Em abril de 2004, Paul Bremer, o chefe do governo do Iraque sob ocupação americana, declarou o clérigo Al Sadr um fora da lei. E emitiu um mandado para a prisão dele.
Por sua vez, o Pentágono proclamou que o exército Mehdi, a milícia criada por aquele ousado clérigo, era a maior ameaça à segurança do Iraque.
Sobravam motivos para tanta malquerença: na guerra do Iraque, Al Sadr liderou seu exército Mehdi em duas revoltas contra os invasores americanos.
Sem falar nas suas participações em ações de guerrilhas e nas pregações incendiárias, exigindo a retirada das tropas dos EUA. E condenando o governo provisório iraquiano, eleito com as bênçãos das autoridades americanas e poderes extremamente relativos.
Depois que, em 2011, os americanos se foram, Al Sadr continuou na oposição, atacando a corrupção e a ineficiência do governo Maliki e as imensas desigualdades sociais.
Alguns anos depois, o líder xiita interrompeu praticamente suas atividades políticas, recolhido ao seu quartel-general em Sadr City, bairro de iraquianos pobres, classe onde é mais popular.
Em 2016, já no governo Abadi, o clérigo xiita voltou á luta. Liderou uma manifestação de dezenas de milhares de cidadãos, invadindo o parlamento para exigir reformas sociais e políticas.
Agora, nas eleições de maio deste ano, quem obteve a maior votação , para surpresa geral, foi a coligação liderada por Al-Sadr. Ele reuniu sob a mesma bandeira grupos aparentemente antagonistas entre si: xiitas sadristas, comunistas, secularistas e agremiações independentes.
Jahidi Fahmi, secretário-geral do Partido Comunista, explicou que todos concordaram em focar na campanha questões que os unia: as lutas contra o desemprego, a corrupção e as desigualdades, e o combate à influência estrangeira no Iraque – evitando as diferenças que os separavam, como os direitos das mulheres e o secularismo.
Nos seus discursos, Sadr deu especial ênfase à denúncia da corrupção do governo e dos políticos, em geral, e dos problemas da população pobre, além de defender o nacionalismo. Para ele, tanto os EUA quanto o Irã exercem influência indevida sobre o Iraque.
O clérigo xiita quer um Iraque independente, neutro diante de americanos e iranianos e livre das interferências desses países no governo de Bagdá.
A Casa Branca retirou suas tropas em 2011, mas não renunciou a seu desejo de ter hegemonia sobre o país das mil e uma noites.
Entende-se, Obama gastou muito dinheiro treinando e armando o exército do governo de Bagdá. Também não foi barato todo o aparato militar, especialmente a força aérea, enviado para combater o Estado Islâmico.
Os gastos da Casa Branca, entre 2003 (ano da invasão) e 2018 chegam a cerca de 25 bilhões de dólares.
Por enquanto, o Iraque não pagou nada por tudo que os EUA aplicaram no país. Evidentemente, os gastos americanos durante a invasão e ocupação do Iraque vão ter de ser absorvidos, como investimentos em interesses de Washington: a eliminação do ditador Saddam Hussein e a preferência na distribuição dos ativos petrolíferos locais.
Quanto aos empréstimos feitos para Bagdá comprar armas e equipamentos militares na guerra ao ISIS e na reconstrução do exército local, as chances de reembolso são escassas. O Iraque atravessa uma duríssima crise econômica e, não se sabe por quanto tempo, tudo o que a Casa Branca deve receber são profundos agradecimentos.
O governo Trump jurou cobrar por todo o auxílio militar americano a países amigos. No caso do Iraque, isso não dá para acontecer. Portanto, The Donald espera em troca de sua generosidade o apoio político iraquiano nas principais questões do Oriente Médio.
Talvez para garantir a reciprocidade pretendida, o general comandante das forças americanas, que vieram para lutar contra o Estado Islâmico, afirmou que o exército ficaria durante muito, muito tempo, mesmo já estando os fanáticos radicais derrotados.
Desde a invasão de 2003, Washington compete com Teerã pela hegemonia sobre Bagdá.
O Irã tem uma ligação antiga com os políticos xiitas, aos quais deu asilo quando fugiram às perseguições do regime de Saddam Hussein contra os xiitas.
