Neste mês a conquista do Iraque completa três anos. Mas os estrondos que se ouve por todo o país não são de foguetes comemorativos. São das bombas e tiros com que sunitas e xiitas se matam uns aos outros no conflito iniciado com a explosão da principal mesquita xiita do Iraque. Sinistra metáfora da situação atual e das perspectivas do Iraque no terceiro aniversário de sua invasão e ocupação.
Será um aniversário feliz? Não para os iraquianos, cuja pobreza aumentou 20% nesse período, no qual o índice de má nutrição infantil dobrou (relatório da ONU). Muitos deles nem estariam vivos para comemorar. A respeitada revista inglesa de medicina, a Lancet, falava em 100 mil civis mortos na guerra, até 2004. A ONG Body Count tinha número menos dramáticos: entre 28 e 32 mil.
Além das baixas, a guerra deixou seqüelas. O Pentágono calcula que seus exércitos usaram de 1.200 a 2.200 projeteis feitos de metais radioativos como urânio, cujo impacto ainda não é calculado com exatidão. Cientistas relacionam graves doenças dos soldados americanos e o nascimento de sete vezes mais crianças defeituosas em Bassora ao uso de um número muito menor de armas desse tipo na primeira Guerra do Golfo.
Mas os danos à saúde pública não ficaram nisso. Hospitais e pronto-socorros foram destruídos total ou parcialmente na invasão e nos dois ataques à cidade de Fallujah, durante a ocupação. Um informe conjunto do governo iraquiano e da ONU ,em maio de 2005, denunciava que 223 mil pessoas viviam com problemas de saúde crônicos causados pela guerra. Na educação, os resultados não são menos graves. Mais de 200 escolas foram destruídas e milhares saqueadas no caos após a queda do regime. Essas coisas não preocuparam muito a Coalizão. Após a vitória, trataram antes de mais nada de investir na segurança dos campos de petróleo.
Valia a pena pois o Iraque possui as segundas reservas petrolíferas mundiais. A constituição de 2005, influenciada pelo governo da ocupação, garantiu o papel principal às empresas estrangeiras. Iniciaram-se, então, negociações para lhes dar o controle sobre dezenas de campos. Há forte oposição de parte da sociedade civil, inclusive do sindicato dos trabalhadores na indústria do petróleo, defendendo a continuação de sua exploração pela empresa estatal.
Nos outros setores da produção, os investimentos têm sido raros. Como resultado, o desemprego continua alto: cerca de 30%. E a renda média da população caiu de U$ 3 mil em 1980 para U$ 800 em 2004. O que aumentou foi a pobreza: 30%, entre abril de 2003 até fins de 2005, tendo 20% da população, 2 milhões de iraquianos, com rendimentos de até 2 dólares por dia (Ministério do Trabalho).
Diante destes dados negativos há quem lembre um fato positivo: a substituição da ditadura de Saddam Hussein por um governo democrático. Pena que esse governo não seja soberano, pois as potências estrangeiras que ocupam o Iraque são o verdadeiro poder. Os mandatários iraquianos não podem revogar os 100 decretos do ex-governador Paul Bremer que determinaram a privatização das empresas estatais e proibiram preferências na contratação de empresas iraquianas para os trabalhos de reconstrução. Mais: os militares e funcionários dos países da Coalizão não estão sujeitos às leis iraquianas. Há poucos meses, em Bassora, dois agentes ingleses disfarçados de árabes mataram dois policias locais ao serem detidos para investigação. Encarcerados numa delegacia, foram libertados por tropas inglesas que destruíram o edifício. Justificando-se, o comandante inglês declarou que seus soldados só poderiam ser presos e julgados por autoridades inglesas.
