Israel NÃO é mais a única democracia do Oriente Médio

Há muitos anos a propaganda de Israel vem repetindo seu mantra: Israel é a única democracia do Oriente Médio.

Em toda a parte ele é aceito com um axioma. E, no entanto, há sérias dúvidas a considerar.

Não acho compatível com uma democracia uma lei que dá “o direito de exercer auto -determinação nacional no Estado de Israel somente ao povo judeu”, excluindo os palestinos, que são 20% da população.

Também numa verdadeira democracia não há espaço para a discriminação de minorias. Sob Israel, os 5 milhões de palestinos que habitam a Cisjordania ocupada não tem liberdade de palavra, expressão ou movimento. Nem mesmo o direito de voto. E os 2 milhões de árabes, cidadãos de Israel, são tratados como cidadãos de segunda classe, até mesmo como elementos nocivos, o que foi demonstrado numa eleição quando o premier Netanyau apelou aos judeus israelenses para que fossem votar pois “os árabes estão vindo em bandos aos locais de votação.”

Fatos assim levaram uma entidade internacional respeitável, a  Freedom House, de Washington, EUA- a relativizar a legitimidade da apregoada democracia israelense.

Seu relatório, “Liberdade do mundo em 2020”, abalou a credibilidade da glorificante propaganda israelense, colocando Israel entre “as 25 democracias mundiais em decadência.”

Essa acomodação do país semita num grupo de democracias, digamos, pouco dignas dessa qualificação, deveu-se a uma perda de 6 pontos, a partir de 2009, vista pela Freedom House como “declínio invulgarmente elevado para uma democracia (já)  estabelecida”.

A justificação desta insólita reprovação foi clara, definindo o premier Netanyahu, que governa o país desde 2009, como a razão principal do declínio da democracia israelense: “Netanyahu tem dado passos crescentemente drásticos para manter a lealdade dos grupos de extrema-direita, expandindo os assentamentos na Cisjordania  às expensas do moribundo processo de paz palestino, expulsando ativistas estrangeiros com base na oposição ás suas políticas e emitindo uma lei discriminatória, que reserva ás pessoas judaicas o direito de auto-determinação em Israel.”

Recentemente, um outro relatório completou a demolição da celebrada prioridade israelense na região.

Trata-se do V-Dem Report, um dos mais respeitados relatórios do mundo  sobre democracia e bom governança, publicado anualmente pelo  V-Dem (Variedades de Democracia) Institute, da Universidade de Gotenborg, Suécia.

De acordo com esse relatório, Israel é o 35º país mais corrupto, ligeiramente na frente de Botswana e seis posições atrás da União dos Emirados Árabes.

O relatório faz também um ranking dos países, classificados conforme seu respeito aos cinco princípios chave que oferecem abordagens para definir democracia: eleitoral, liberal, participativa, deliberativa e igualitária.

A performance de Israel não é de deixar nenhum israelense emocionado.

No índice de “Democracia Eleitoral”, Israel é colocado no 55º lugar; em “Igualitarismo”, não passa do 53º; a melhor nota do país foi referente a sua colocação do país entre as democracias liberais, 51º, o que deixa Israel atrás de nada menos de 50 outras democracias; no índice “Liberal”, que representa a “ proteção dos direitos individuais e das minorias contra uma potencial tirania das maiorias”, Israel ficou em 57º, o que merecia ser pior, haja visto o o modo com que o governo de Telavive trata os palestinos; o índice “Deliberativo”, como o V Dem Report explica, consagra “os valores fundamentais das decisões políticas na busca do bem público, embasadas em diálogos respeitosos e sensatos, em todos os níveis, em contraste com apelos emocionais, ligações pessoais, interesses paroquiais ou coerção.” Aqui, Israel obteve apenas o 76º lugar; a classificação mais baixa foi o 80º lugar no índice de ”Participação”, que, conforme o relatório sueco, “valoriza as formas não-eleitorais de participação política como as realizadas através das organizações da sociedade civil e dos mecanismos de democracia direta (do V Dem Report).”Aqui, Israel perdeu até para países como o Congo, a Somalilandia e Miamar.

Enquanto Israel deu-se muito mal nos relatórios da Freedom House e doV Dem Institute, a Tunisia saiu aplaudida.

Avaliando sua performance em todos aspectos de uma democracia, a Freedom House conferiu  70 pontos ao país ( em 100 possíveis), classificando-a como uma nação livre.  

O relatório do V Dem Institute- 2020 foi mais longe, declarou a Tunísia a mais democrática nação do Oriente Médio, deixando Israel 7 posições atrás.

A Tunísia foi o berço da Primavera Árabe, a onda popular que, em 2011, reuniu multidões nas cidades do Oriente Médio, exigindo democracia e o fim dos regimes autocráticos que dominavam a região  desde a descolonização do século 20.

A transição do país para a democracia foi extremamente difícil, tanto é que os demais países da Primavera Árabe não conseguiram realiza-la, alguns nem chegaram ao poder, em outros a revolução instituiu um regime democrático, porém de curta duração. Como no Egito, onde o ditador Mubarak foi destituído, com a eleição de Morsi, o primeiro presidente do país de sua história.

Um golpe de estado derrubou o presidente , sendo instituída uma ditadura militar, sob a presidência do general Sissi. Com prisões em massa, massacres e torturas dos opositores; judiciário, legislativo e imprensa controladas, o governo Sissi vem se perpetuando no poder, através de eleições manipuladas.

