Como se sabe, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita é o poder atrás do trono.
Protegido por seu pai, o rei Salman, ocupa diversos cargos de alto nível, entre eles o de ministro da Defesa.
Mohamad bin Salman considera-se um reformista, que vai extirpar as teias de aranha do governo e criar uma nova Arábia Saudita, moderna e progressista, comprometida com os direitos humanos e os direitos ds mulheres.
Dando a partida nesse seu projeto das mil e uma noites, ele concedeu às mulheres os direitos de dirigir automóveis (sempre acompanhadas pelo marido ou um parente) e até mesmo de ir ao cinema.
É como reformista e modernizador que ele pretende se apresentar em visitas triunfais por Londres, Paris e Nova Iorque.
Pelo menos em Londres, vai ser complicado.
A visita do príncipe Mohamad estava programada para acontecer em fevereiro. Seriam três dias de glória para o filho dileto do rei Salman.
No entanto, protestos públicos e matérias inconvenientes na imprensa, a que ele não está acostumado, forçaram um adiamento. Em princípio, para 7,8 e 9 de março.
A premier Tereza May espera que, com o tempo, as cabeças esfriem e o povo esqueça a visita do herdeiro saudita ou pelo menos proteste com fleugma, abdicando de passeatas furiosas e cartazes ultrajantes contra Sua Alteza.
Tudo indica que a tática do governo não vai dar certo.
O príncipe e o regime do seu país são muito mal vistos nas terras da rainha.
Até agora, o reformismo principesco limitou-se a deixar mulheres guiarem seus carros e irem ao cinema.
Enquanto isso, elas não podem andar na rua sem um guardião (marido ou parente próximo). Caso , numa atitude de extrema audácia, queiram viajar para o exterior sem autorização do marido, serão barradas no aeroporto. Para abrir uma conta bancária ou se submeter a uma cirurgia, tem de receber o nihil obstat do consorte.
Felizmente as sauditas tem direito de escolher aquele com quem irão casar.Desde que ele seja islamita da versão sunita (xiitas, jamais).
E podem até se candidatar a cargos públicos, porém apenas para conselhos estaduais(que tem poderes mínimos), depois de sua candidatura ser aprovada pelas autoridades.
Na área dos direitos dos cidadãos, nada mudou.
As prisões arbitrárias de opositores e críticos continuam rotineiras, assim como a aplicação de penas como chicotadas e degolas, as torturas, os julgamentos injustos, a imprensa amordaçada e a proibição de atos públicos de religiões que não sejam o islamismo sunita oficial.
Em setembro do ano passado, mais de 60 ativistas de direitos humanos, intelectuais, clérigos, jornalistas, poetas e acadêmicos foram presos simplesmente por discordarem de posições do regime. O paradeiro de metade deles é desconhecido.
Em novembro, novamente sob orientação do todo poderoso Mohamad, mais de 300 príncipes, ministros e homens de negócios receberam ordem de prisão, sendo confinados no luxuoso Ritz Carlton Hotel, para serem investigados por alta corrupção. Há denúncias de que vários passaram por torturas.
A maioria – ou quase todos -só foram soltos depois de pagarem importâncias enormes ao regime saudita.
Anunciou-se que as personalidades presas seriam processadas legalmente, coisa que ainda não aconteceu. Nem o governo exibiu as provas “definitivas”, que informa possuir.
Neste ano, as prisões injustas prosseguem. A estudante e ativista de direitos humanos, Norma al-Ballawi foi presa pela publicação de um vídeo nas redes sociais (que se tornou viral) afirmando que a aproximação entre o reino saudita e Israel só beneficia os israelenses.
Deverá ser processada por crime-cibernético, podendo pegar até 5 anos de cadeia, além de ter de pagar 800 mil dólares de multa.
Advogados de direitos humanos afirmam que conhecidos dissidentes vem sendo detidos sumariamente. De acordo com o advogado Yasamin Attair: “todo opositor notório está agora atrás das grades.”
Tudo isto é o oposto do fair play que os ingleses esperam de uma figura real.
No entanto, o que mais sensibiliza o povo é o que está acontecendo na guerra do Iêmen.
É fato assente que a invasão e os bombardeios maciço desse país foram idealizados pelo príncipe Mohamad. Ele segue liderando a coalisão de seis nações formada para atacar os houthis, que haviam derrubado o regime Hadi, satélite do reino saudita.
Relatório da pesquisa da professora emérita Martha Mundy, da London School of Economics, informa que, durante os primeiros 17 meses da campanha de bombardeamentos, revelou-se “fortes evidências de que a estratégia da coalisão visava destruir a produção e distribuição de alimentos” das áreas controladas pelos houthis e aliados (The Guardian, 12-12-2017).
Como resultado, grande parte da população está literalmente morrendo de fome. A OCHA (coordenação de ajuda humanitária da ONU) calcula que 17 milhões do habitantes -60% da população total do país– vivem em situação de insegurança alimentar, sem acesso permanente a alimentos.
Diz ainda a mesma OCHOA que 20.7 milhões de pessoas- inclusive 11 milhões de crianças- precisam de algum tipo de ajuda humanitária para sobreviverem, sendo que cerca de 9,8 milhões se acham em necessidade aguda de assistência.
O sistemático bombardeio de redes sanitárias, usinas elétricas, hospitais e redes de água, somam-se à falta de alimentos e combustíveis, tornando os iemenitas extremamente suscetíveis de contraírem moléstias graves.
E assim se instalou uma epidemia de cólera.
Em dois de novembro do ano passado, a Chatam House, calculava em 900 mil o número de casos suspeitos, mais do que os 815 mil do Haiti. O que faz a epidemia de cólera do Iêmen a maior do mundo, na história recente. De acordo com o Save the Children, 600 mil crianças já estão infectadas.
Espalhando-se celeremente, a epidemia de cólera atingiu no mês de dezembro 1 milhão de pessoas, superando em 100 mil o recorde de novembro. Em outubro, registravam-se mais de 2 mil mortes (World´s Health Organization).
Centenas de milhares de pessoas morrerão nos próximos meses se não receberem os cuidados desesperadamente necessitados (The Libertarian, 13-12-2017), incluindo nessa fúnebre previsão 150 mil crianças carentes de uma alimentação minimamente saudável (World Food Program).
Principal responsável por esta que é considerada a maior crise humanitária do mundo, o príncipe saudita não deve ter acolhida das mais saudáveis por parte do povo inglês. Se atrair alguma multidão, o mais provável será para vaiá-lo.
Acredita-se que suas aparições aconteçam apenas em solenidades oficiais e banquetes, onde será saudado como “um grande reformista dos tempos modernos” pelas figuras principais do governo conservador, prestimosos membros da família real e os big shots da indústria de armas.
Afinal, o reino Saudita comprou 6,4 bilhões de libras em armas, jatos de caça e mísseis ingleses, a partir do início da Guerra do Iêmen.
A premier Teresa May e os dirigentes das indústrias bélicas deverão se esmerar em agrados e mesuras para o príncipe Mohamad, de olho em futuros negócios com o país, casualmente o maior importador de armas do orbe.
Tinha certa razão o ex-presidente Bill Clinton, quando filosofou: “é a economia, estúpido.”