Além dos iraquianos, também a ONU não está propriamente de parabéns por mais este aniversário da invasão. Sua carta foi violada pela decisão unilateral de Bush de invadir o Iraque. E ninguém fez nada. Foi um péssimo exemplo para outras nações que se sentirão autorizadas a tomar atitudes similares caso se digam ameaçadas por inimigos externos. Desobedecendo as leis internacionais, Bush desmoralizou a ONU, até então mundialmente respeitada como a instituição a quem cabe a solução de conflitos entre nações.
No entanto para muitas empresas estrangeiras (a maioria americanas), estes três anos foram uma festa. A Haliburton, que o vice-presidente dos EUA Dick Cheney dirigiu até poucos anos atrás, foi quem recebeu o melhor presente: contratos num valor superior a 10 bilhões de dólares para obras de reconstrução. Agora, se você considerar tudo o que o governo americano gastou na invasão e na ocupação, ou seja, cerca de 251 milhões de dólares, pode imaginar a alegria das empresas fornecedoras. Esse dinheiro, evidentemente, teve de sair do orçamento federal, desfalcando, especialmente os serviços sociais dos Estados Unidos. Mas o povo americano tem mais motivos para não cantar “happy birthday Iraq War”. Segundo o Pentágono, até 17 de fevereiro já haviam morrido 2.285 soldados americanos.
Para os americanos também não foi boa a perda de imagem causada pelas brutalidades de Abu Ghraib. Nos países muçulmanos, então, o ódio aos Estados Unidos atingiu os níveis mais altos. O que agravou o anti-americanismo foram fatos como o envolvimento de oficiais graduados, ignorado pelas autoridades americanas que puniram apenas uns poucos soldados e a revelação de diretrizes do governo permitindo torturas.
Outra importante perda sofrida pelos Estados Unidos na guerra do Iraque foi a expansão do terrorismo. Segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres, a agressão americana motivou grande número de árabes a entrarem na Al Qaeda. E o Instituto Nacional para a Prevenção do Terrorismo informou que os ataques terroristas no mundo aumentaram de 2.639, em 2004, para 3.991, em 2005.
Mas, e Bush? Estará festejando o aniversário da sua obra?
Bem, as últimas pesquisas são assustadoras. 68% dos americanos são contra a guerra (New York Times e CBS) – para 54%, foi um erro (New York Times e CBS) – 55% querem a saída das tropas por etapas definidas (Zogby) – 47%, sair já (Sacred Hearts). Péssimo para quem deseja continuar com um congresso dócil nas eleições deste ano.
Se os interesses eleitorais apontam para uma retirada rápida, os interesses político-econômicos discordam. Sem os canhões americanos, a situação pode ficar preta. É bem possível a união entre sunitas e xiitas, num governo aliado ao xiita Irã. O que poderia fazer naufragar a idéia de um Iraque fiel provedor de petróleo para os Estados Unidos. Mais do que disso: o novo Iraque seria pior do que Saddam Hussein para a política americana no Oriente Médio.
Por enquanto, Bush busca conciliar todos os interesses. Ele procura fortalecer o exército iraquiano e juntar curdos, xiitas e sunitas num governo de união nacional, o que pacificaria o país, permitindo a retirada das forças americanas. Mas também atua para que seja mantido o dispositivo constitucional que divide o Iraque em praticamente três regiões autônomas, favorecendo os fiéis curdos que ficariam com zonas ricas em petróleo e veriam com bons olhos a instalação de bases americanas em seu território. Bush tenta ainda dividir os sunitas, através da oferta de ministérios. Os xiitas já estão divididos entre os anti-americanos radicais de Motaqa Al Sadr e os moderados (a maioria). Na eventualidade da retirada das forças americanas de um Iraque desorganizado, com graves problemas econômicos e sociais, os xiitas e sunitas moderados tenderiam a uma postura pragmática: neutralidade diante do Irã, acordos na área petrolífera e talvez até uma base militar americana em troca de ajuda dos Estados Unidos.
É um jogo complicado, de resultados duvidosos. Certamente a maioria dos atores deste drama político não deseja muitos anos s de vida a esta guerra que aniversaria este mês.