Os desdobramentos da crise ucraniana podem ser sintomas de uma nova Guerra Fria.
Craig Roberts, Sub-Secretário do Tesouro dos EUA na era Ronald Reagan, interpreta assim as propostas americanas de sanções realmente duras contra a Rússia, em entrevista à RT online.
Elas se tornaram concretas em conseqüência dos problemas do fornecimento de gás russo à Ucrânia.
Seu preço costumava ser extremamente vantajoso, mesmo de pai pra filho: 285 dólares por 1.000m3, enquanto os demais países da Europa tinham de pagar 485 dólares.
Com as boas relações entre os dois países se tornando péssimas, a Gasprom (empresa russa de gás) passou a cobrar o preço do mercado. Os ucranianos, que já deviam muito, não aceitaram – e continuaram negando-se a tirar a mão do bolso. Só voltariam a pagar se a Rússia voltasse a cobrar os 285 dólares de antigamente.
Como Putin não está a fim de subsidiar governos que o hostilizam, nem considerou.
Aí a União Européia entrou para tentar mediar a disputa: propôs um preço entre 300 e 385 dólares.
Putin topou 385, mas os ucranianos não se tocaram: ou 285 dólares ou nada. Afinal, o país está quebrado e o Presidente Poroschenko, que não é bobo (não é por nada que o chamam rei do chocolate), conta com a ajuda amiga dos EUA e da Europa.
A reação russa foi bloquear o fornecimento de gás à Ucrânia.
O problema é que o gasoduto que leva gás aos países da União Européia atravessa a Ucrânia.
É até ilegal, mas os ucranianos podem fechar a passagem do gás por esse gasoduto ou desviá-lo para uso próprio.
Prevendo isso, a Gasprom já está construindo um gasoduto alternativo, através do Mar Negro, que entra na Europa pela Sérvia, Romênia e Bulgária.
Aí as sanções começaram a funcionar.
Esses países foram pressionados pelo Ocidente a proibir a passagem do gasoduto russo por seus territórios.
Sabe-se que a Sérvia e a Bulgária resistiram. Se cedessem, seria como dar um tiro no pé, pois o gás russo atende a 50% das necessidades sérvias e 80% das búlgaras.
Consta que as pressões partiram de autoridades européias. Craig Roberts garante que elas foram, por sua vez, pressionadas pelos EUA.
Não é lógico que os europeus colaborem no bloqueio do gasoduto alternativo.
Afinal, é do seu interesse garantir o suprimento de gás russo.
Ele atende a uma média de 30% das necessidades de energia do continente, sendo que a dependência é maior na Hungria (80%), Polônia- Áustria e Eslovênia (60%), Finlândia (50%) – além dos já citados casos da Bulgária e da Sérvia.
A Gasprom tem outro gasoduto, através do Mar Báltico, que leva metade das exportações de gás russo para os países do Velho Continente.
Ter de reduzir o consumo de gás pela metade seria uma tremenda gelada para os europeus.
Já os ucranianos ficariam na pior.
Sem dispor de aquecimento num clima violentamente frio como o deles seria uma barra absolutamente insuportável.
É verdade que um ministro ucraniano afirmou que seu país tem reservas de 13 bilhões de m3 de gás.
Daria para o verão e talvez para o outono.
Mas não para o inverno, justamente quando o gás se torna artigo de primeira necessidade.
Possivelmente americanos e europeus achem que Putin vai acabar baixando a guarda. Afinal, perder metade das exportações à Europa iria pesar muito na economia russa.
Será que os europeus não afinariam antes?
Além de intervir para que a União Européia atrapalhe os planos russos na questão do gás, o governo Obama vem insistindo na aplicação de novas sanções econômicas contra o governo de Moscou.
Com elas, os EUA não arriscam nada. Pelo contrário, teriam muito a ganhar com uma eventual rendição de Putin.
Nesse caso puxariam a Ucrânia para sua órbita, ampliando sua hegemonia no mundo. Além de reduzir a área de influência de Moscou, ganhariam mais um país para sediar bases da NATO em volta da Rússia. Tudo para conter Putin, visto pelos estrategistas da Casa Branca como o principal adversário da liderança americana no mundo.
Já a Europa tem muito a perder caso as sanções lesionem fortemente a economia russa. Começando com os consideráveis lucros do seu comércio com os russos, que atingiu 370 bilhões de dólares em 2012.
Algumas das gigantescas multinacionais de energia – British Petroleum, Shell e ENI – tem enormes investimentos em gás e petróleo na Rússia.
Existem cerca de 6.200 empresas alemãs, operando em território russo.
Diz Anton Boerner, chefe da BGA, área de exportação – em entrevista ao Dortmunder Ruhr Nachrichten : “Para elas (as empresas alemãs na Rússia), as sanções econômicas seriam uma autêntica catástrofe.”
Há sinais claros de que a União Européia não vai aceitar a insistência de Obama em sancionar pesadamente o governo do seu rival, Putin.
Apesar dos protestos americanos, a França confirmou a venda de um vaso de guerra equipado para lançamento de mísseis à Rússia.
Cameron, o Primeiro-Ministro do Reino Unido, declarou que considera as sanções prejudiciais aos negócios da City de Londres.
O fórum empresarial de Moscou atraiu grande número de poderosas multinacionais, irritando Washington.
O fato de haver oposição entre os interesses europeus e americanos não vai detonar nenhuma crise no Ocidente.
Não acredito que as ameaças de sanções destrutivas da economia russa sejam levadas a cabo.
Provavelmente será encontrado uma solução, que não desagrade totalmente Washington, nem prejudique a economia dos países da União Européia.
Considerando a crise que ainda ronda a Europa, suas autoridades encontrarão forças para dizer “não” à belicosidade americana.
Ressalta o fato de que, derrotada a União Soviética, os europeus não precisam mais da proteção do braço forte de Tio Sam.
Bem que os americanos procuram pintar a Rússia de Putin como uma ameaça semelhante à extinta União Soviética, exigindo a manutenção da aliança militar Atlântica sob liderança americana.
Hagel, o Secretário da Defesa dos EUA, acabou de chegar de um périplo por países da Europa, no qual conclamou os governos a aumentarem suas despesas com forças armadas. O que não é um conselho de amigo para países empenhados em reduzir gastos para sair da crise.
O fator econômico vai acabar pesando mais alto.
Atualmente, EUA e União Européia são concorrentes na disputa por mercados e oportunidades de investimentos externos.
Essa realidade vai gerar cada vez mais disputas, afrouxando os laços entre os governos dos EUA e do bloco europeu.
Adversários declarados jamais serão, mas a tendência é que, cedo ou tarde, as duas partes acabem trilhando caminhos próprios e nem sempre iguais em suas políticas internacionais.
Começando provavelmente agora, na crise ucraniana, quando, por amor aos EUA, a Europa não deve querer sair prejudicada.