Na Líbia, uma revolução, apoiada pelo Ocidente, derrubou o ditador Gadafi. Em seguida, o caos instaurou-se no país, com milícias armadas dominando regiões inteiras, prendendo e matando rivais.

Posteriormente, por mediação da ONU, foi buscado um entendimento entre as forças rivais. Formou-se um governo questionado por grupos rebeldes que, unidos sob a liderança do general Haftar, tomaram boa parte  do país. A ONU tenta um armistício, por enquanto improvável.

Na Síria, uma revolução contra o presidente Assad, logo encampada pela Arábia Saudita, EUA e países do Golfo, acabou atraindo numerosos grupos jihadistas. Inicialmente vitoriosa, acabou recuando depois da entrada de forças da Rússia em favor de Assad. O governo central praticamente já venceu, mas tem ainda de tomar a cidade de Idlib, dominada pelo Nussra, grupo ligado á al-Qaeda.

No Iemen, a revolta popular contra o ditador Haleh terminou com sua deposição. Eleito para governar o país num período de transição de dois anos, Hadi, manteve-se no cargo mesmo depois do fim do prazo. O grupo dos houthis, que controlava o norte do país, iniciou então uma revolução, concluída com a tomada do poder pelos rebeldes.

A Arábia Saudita, patrocinadora de Hadi, agiu para repor seu protegé no trono iemenita. Formou uma coalisão com apoio de alguns estados árabes e dos EUA e participação direta dos Emirados Árabes Unidos, que acabou tomando metade do país. Depois de 5 anos de lutas, o Iemen é considerado  a maior crise humanitária do século. Não há solução á vista para cessar a guerra.

 No Bahrein, os rebeldes foram dominados a ferro, fogo e torturas pelo governo monárquico.

No Kuwait e na Arábia Saudita, as forças de segurança locais brecaram as manifestações por democracia logo no nascedouro, usando os métodos violentos de sempre.

 Parecia que na Tunísia, a Primavera Árabe também acabaria sendo estéril. Não foi o que aconteceu.

Depois da derrubada da ditadura Ben Ali, foram convocadas primeiras eleições parlamentares. O vencedor, o partido Ehnanda, ligado à Irmandade Muçulmana, teve de encarar gravíssimos problemas: a crise econômica da Europa, principal mercado consumidor da Tunísia; a crise gerada pela profunda mudança no regime; a oposição dos ultras salafitas e a desconfiança dos partidos seculares.

O regime Ben Ali apresentava dados sociais alarmantes: em 2010, o desemprego atingia 14% ; o índice de pobreza era de 40% e o PIB registrava queda de -3,8%.

A situação se agravava pelas naturais dificuldades que um governo, vindo para mudar tudo, tem na implementação  das transformações requeridas. O resultado foi uma inevitável lentidão para fazer com que as coisas começassem a acontecer.

Mas, mais de 800 mil desempregados não podiam esperar muito.

O partido salafista aproveitou o desencanto geral para deflagrar uma série de movimentos de massa violentos, greves e atentados contra as forças de segurança.

Exigiam que a sharia – leis islâmicas de 1.300 anos atrás- fosse aplicada estritamente, contra a posição já firmada pelo governo.

Por sua vez, os políticos  seculares não confiavam no governo de um partido próximo à Irmandade Muçulmana. Temiam que pretendesse tornar o país uma república islâmica, submetida aos dogmas do Alcorão.

O assassinato de dois líderes esquerdistas pôs mais lenha na fogueira. O governo atribuiu o crime aos salafitas e prometeu que os autores do crime seriam punidos.

Mas os oposicionistas  seculares o acusavam de cumplicidade ou pelo menos tolerância para com os criminosos. E saíram às ruas em grandes manifestações que pediam a renúncia do primeiro ministro e alterações nos textos constitucionais que já se achavam em discussão.

O governo cedeu, em parte. Substituiu o primeiro-ministro Ganouchi por um técnico, desvinculado a qualquer partido.

Nos debates da nova constituição, seculares e membros da Ehnanda fizeram concessões e, por fim, chegaram a um acordo.

O resultado foi um texto emblemático, o mais democrático no mundo islâmico, estabelecendo as liberdades de imprensa, reunião, expressão de ideias; independência dos três poderes; igualdade entre mulheres e homens, inédita entre os países da região; garantia dos direitos à educação e saúde grátis. O islamismo é a religião oficial do Estado mas todas as demais são  permitidas. A tortura é considerada crime grave.

Ficou demonstrado ser falsa a ideia de que os árabes só aceitam um regime secular autoritário ou um regime de caráter marcadamente religioso.

Nas segundas eleições parlamentares do novo regime, realizadas em setembro de 2019, houve grande divisão entre os partidos e os candidatos independentes eleitos.

Foram precisos quatro meses de negociações e 14 horas de debates no parlamento até o premier Fakhfakh conseguir a aprovação dos seus 15 ministros, entre os quais quatro mulheres.

Eles representam uma coalisão dos principais partidos, com exclusão do oposicionista partido liberal.

Duas eleições absolutamente limpas, realizadas dentro dos prazos constitucionais previstos, foram passos decisivos para a consolidação da hoje única democracia real do Oriente Médio.

Um comentário em “Israel NÃO é mais a única democracia do Oriente Médio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *