Mais uma vez o volátil Erdogan ameaça sair da órbita de Washington.
A amizade turco-americana começou a se deteriorar antes do golpe militar fracassado de 15 de julho.
Erdogan sempre viu com maus olhos o apoio aéreo dos EUA às tropas curdas do PYD em ação contra o ISIS, no nordeste da Síria.
O PYD criou uma administração autônoma na região conquistada ao ISIS. Quer agora expandi-la expulsando os ultraradicais das áreas ocupadas por eles ao longo da fronteira com a Turquia.
Erdogan teme que essa proximidade fortaleça a guerrilha do PKK (partido dos curdos da Turquia) aliado ao PYD, há 20 anos lutando contra o governo de Ancara.
Apesar de protestar repetidas vezes contra a ajuda dos EUA aos curdos, Obama não o atendeu.
Os americanos não podem deixar na mão o PYD, que são as forças terrestres que mais derrotas impuseram ao ISIS.
O máximo que Obama fez por Erdogan foi exigir que os eficientes curdos não passassem do rio Eufrates no seu avanço pelo território sírio.
Seria uma linha vermelha que os manteria afastados das fronteiras com a Turquia.
Mas isso não acalmou o presidente turco.
Tratou de reatar com Putin, que brigara com ele depois de um avião turco abater um avião russo na fronteira da Turquia com a Síria.
Batendo no peito, Erdogan pediu desculpas, admitindo que o culpado fora o seu piloto.
Para o governo russo, a nova postura do líder turco caiu do céu. Abria novas possibilidades de se influenciar o presidente turco na criação de problemas na aliança com os EUA, a Arábia Saudita e o Qatar para tirar Assad do poder na Síria.
Foi quando o golpe fracassado de militares turcos veio acelerar a aproximação russo-turca.
Assim que estourou, o esperto Putin apressou-se a comunicar seu apoio, total e irrestrito ao amigo recém-recuperado.
Já Obama demorou a se pronunciar.
Segundo os turcos, só o fez depois dos militares rebeldes estarem claramente derrotados.
Isso irritou Erdogan e seus fiéis cortesãos.
A irritação virou raiva, quando o presidente da Turquia, tendo acusado seu rival Gulen de ser o arquiteto do golpe, exigiu sua extradição dos EUA, onde ele estava refugiado. E a Casa Branca respondeu: sem provas, nada feito.
Estimulado pelo governo, o antiamericanismo cresceu com toda força no país, tendo bandeiras de Tio Sam queimadas por massas de manifestantes.
Animado pela voz das ruas, o ministro da Justiça Bozdag declarou: “Tenho certeza de que o presidente Obama, a inteligência americana e o secretário de Estado sabem que Gulen é o autor do golpe. Tenho certeza de que eles não têm qualquer dúvida a respeito disso. ”
E, Erdogan foi mais longe. Em um evento com investidores estrangeiros, afirmou: ”O Ocidente está apoiando o terrorismo e tomando o lado do golpe. Os atores dele (os golpistas) estão na Turquia mas o roteiro deste golpe foi escrito no estrangeiro”.
As coisas passaram a pender claramente para os russos, quando Erdogan foi se encontrar com “o amigo Vladimir ” em Moscou.”
Os dois trocaram juras de amor eterno, celebraram acordos econômicos, inclusive a construção de um gasoduto para levar gás russo à Turquia- e discutiram assuntos políticos.
Noticiou-se que ainda não chegaram a um acordo quanto à saída ou permanência de Assad no governo de Damasco.
Mas voltariam a tratar do caso.
Enquanto isso, Yildirim, o primeiro-ministro turco vetou a ideia de um Estado curdo, não só no norte da Síria, como também em todo o país.
E informou que para acabar a guerra síria, a Turquia impunha duas condições:
Primeira condição: a integridade do território sírio seria mantida; Segunda condição: seria criada uma administração na qual todas as comunidades religiosas e étnicas seriam representadas.
Depois disso, concluiu Yildirim “não haverá nenhum obstáculo para se procurar uma solução. ”
Excluindo, portanto, o mantra dos rebeldes e das potências que os apoiavam: “sem Assad, sem paz.”.
Alarme na Casa Branca!
Obama moveu-se com rapidez.
Ancara recebeu sua garantia de que a ofensiva curda não ultrapassaria o rio Eufrates, mantendo-se assim afastada do território contíguo à fronteira turca.
Aviões americanos apoiariam ofensiva de soldados e tanques turcos, aliados aos rebeldes sírios, para expulsar o ISIS de Jarablus, cidade-chave na fronteira da Síria com a Turquia. Evitando, assim, que os curdos chegassem primeiro.
