Liberdade para violar direitos humanos.

Em 2003, a opinião pública do Reino Unido estava chocada com a denúncia de que 146 iraquianos foram torturados pelo exército de ocupação inglês.

Os trabalhistas que governavam o país nessa época, criaram um departamento, o IHAT, (Iraq Historic Allegations) formado por 145 detetives para investigar todas as denúncias de violências contra os direitos humanos praticados por soldados de Sua Majestade.

Nos casos positivos, com a conclusão aprovada pelo Diretor de Serviços do Ministério Público (DSP), as vítimas ou seus familiares, nos casos de mortes eram indenizados e os transgressores, punidos.

Isso nunca foi bem-visto pelos militares do país.

Afinal, guerra é guerra…

Surgiu uma campanha, que protestava contra os métodos de investigação do IHAT “que destruíam as carreiras e desestruturavam a saúde mental dos soldados”, conforme o Sunday Times.

O ex-primeiro ministro trabalhista, Tony Blair, apoiava a causa dos militares que queriam fechar o IHAT.

Temia talvez que, depois da publicação do relatório Chilcot sobre a invasão e ocupação do Iraque, ele também acabasse sendo investigado por cumplicidade nos crimes de guerra que foram cometidos por lá.

Outras personalidades muito caras ao establishment

formaram ao lado dos militares.

Em setembro do ano passado, uma manifestação de soldaos, prevista para acontecer em frente à Câmara dos Comuns, foi impedida pelo secretário da Defesa, Michael Fallon.

Na ocasião, ele se mostrou solidário com os manifestantes e prometeu que o governo conservador não ficaria indiferente diante da sua situação.

Na verdade, foi além do solicitado.

Na conferência do Partido Conservador, realizada em Birminghan, a primeiro-ministro Tereza May e Fallon anunciaram em conjunto um novo estatuto para regularizar a questão.

O governo inglês desligava-se da Convenção Europeia de Direitos humanos e os soldados ingleses poderiam desconsiderar suas proibições, ou seja, praticar ações que violavam os direitos humanos.

E assim a Inglaterra entrava na contramão da história que cada vez mais procura garantir proteção às pessoas contra torturas, espancamentos, humilhações e outras violências praticadas por agentes do Estado.

A primeiro-ministro Teresa May alegou uma série de motivos para sua bizarra decisão.

Haveria no país uma tendência para condenações injustas, tendo se detonado uma “caça às bruxas”, com “vexames e acusações falsas” contra os soldados que por 8 anos participaram das ocupações do Iraque e do Afeganistão.

Conforme Teresa May, isso reflete a existência de um viés nas investigações do IHAT em favor dos denunciantes.

O resultado, Teresa May continua, é que se formou uma verdadeira “indústria de processos. ” Que advogados e supostas vítimas de abusos teriam criado e vem mantendo em funcionamento. Auferindo grandes lucros, às custas do tesouro nacional, assegurados por uma enxurrada de denúncias falsas, em geral convertidas em indenizações

Os fatos provam o contrário: entre 1.460 reclamações de abusos examinadas, somente 326 foram aprovadas.

É possível concluir que os procuradores do DST e os investigadores do IHAT devem estar levado em consideração somente denúncias rigorosamente justas.

Apesar das insinuações contidas na argumentação da Sra.May, sobre a conduta dúbia dos investigadores do IHAT, tudo leva a crer que foram um tanto apressadas. São eles policiais selecionados por sua experiência e probidade comprovadas. Não por recomendações de políticos da base aliada.

Por sua vez os advogados das vítimas são, quase sempre, membros de ONGs de direitos humanos, e trabalham voluntariamente nada recebendo pelos processos, quer ganhem ou não.

É verdade que os crimes de guerra dos soldados da Rainha não foram poucos.

Tanto é que um número substancial de violações já foram  plenamente estabelecidos. Embora a maioria das testemunhas resistam a depor por medo ou por esprit de corps (corporativismo), a secretaria de Defesa tem uma série de vídeos mostrando violências físicas, sexuais e religiosas durante interrogatórios.

Está também documentada a existência de instalações secretas de detenção nas áreas de operação do Reino Unido, o que nega os direitos de suspeitos e prisioneiros de guerra.

Por fim o Comitê Internacional da Cruz Vermelha – a mais respeitada organização mundial em matéria de leis humanitárias Internacionais- tem se queixado de abusos e violências praticadas contra prisioneiros de tropas inglesas.

