Num domingo de dezembro, Trump apareceu de surpresa numa base americana no Iraque, a al-Asad Air.
Tirou fotografias, sorrindo e abraçando our boys, distribuindo afeto e exortações patrióticas. Colheu um bom material para sua campanha pela reeleição, em 2020.
Os jovens soldados vibraram com com a visita presidencial.
Quem não gostou nada foram os donos da casa, os iraquianos.
Assessores do presidente Barhan Salim reclamaram que só souberam da visita praticamente em cima da hora. Não dava para alterar o programa de atividades de Salim para poder receber The Donald.
E daí, disseram os americanos, ele pode pegar um avião e voar até a base para encontrar nosso chefe. É rapidinho.
Aí os iraquianos ficaram indignados. Não era forma de se tratar um chefe de governo. O Iraque não era uma colônia, cujo presidente larga tudo na hora e atravessa o país só para atender ao chamado do líder da metrópole.
Alguns falaram em desprezo à soberania iraquiana. Esses “alguns” viraram muitos, quando se soube que Trump afirmara não ter planos para desocupar as bases americanas no Iraque, inclusive porque: ”Podemos usar esta como base se quisermos fazer alguma coisa na Síria” (Washington Post, 26-12-2019).
Aparentemente Trump considera as bases do Iraque território dos EUA, que ele pode usar como e quando quiser.
Foi assim que entenderam deputados dos dois blocos majoritários no congresso do Iraque – a Reforma e o Binaa.
Indignado, Sabah al-Saedi, líder da coalizão no parlamento, condenou Trump pela “clamorosa violação da soberania do Iraque.” E acrescentou: “Trump está agindo como se o Iraque é um país sob sua autoridade…A ocupação do Iraque acabou.” Terminou afirmando que a saída de tropas americanas da Síria não era justificação para as manter no Iraque.
Por sua vez, Badr al-Zaidi, membro do comitê parlamentar de Segurança e Defesa, foi claro; “Nos dias de hoje, nós vemos as bases militares iraquianas cheias de tropas dos EUA, armas, munições e aviões…O parlamento como um todo fala sério ao ( desejar) expulsar as forças dos EUA do Iraque (Rudaw, 2-1-2019).”
Qais Khazali, chefe da milícia Asaib al-Haq, disse confiar que o parlamento votaria pela retirada das tropas americanas. Mas, concluiu ameaçadoramente, avisando que, se elas não partissem, a milícia as poria para fora “por outros meios.”
As forças de Washington vieram para o Iraque em 2014, a pedido do governo de Bagdá. Eram tempos de Obama.
O objetivo do acordo bilateral assinado na ocasião, foi que os EUA se instalariam em bases iraquianas para lutar contra o ISIS, até a derrota final dos fanáticos terroristas.
O principal interessado no acordo, claro, era o Iraque.
Também tinha muita importância para os EUA, o ISIS inspirava atentados nos países do Ocidente, além de pretender estender seu domínio sobre todo o Oriente Médio.
Sem contar que convinha à política externa americana barrar a influência do vizinho Irã, que disputava com os americanos as boas graças do governo do Iraque. Teerã já vinha armando e treinando milícias xiitas iraquianas para a guerra contra o ISIS.
A aviação americana foi fundamental na destruição dos fanáticos radicais islâmicos. Mas as milícias patrocinadas pelos iranianos e o exército do governo de Bagdá também tiveram papéis destacados.
Com a derrota do ISIS, Ralph Tillerson, então secretário de Estado, afirmou que as milícias (que ele chamou de iranianas) deveriam se desmobilizar ou ingressar no exército regular do Iraque. Ou seja, cair fora da política, deixando seu espaço para Washington.
Houve protestos de algumas personalidades locais, sendo os mais significativos do aiatolá Sistani, líder dos xiitas iraquianos. Para ele, as milícias eram fundamentais para o país.
Elas acabaram se registrando como partido e, unidas, foram o segundo bloco mais votado nas eleições parlamentares deste ano, logo após o bloco liderado pelo clérigo Moqtada al Sadr. Os dois grupos formam hoje o governo do país.
Durante a ocupação do Irã pelas forças americanas, entre 2003 e 2011, al- Sadr foi seu inimigo número 1, chefiando diversas ações de guerrilhas da resistência local, inclusive verdadeiras batalhas pela tomada de cidades.
Depois da retirada dos EUA em 2011, al Sadr acabou fundando seu partido político que, em 2018, concorreu às eleições, aliado aos comunistas, este um pequeno partido.
Na campanha, o clérigo proclamou que o Iraque deveria ser independente tanto dos EUA, quanto do Irã. Curiosamente, foi mais crítico da influência iraniana no país do que a dos EUA, que tanto combatera nos anos da ocupação yankee.
Agora, esse comportamento deve estar mudando.
Surgiram novos e graves problemas afetando as relações EUA-Iraque, principalmente os relativos à permanência dos americanos nas bases militares do Iraque.
Em uma conferência de imprensa em Abu Dhabi, o coronel Sean Ryan falou, em nome do comando americano: “Nós conservaremos tropas lá (no Iraque) enquanto acharmos que é necessário.” Afirmou ainda que, atualmente, com o ISIS derrotado, seriam necessários “esforços de estabilização” (Reuters, 19-8-2018), praticados pelas tropas de Tio Sam, instaladas nas bases.
Ora, isso não estava previsto no acordo bilateral das forças americanas no Iraque. As tropas permaneceriam apenas até a derrota dos ISIS. O que segundo o próprio Trump, já aconteceu.
Portanto, para os parlamentares iraquianos dos partidos dominantes, a continuidades da presença dos EUA nas bases iraquianas seria ilegal.
Mais recentemente, as relações EUA-Iraque sofreram um abalo ainda maior.
Tendo The Donald decretado sanções contra os países que negociassem com o Irã, o Iraque precisaria parar de importar gás de Teerã, indispensáveis às suas usinas de eletricidade.
O governo Barhan Salim pediu a Washington um waiver (licença) para continuar importando gás do Irã, sem sofrer sanções. Compreensivos, os EUA concederam um waiver de 45 dias.
Quando venceu, deram mais 90 dias.
Não bastava.
Autoridades iraquianas afirmam que precisam de um waiver de dois anos para encontrar uma fonte alternativas ao gás iraniano.
Parece que Washington não está gostando da ideia. E já manifestou seu descontentamento.
Reações a esta posição foram as declarações, digamos, um tanto agressivas, do ministro das Relações Exteriores do Iraque, Mohamed al-Hakim.
Ele ponderou que as sanções unilaterais decretadas por The Donald não são de alcance internacional. Portanto, o Iraque não é obrigado a respeitá-las.
Juridicamente, está correto.
Mas al-Hakim não parou por aí.
Falou que, caso os EUA endurecessem, ameaçando aplicar suas sanções no Iraque, o país teria várias formas de continuar seu comércio com o Irã, “inclusive usando dinares iraquianos, numa transação bilateral.”
Não creio que sejam bravatas. O comércio entre os dois países já atinge 12 bilhões de dólares. Em visita a Teerã, o presidente iraquiano, discutiu a ampliação das relações econômicas Irã-Iraque com o presidente Rouhani, do Irã, o qual não fez por menos, afirmou que as troca entre os dois países pode expandir-se chegando a 20 bilhões de dólares por ano (Middle East Eye, 2-1-2019).
Solidificar sua influência sobre o Iraque está sendo complicado para os EUA.
Eles querem a manutenção das tropas americanas no Iraque por anos sem conta. É um modo de conter a expansão do Irã no país que já foi das mil e uma noites.
O rompimento das relações econômicas iraquianas com Teerã é vital para desestimular outros países do Oriente Médio a ousarem desafiar as sanções dos EUA contra o Irã.
Teerã se posiciona de maneira privilegiada: assiste às agruras que o governo de Trump está tendo de encarar, limitando-se a estimular os deputados amigos a insistirem nas soluções contrárias à Casa Branca nas duas questões citadas acima.
O governo Bahan Salim, apesar da forte influência política iraniana, prefere que tudo acabe em paz.
Ele vem sendo extremamente pragmático, permanecendo independente para aproveitar-se da briga Irã versus EUA e conseguir vantagens dos dois.
No momento, o cenário parece favorável à República Islâmica.
Se o morador da Casa Branca insistir em manter suas tropas alojadas nas bases iraquianas e em exigir que o Iraque corte suas importações de gás do Irã, a balança deve pender para o governo dos aiatolás.
Não é o desejável pelo governo iraquiano.
Além de perder as benesses americanas, poderia atrair atos hostis de Washington.
Por outro lado, se ceder a The Donald in totum, tem grandes chances de acabar caindo do cavalo, seu povo é muito belicoso e tem motivação e experiência em manifestações de rua, que podem chegar longe demais.
Acredito que será encontrada uma solução intermediaria, que não agrade muito a nenhum dos dois países rivais, mas que não os faça desistir de continuar brigando pelo alinhamento de Bagdá.