiam na consideração de que as ações externas de Teerã sejam uma ameaça à paz e à estabilidade dos governos do Oriente Médio, em especial Israel.

Deixando os preconceitos de parte, pondero que, na verdade, o Irã tem mais chances de ser atacado por Israel do que o contrário.

Enquanto os ataques dos aiatolás ao regime sionista são apenas retóricos, dirigidos a seu público interno, a agressividade  Israelense tem sido bastante concreta.

No período 2010-2011, seu serviço secreto, o Mossad, assassinou quatro cientistas nucleares do Irã. Em 2020,  Mohsen Fakhrizadeh, o mais importante físico dessa área, foi morto pelos agentes de Israel.

Em julho desse ano, uma série de explosões e incêndios em instalações militares, inclusive a maior fabricante de mísseis,  sacudiram o Irã. Conforme ex-oficial da defesa de Israel informou ao Insider, pelo menos os últimos incidentes foram de autoria da inteligência israelenses (Business Insider, 16/07/2020).

Em novembro de 2020, reunido em Neon, Arábia Saudita, com o então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e o príncipe Mohamed bin Salman, governante de fato da monarquia saudita, o primeiro-ministro Netanyahu, propôs o bombardeio de instalações nucleares iranianas. Só não aconteceu porque os outros dois discordaram (Middle East Eye, 27-11-2020).

Recentemente, o general Avivi Khavi, chefe do Estado-maior do Exército de Israel, ordenou que fossem atualizados planos (já existentes) de ataque ao programa nuclear do Irã, para seu país estar preparado a agir rápido, caso decisão da hierarquia política .E o general Yakov Amidrov, assessor próximo a Netanyahu, informou que caso Biden voltasse ao Acordo Nuclear, Israel poderia levar a cabo ações militares no Irã.

Parece natural que o Irã procure meios para poder se defender.

Especialmente porque, Israel tem um exército muito poderoso e bem armado (suprido anualmente pelos EUA com 3,1 bilhões de dólares em armamentos modernos) e sua força área é considerada uma das melhores do mudo, senão a melhor.

As chances do Irã vencer seriam mínimas.

A solução de Teerã foi adotar uma estratégia de dissuasão, investindo num programa de desenvolvimento de mísseis.

Hoje, o Irã dispõe do maior conjunto de mísseis balísticos do Oriente Médio, de curto, médio e longo alcance.

Seus chefes garantiram que eles não passarão além dos 2.000 km, a Europa fique tranquila, os mísseis iranianos jamais poderão atingir seu território.

Mas Israel está dentro do seu raio de alcance.

O governo sionista pensaria duas vezes antes de se decidir a atacar, pois numa guerra contra os iranianos sofreria enormes perdas, embora certamente sairia vitorioso, ainda mais porque contaria com a ajuda dos EUA.

Se Teerã renunciasse a seu programa de mísseis balísticos, o Irã ficaria indefeso diante dos seus inimigos.

Quanto à desestabilização de países da região, causada pela ação do Irã, na qualidade de “maior propagador de terrorismo do mundo”, convém tomar cuidado com as palavras.

As forças do Irã, que lutam na guerra da Síria contra uma rebelião, não são terroristas, já que estão no país a convite do presidente eleito, Assad, cujo governo é reconhecido pela ONU.

E como você classificaria os EUA, Arábia Saudita e Qatar que treinaram e armaram milícias que lutavam para depor Assad?

É verdade que, no Iêmen, o Irã fornece armamentos para os rebeldes houthis contra o governo Hadi, reconhecido pela ONU.

Aqui há fatos específicos a considerar.

A guerra promovida pela Arábia Saudita, em defesa do presidente Hadi, transformou o Iêmen no maior desastre humanitário da atualidade, conforme a ONU.

A crueldade fora do comum empregada pelas forças sauditas  horrorizou a comunidade internacional.

“Relatórios vem demonstrando que a estratégia adotada pela coalisão liderada pelos sauditas visa destruir a produção de alimentos das áreas controladas pelos houthis. Esta estratégia de guerra econômica, deteriorando a agricultura e restringindo as importações de alimentos objetiva atormentar e matar de fome a população (Zenith, 10-07-2019).”

A coalisão saudita já realizou milhares de bombardeios, um terço dos quais atingiram hospitais, escolas, moradias e infraestrutura, lançando o país mais pobre da região no horror da fome.

A comunidade internacional ficou horrorizada. Os legislativos dos EUA e do Reino Unido recomendaram que seus países parassem de armar e municiar a Arábia Saudita e seus aliados na guerra.

Seria terrorismo apoiar quem luta contra os responsáveis pela devastação do Iêmen e massacre do seu povo?

Passemos para o caso do Iraque.

As milícias pró-Irã tiveram papel destacado na luta contra a ocupação do Iraque pelos EUA no período 2003-2011. Teriam matado cerca de 700 americanos, entre soldados e mercenários.