Conforme o Telegraph, Michael Fallon, o secretário da Defesa, veio com mais esta: o pagamento por crimes de guerra e despesas legais das investigações representam um peso considerável no orçamento estatal.

Será?

O total desses custos entre 2004 e 2016 mal passou de 100 milhões de libras.

Acredito que 100 milhões de libras durante 12 anos, pode onerar pesadamente os orçamentos de países como Timor Ocidental, Antígua e Barbuda e as ilhas Maurítius.

Mas, será que as finanças do Reino Unido estão tão frágeis assim?

Diversos políticos, personalidades públicas e ONGs de direitos humanos protestaram contra a prevista benevolência do Estado a torturas e maltratos afins.

Cabe citar Nicholas Mercer, em artigo do The Guardian de 3 de outubro: “Como um juiz afirmou, o legado da guerra do Iraque tem sido a litigação.  Os exércitos modernos atualmente tem de se adequar à lei humanitária internacional e responderão por isso se não o fizerem. ”

Teresa May desconsidera essa obrigação.

É verdade que os infratores das leis de direitos humanos continuam sujeitos à Convenção de Genebra e ao Direito Internacional.

Mas os riscos de acabarem punidos com base nestas instituições são muito menores. É sabido que as vítimas de violências contra os direitos humanos tem de enfrentar grandes e por vezes insuperáveis obstáculos para seus processos conseguirem sentenças favoráveis.

Não foi por outra razão que a União Europeia criou sua própria Convenção de Direitos Humanos, com prescrições capazes de realmente punir os violadores.

E o Reino Unido, em 2003, a aplicou num sistema em que as vítimas já entravam na justiça com suas denúncias comprovadas pelas rigorosas investigações do IDHAT e pelo severo crivo do DST.

Com a saída da convenção europeia e o fim das incômodas investigações do IHAT, militares culpados dificilmente acabarão punidos.

Evidentemente, Teresa May está por dentro desta situação.

Sua nova postura face ao problema parece indicar uma volta às liberdades de que dispunham os militares ingleses até o início do século passado, em sua missão auto -assumida de “rule the wordl”(governar o mundo).

Teresa diz que, de agora em diante, os soldados ingleses poderão tomar as melhores decisões no campo de batalha confiantes em que não serão punidos por eventuais infrações aos Direitos Humanos.

Foi assim mesmo que eles praticaram “feitos históricos,” como o massacre de mil indianos que protestavam  pacificamente em Arintsir pela liberdade de seu país. Ou o tratamento desumano dado aos rebeldes boers, aprisionados no início do século 20 em campos de concentração. Ou as torturas e liquidações sumárias de inúmeros suspeitos de serem revolucionários da seita Mau-Mau, no Quênia.

Nessa época não havia leis de proteção à pessoas humana que limitassem a eficiência britânica.

Agora, livres das restrições da Convenção de Direitos Humanos da União Europeia, teme-se que aumentem substancialmente as violências praticadas pelas tropas do Reino.

O governo Teresa May dá mostras de que não está entre suas principais preocupações defender os direitos humanos.

Não é o que pensa a União Europeia, ciosa na proteção desses direitos, não apena pelo código exemplar que formulou há mais de 50 anos regulando esta matéria.

Em 28 de setembro passado, o Parlamento Europeu atuou mais uma vez para aperfeiçoar a proteção à pessoa humana.

Ele fechou as brechas na legislação proibindo a exportação de equipamentos que poderiam ser usados em torturas ou execuções sumárias.

Os legisladores atualizaram a lei anti- tortura, de 2005, para impedir as empresas europeia de anunciar esses equipamentos em feiras ou online.

Assistimos agora a um efeito perverso do BREXIT.

Livre de suas obrigações com a União Europeia,

a nova primeiro-ministro atende à classe militar, costumeiramente favorável aos conservadores, prejudicando as futuras vítimas de abusos eventualmente praticado por soldados ingleses.

Mas, como elas serão cidadãs de países estrangeiro que por poder vir a serem alvos de intervenções militares britânicas, isso será irrelevante.

E assim com essa lei retrógrada, típica de ditaduras, os conservadores avançam num caminho perigoso.

Desviam-se de um centro-direita moderado para uma direita linha dura, que lhes poderá ser fatal nas próximas eleições.

E certo que a liberação de torturas é, por enquanto, problema do povo e do governo inglês.

Mas, pergunto, que será do mundo se outras nações seguirem seu exemplo?

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