Há já alguns meses, a Síria está praticamente sob controle das forças do presidente Assad e seus aliados- Rússia, Irã e Hisbolá.
As cinco maiores cidades do país, além de 8 das 10 maiores são governadas pelo regime de Damasco. No Norte, milícias jihadistas e uns poucos grupos moderados dominam a região de Idlib. Sua capital encontra-se sob cerco das tropas do regime Assad.
Já no Nordeste, a leste do rio Eufrates, prevalecem os curdos, liderando uma coalisão também integrada por milícias árabes, algumas jihadistas e outras moderadas. Tropas treinadas e armadas pela Turquia, teoricamente anti-Assad, localizam-se em diversas regiões, misturadas aos curdos e grupos afins.
É em 20 bases dessa parte do território sírio que se concentram as forças armadas dos EUA, somando dois mil soldados. Ali também estão estacionados esquadrões de aviões americanos, cujo papel foi decisivo nas vitórias contra o Estado Islâmico.
O grande obstáculo à completa reconquista do território sírio pelo governo legal são exatamente as forças de Washington.
O avanço das tropas do governo e aliados no Nordeste poderia resultar em choques diretos entre russos e americanos. O que não é do interesse de ninguém. Nem dos sírios, nem dos russos, nem dos iranianos… nem dos próprios americanos.
Todos sabem que mesmo confrontos limitados poderiam acender o rastilho da de uma guerra que não se limitaria ao Oriente Médio, brindando o planeta com as piores consequências.
Seja como for, a verdade é que o governo de Damasco militarmente já venceu a guerra. Está, portanto, em condições privilegiadas para negociar a paz com seus inimigos, pelo menos em pé de igualdade.
Várias vezes se buscou um acordo, em Genebra. Sempre sem êxito. Os rebeldes e o Ocidente colocavam como pré-condição a exclusão de Assad e seu cercle intime. Não colou: não dava para os atuais governantes do país aceitarem uma negociação de paz que começava com sua virtual rendição.
A mais recente tentativa internacional começou na conferência de Astana, liderada pelo trio Rússia, Irã (ambos pró-Assad) e Turquia (pró-rebeldes) envolvendo o mais alto nível das administrações desses países.
Os EUA, convidados, enviaram apenas um observador. Provavelmente porque a doentia vaidade de Trump não permite aderir a negociações promovidas principalmente pela Rússia, ainda mais com chances de dar certo.
E de fato parece estar dando certo.
Em Genebra, no dia 18 deste mês, Sergei Lavrov, ministro do Exterior da Rússia anunciou que as três potências firmaram um pacto para criar um comitê, formado por representantes do governo Assad, dos rebeldes e de elementos neutros, em partes iguais, objetivando a criação -sob a supervisão da ONU- de um novo e democrático país (The Guardian, 18 de dezembro).
A reunião para escolher os 150 membros desse comitê e o início do trabalho deles deverá se realizar o mais cedo possível, ainda em janeiro, para que o processo da reforma decole rapidamente.
Tudo isso só aconteceu, porque os EUA e os rebeldes acabaram aceitando que Assad e os seus participassem do processo de paz e democratização da Síria.
No dia anterior ao anúncio dos três países de Astana, James Jeffrey, representante especial dos US na crise da Síria, havia declarado: “Nós queremos ver um regime fundamentalmente diferente. Não se trata de mudança de regime – não queremos nos livrar de Assad.”
Jeffrey deu algumas pistas sobre o novo regime. Os EUA exigem que a Síria acabe com o lançamento de bombas químicas e com a tortura dos rebeldes. E esclareceu: “Não precisa ser um regime que deixaria os americanos entusiasmados, digamos, que se qualificasse para entrar na União Europeia…” (AFP, 17 de dezembro).
Não creio que os americanos aceitassem uma nova Síria semelhante à sua fraternal aliada, a Arábia Saudita, uma cruel ditadura, cujo governante de fato mandou matar um oposicionista no estrangeiro. Os sírios não poderiam dispor da mesma ampla aceitação gozada pelos sauditas, pois não são inimigos do Irã (odiado pela Casa Branca), nem importam 100 bilhões de armas de indústrias americanas…
A paz ficou mais provável quando Trump anunciou no dia 19, a retirada dos dois mil soldados e dos esquadrões aéreos americanos da Síria pois sua missão estava cumprida, o ISIS praticamente sumira da superfície da terra.
Quanto aos rebeldes, Alexei Borodavinski, embaixador da Rússia em Genebra, já anunciara que tinham deixado de exigir a queda de Assad, como pré-condição para se discutir o fim da guerra.