Mas, sua luta era justa, atacaram forças da potência que invadira o Iraque ,com falsos motivos, e o estava ocupando militarmente. Não dá para condená-los como terroristas,  os partiggiani agiram do mesmo modo contra os nazistas, que ocuparam a Itália. Depois da guerra foram celebrados como heróis.

Aliado umbilical do Irã, o Hisbolá é um movimento político do Líbano, com representação no parlamento e no ministério do país. Sua resistência foi fundamental para forçar a retirada do exército israelense que havia tomado a terra dos cedros.

Em aliança com o Irã, o Hisbolá atua militarmente na Síria, a pedido do governo legal, no Iêmen e no Iraque.

Atualmente, no Iraque, o Hisbolá e outras milícias controladas pelo Irã tem lançado foguetes contra as bases dos EUA (que retaliam vigorosamente). Alegam que lutam para expulsar os militares americanos, pois a única razão de sua presença seria ameaçar o vizinho Irã e pressionar o  próprio governo iraquiano.

Já os americanos dizem que essas bases são necessárias para conter a expansão do controle iraniano sobre o Iraque.

Pouco antes da posse de Biden, o irã, temendo provocar uma guerra com os EUA de Donald Trump, insistiu para que esses grupos se abstivessem de ataques a forças americanas.

Ao lado do Hisbolá político existe o Hisbolá militar, responsabilizado por algumas ações realmente terroristas (vitimando civis), das quais a última foi na Bulgária, em 2012.

Os  EUA, Israel e a maioria dos países da Europa consideram o Hisbolá terrorista. A França, apenas a ala militar, enquanto a China, a Noruega, a Rússia e a Suíça não condenam o grupo. Vale citar a opinião do célebre jornalista israelense Uri Avnery: “Algumas pessoas podem odiar o Hisbolá e detestar Nasrallah (chefe do movimento). Mas chamar de ‘terrorista’ é simplesmente estúpido.”

O Irã afirma que sua atuação nesses fronts externos se justifica pela  necessidade de defesa contra ataques  de Israel e dos EUA.

A tendência nos EUA e aliados ocidentais é paralisar o  programa balístico do Irã e a sua influência perturbadora nos países vizinhos em negociação depois da volta dos EUA ao Acordo Nuclear e da volta do Irã ao enriquecimento de urânio previsto.

Recentemente, cresce a ideia de retardar a retirada americana para assustar Teerã e forçar seu governo a incluir as exigências ocidentais numa alteração do Acordo Nuclear.

É um oportunismo rejeitado in limine pela International Crisis Group, uma instituição respeitada, em toda a parte, que visa evitar guerras: “Restaurar o acordo nuclear, com seus benefícios consideráveis na não-proliferação (de estados com armas nucleares), poderia trazer um maior comprometimento nas relações diplomáticas EUA-Irã. Mas um ou ambos os lados podem ser tentados a fazer demandas adicionais, o que seria uma receita para o impasse.”

O presidente Rouhani já desistiu da sua demanda, o pagamento ao Irã dos prejuízos causados pelas sanções do governo Trump. Mas, ele faz questão de que os EUA deem o primeiro passo, voltando ao Acordo Nuclear com o Irã e cancelando as sanções.

Agora, a bola está com Biden,  enfático pronunciamento do presidente iraniano, declarou que o processo de pacificação deveria começar com o Irã comprometendo-se a respeitar todas as nomas do Acordo Nuclear.

Diplomático, Zarif, o ministro Zarif do Exterior do Irã, propôs que as medidas dos dois países se efetuassem passo a passo, simultaneamente, até o último, que EUA e Irã dariam juntos.

Zafrif propôs que a supervisão e o escalonamento das ações coubessem a Joseph Borrell, o chefe do Exterior da União Europeia. O presidente da França, Emanuel Macron, se ofereceu para este papel.Caso Biden aceite a sugestão de Zarif, vai rejeitar tanto Borrell, quanto Macron, pois deseja a participação europeia no processo, mas não como o protagonista principal que deve ser ele, como líder auto-proclamado do mundo.

As dúvidas persistem. Blinken e Sullivan, nomeados para as principais posições na área da política externa, me parecem um tanto alinhados com o lado imperialista de Biden.

No entanto, para atuar como seu enviado especial ao Irã, Biden nomeou Rob Malley, altamente qualificado por seu papel de líder dos negociadores americanos no Acordo Nuclear com o Irã, de 2015, além ter sido coordenador, nomeado por Obama, para o Oriente Médio, Norte da África e região do Golfo.

Sua nomeação, contestado pela direita americana,  parece sinalizar que Biden deseja realmente cumprir sua promessa de voltar ao Acordo Nuclear de forme justa.

O novo representante dos EUA para o Irã já está viajando pelos países signatários do acordo para ouvir opiniões. Israel, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes também deverão ser consultados.

Tudo  bem, mas uma certa pressa é recomendável.

Em junho, tem eleições no Irã e os ultras são os favoritos.

Não se espere deles a prudência e a boa vontade do presidente Rouhani.

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