O governo de Teerã participou ativamente da guerra contra o ISIS, coordenando a armando poderosas milícias, que lutaram ao lado do exército iraquiano e da aviação americana.
Na sua pregação nacionalista, Al Sadr defende que as milícias sejam desarmadas e os milicianos estrangeiros devolvidos a seus países de origem.
Isso não está cheirando nada bem para o Irã.
A poderosa linha dura, que se opõe ao presidente Rouhani, já se expressou de forma inusitadamente agressiva sobre a coligação liderada por Al Sadr. Em fevereiro, Ali Akbar Velayati, principal assessor do Supremo Líder Khamenei, referindo-se à liderada por Al Sadr, afirmou que o Irã “não permitiria que liberais e comunistas governassem o Iraque.”
Recentemente, Al Sadr tomou posições que desagradaram, alternativamente, tanto Washington quanto Teerã.
Condenou a interferência do Irã, das milícias estrangeiras e principalmente dos grupos xiitas iraquianos na guerra da Síria, em favor de al Assad. Ele propõe ainda que o chefe do governo de Damasco renuncie, convocando-se eleições para escolher seu sucessor.
Por outro lado, Sadr falou duramente contra a abertura da embaixada americana em Jerusalém: “Mais uma desgraça do colonialismo, de uma arrogância brutal. É outra demonstração da ação dos EUA, que ferem e prejudicam as pessoas, do apoio americano à entidade israelense e de sua hostilidade às religiões abramicas.”
Apesar de ainda naõ terem sido computados todos os votos da eleição, é tido como certo que a lista de Sadr ganhará 54 assentos, as brigadas Badr de Hadi al-Amiri (apoiadas pelo Irã) ficarão em segundo lugar, com 47, e o partido do atual primeiro-ministro Abadi (o mais bem visto pelos EUA) será o terceiro colocado, com 42 assentos, enquanto o partido State Of Law, liderado pelo ex-primeiro ministro Maliki, terá apenas 25 deputados. Os partidos curdos e sunitas e mais uma série de pequenas agremiações também serão representados.
Caberá à coalisão de Al-Sadr indicar o primeiro ministro, desde que consiga obter uma maioria de, no mínimo, 165 deputados, metade do total de parlamentares. Al Sadr não poderá assumir esse cargo, pois não se candidatou e a lei exige que o primeiro-ministro seja um deputado eleito.
Se a coalisão vitoriosa nas eleições não apresentar deputados no número exigido, o direito de escolha irá para o partido Hadi al Amri.
Desiludida com os políticos e com a situação econômica, que piora ano a ano, a maioria da população não votou. Foram às urnas, apenas 44,5% do total.
O Iraque é muito importante para os EUA e o Irã.
Se o país pender para os americanos, a fronteira com a Síria poderá ser fechada, acabando o envio de armas, equipamentos e milicianos xiitas para a o regime Al Assad na guerra contra opositores patrocinados pelos EUA e a Arábia Saudita.
Isso enfraquecerá substancialmente as forças de Assad e a vitória final, que parece estar perto, ficará complicada.
A perspectiva de perder a Síria, deixaria o Irã isolado, sem nenhum apoio no Oriente Médio, a não ser do movimento Hisbolá que, apesar de sua inegável força, também depende das armas iranianas.
Sozinho o regime de Bagdá se veria inferiorizado diante do conjunto dos seus inimigos – Arábia Saudita, Israel e os cinco países do Golfo Pérsico.
Num quadro assim, esses países dispensariam os mísseis, aviões e submarinos nucleares de Trump, teriam competência para lançar uma guerra contra o Irã sem precisar da mão amiga de Tio Sam
De outro lado, uma aproximação estreita do Iraque com o Irã deixaria esse país mais fortalecido. Não só por ganhar um aliado precioso, passagem ideal para a entrada dos reforços iranianos na guerra da Síria, como até marchar a seu lado no caso de um conflito com sauditas e seus parceiros.
Acho que Washington e Bagdá vão concentrar esforços para que se forme uma aliança de partidos amigos com o número necessário para assumir o poder e fazer o primeiro-ministro.
Caso nenhum deles consiga, o plano B seria aceitar alguém indefinido, mas que continue precisando do dinheiro americano e das milícias iranianas. Até balançar para o lado de um dos dois rivais.
Eleição no Iraque.