Por sua vez, a Arábia Saudita e o Qatar, além de terem minimizado ou mesmo abandonado suas remessas de armas aos rebeldes, vinham há algum tempo buscando se aproximar do governo de Bashar Assad. Recentemente, o príncipe saudita MBS declarou, em entrevista a jornal local, que o governo Assad deveria ser reconhecido. E a União dos Emirados Árabes acaba de reabrir sua embaixada em Damasco, fechada há sete anos.
Para a Europa, tudo bem, desde que haja eleições democráticas, com os três poderes independentes entre si, liberdades, direitos humanos etc.
Macron, já no ano passado, havia dito não considerar mais a saída de Assad um obstáculo ao início das negociações de paz.
A Turquia agora também aceita Assad, caso eleito pelo povo num pleito democrático.
Os outros atores na Guerra da Síria, os curdos, até agora não enfrentaram Assad, só participando (e com destaque) na luta pela destruição do ISIS.
Em conversa telefônica com Trump, Erdogan, presidente da Turquia, contou que os curdos já estavam discutindo com Assad uma acomodação que preservasse alguma presença no Nordeste da Síria. (American Conservative, 20 de dezembro).
Não sei se, fazendo essa divulgação, Erdogan estaria sinalizando uma eventual aprovação turca a algo como o estabelecimento de uma região semiautônoma curda.
O que se sabe é que os curdos se sentem altamente incomodados com a retirada americana.
Temem, como é natural, o ataque do exército turco e as reações dos fanáticos islâmicos.
Garantem que o Estado Islâmico ainda dispõe de muitos combatentes, cerca de 30 mil, reanimados pela decisão do presidente dos EUA.
A situação ficará particularmente grave caso Erdogan cumpra sua promessa e invada o território sob controle curdo.
Teoricamente, haveria um quadro com duas frentes de batalha:
– em uma delas, as força turcas estariam lutando contra as tropas de curdos e rebeldes anti-Assad, enfraquecidas pela perda de efetivos. Os grupos apoiados pelos turcos já informaram sua intenção de passar para o lado dos seus patrocinadores, através do seu comandante, o major Youssef Hamoud;
– na outra, as forças lideradas pelos curdos enfrentariam o Estado Islâmico, fortalecidos por tropas francesas e britânicas.
Não vejo qualquer possibilidade desse arranjo ser sequer proposto.
O governo Macron, embora favorável a um acordo com o regime Assad, protestou contra a retirada promovida por The Donald, ignorando a opinião dos demais países da coalisão anti-ISIS. Disse que aumentará a presença militar francesa na guerra ao ISIS, onde já atuam cerca de mil soldados, além de aviões.
O governo do Reino Unido tende a seguir seu exemplo. Logo após o comunicado de Trump, garantindo que o ISIS estava aniquilado, Tobias Ellwood, subministro das Relações Exteriores, afirmou não concordar (Reuters, 18 de dezembro). A destruição dos terroristas precisava ainda ser completada.
Incoerente como costuma ser, Trump deixou supor que, ao contrário do que declarara, o ISIS não estaria vencido, ao tuitar que Rússia, Irã e Síria não se sentiam felizes com a retirada yankee, pois agora teriam de assumir o ônus de enfrentar os fanáticos terroristas.
Não teria de ser um ônus muito pesado. O que se sabe sobre a situação dos terroristas é que estão espalhados pelos desertos do sudeste da Síria. Fora isso, controlam apenas duas ou três aldeias insignificantes, ainda assim sob ataque das tropas curdas.
Talvez para acabar de vez com os restos do ISIS, a Turquia, a França e o Reino Unido poderiam se unir aos aliados Irã, Rússia e governo Assad.
Seria uma coalisão jamais vista. Embora lógica, pois todas estas nações tem o mesmo interesse em liquidar de vez o ISIS.
Mas duvido que aconteça. Os EUA iriam se opor com toda energia e existem sólidas resistências na Europa quanto a aproximações íntimas a russos e iranianos. Acho mais possível que as forças do ISIS, provavelmente muito inferiores ao que foi estimado pelos curdos, fiquem por conta da Turquia, que, aliás, já está por perto, ou de uma coligação França, Reino Unido e curdos.
Sempre supondo que se encontre um acordo entre todas estas partes, que paralise a fúria de Erdogan contra os curdos, enquanto se forma o comitê que deverá definir a transição do regime Assad para a democracia.
OS 500 mil mortos na guerra da Síria esperam que esse projeto vá em frente.
Só assim sua morte não terá sido totalmente em vão.