Enquanto isso, enviado por ele, o vice-presidente Biden foi a Ancara, humilde e contrito, conversar com Erdogan.
Biden apresentou a nova posição americana quanto à extradição de Gulen.
Os advogados da Casa Branca estariam estudando como apresentar o caso de modo a ajustar-se aos princípios e regras do sistema judiciário americano.
Na mesma ocasião, correu nos jornais do planeta que advogados yankees teriam afirmado, que por circunstâncias locais, a extradição de Gulen levaria anos.
Hábil jogada.
Ao mesmo tempo, Tio Sam mostrava-se solidário a Erdogan, admitindo indiretamente suas razões contra Gulen. E culpava o independente sistema judiciário americano pela larga procrastinação do processo.
Ou seja: contentariam Erdogan deixando claro que estavam do lado dele e não sujariam sua imagem de apóstolos do Direito, promovendo uma extradição que sabiam carecer e de evidências concretas.
Erdogan gostou, mas fez nova exigência.
Conforme sua promessa, os EUA deveriam obrigar os curdos a saírem de Manbij, cidade situada além do rio Eufrates, recém-tomada ao ISIS. E de todas as outras ali situadas, que tinham ocupado ou poderiam vir a ocupar.
Biden estava para tudo.
Imediatamente mandou os curdos saírem sem demora, caso contrário a força aérea americana os abandonaria.
Aplacado, Erdogan novamente mudou seu discurso.
De jeito nenhum renunciaria à expulsão de Assad. E estava morrendo de rir do protesto russo contra a invasão do norte da Síria pelos tanques turcos.
O que a gente de Moscou queria era desviar a atenção mundial dos supostos crimes dos russos na Síria.
Tudo indica que a ovelha tresmalhada voltara ao aprisco.
Será?
O Middle East Eye noticia fatos perturbadores para a Casa Branca.
Teerã teria se aproximado de Ancara.
Começou quando Zarif, ministro do Exterior do Irã, foi dos primeiros a enviar seu apoio ao sensível Erdogan, no início do golpe militar fracassado.
Parece que as duas partes se entenderam rapidamente: ambos não admitem um Estado curdo na Síria e consideram o YPG a maior ameaça na região (David Barnard no Middle East Eye).
Não demorou muito e Turquia e Irã anunciaram um acordo preliminar sobre os princípios fundamentais para a paz no conflito sírio. Fato revelado pelo primeiro-ministro Yildirin, em discurso a líderes do AKP (partido de Erdogan) e publicado nos jornais Al-Araby e Al-Hayat (de Londres).
E o Irã assumiu um novo papel, o de facilitador da coordenação entre Turquia e Síria, conforme fonte Middle East Eye.
O primeiro resultado foi uma mudança da atitude das forças de Damasco diante dos curdos.
Até então, havia neutralidade entre eles. Mas, no dia 22 de agosto, aviões sírios bombardearam posições curdas na cidade de Hasakah.
Enquanto isso, em várias ocasiões o primeiro-ministro Yildirim afirmou que no futuro acordo de paz, Assad poderia continuar num governo de transição.
Fica claro que Erdogan tem os pés em duas canoas para se aproveitar da sua posição na guerra da Síria.
Cada lado depende dele para sair vitorioso.
Ameaçando aproximar-se de Putin, ele forçou Obama a fazer fortes concessões nas questões que mais interessam ao turco: a extradição de Gulen e a expulsão dos curdos.
Visivelmente ele quer mais.
Aproximando-se agora do Irã, fiel aliado da Rússia e da Síria, ele mantém sua pressão para que os EUA extraditem Gulen rapidamente, sem mais subterfúgios- e parem de vez com o apoio aéreo aos avanços das tropas do PYD, em qualquer parte da Síria.
Não será nada fácil.
Provavelmente Obama vai manter a extradição em marcha lenta, deixando o abacaxi para seu sucessor descascar.
Para que manchar sua biografia com uma gambiarra judicial?
Já os curdos não demonstram disposição nem mesmo de voltar para o lado leste do Eufrates, quanto mais de renunciar ao seu sonho de um Curdistão independente, separado da Síria.
Interromper os ataques aéreos cobrindo os avanços dos seus aliados curdos será jogar aos cães esses corajosos combatentes anti-ISIS.
A opinião pública do seu país ficaria indignada. Muito indignada.
Não seria uma decisão digna da tão falada excepcionalidade americana.
De outro lado, Erdogan teria coragem de fechar com Assad depois de passar quatro anos exigindo sua cabeça?
Acho possível que suas ameaças de abandonar o barco da coalisão anti-Assad não passem de mero blefe.
Terá Obama coragem de pagar para ver?