Egito: ilusões perdidas.

De acordo com suas leis, o governo dos EUA é obrigado a cortar qualquer ajuda econômica a um país vítima de golpe de estado.

Era o que deveria ser feito no Egito, com a derrubada do Presidente Morsi pelo exército.

Mas Obama não queria problemas com a junta militar que assumiu o poder.

Evitou chamar de golpe o que aconteceu no Egito, limitando-se a suspender a ajuda de 1,3 bilhão de dólares, até que o país entrasse no caminho da liberdade e do respeito aos direitos humanos.

A realização de eleições foi o suficiente para convencer a Casa Branca. John Kerry, o Secretário da Defesa, chegou a proclamar que se tratava de um “retorno à democracia.”

Na semana passada, em visita ao Cairo, ele se mostrou tão contente com os “avanços democráticos” do governo local, que anunciou  o fim da suspensão da ajuda americana, prometendo o envio para “breve, muito breve” dos helicópteros de combate ansiosamente esperados.

Aproveitou o embalo para expressar “forte apoio” à liberdade de expressão e de reunião no país dos faraós e das pirâmides.

Fechou os olhos para a existência de 16 mil (dado oficial) a 41 mil presos políticos (dado de observadores), 638 condenações à morte sem evidências sérias, cerca de 2 mil oposicionistas mortos pelas forças de segurança, entre outros feitos nada recomendáveis.

Kerry recebeu a devida paga pela, digamos, cegueira, logo no dia seguinte à sua eufórica visita.

Numa demonstração dos conceitos do governo Sissi de liberdade de expressão, à qual o governo Obama dá “forte apoio”, três jornalistas da rede catariana Al Jazeera – o egípcio Baher Mohamed, o canadense Mohamed Fahmy e o australiano Peter Greste – foram condenados a penas  de prisão draconianas simplesmente por fazerem seu trabalho.

O julgamento foi uma autêntica farsa.

Entre as evidências apontadas pelo procurador, estava um interessante vídeo.

Era um pout-pourri, incluindo cenas de cavalos trotando filmadas pela Sky News Arabia, uma apresentação da cantora australiana Gotye e um documentário da BBC sobre a Somália. 

Seria cômico se não fosse trágico.

Testemunhas-chave da acusação retrataram-se de declarações anteriores ao julgamento de que os réus haviam atentado contra a segurança nacional.

Em uma manifestação oficial, a Anistia Internacional afirmou: “Em 12 sessões, o procurador não conseguiu provar sequer um farrapo de evidência sólida, ligando os jornalistas a uma organização terrorista ou provando que eles haviam falsificado filmes.”

Não adiantou nada.

A corte considerou provadas as acusações de que os jornalistas divulgaram fatos falsos para prejudicar a imagem internacional do Egito e estavam ligados à Irmandade Muçulmana, taxada (falsamente) pela junta militar como terrorista.

E condenou dois dos jornalistas a 7 anos de prisão. O terceiro ganhou três anos  extra por portar “munição de guerra”, uma bala disparada em manifestação, que ele guardava como lembrança.

Para reforçar a resposta a John Kerry e a todos que criticavam os novos tempos no Egito, o Ministro do Exterior, Sameh Shoukry, expressou “completa rejeição de qualquer interferência estrangeira nos assuntos internos do nosso país.”

Obama não quis passar recibo.

Apelou para o Presidente Sissi, para que concedesse um indulto aos três jornalistas.

Ouviu um inesperado “não”.

O marechal-presidente alegou que precisava respeitar a autonomia do seu judiciário.

Como se isso existisse.

Os juízes egípcios estão plenamente integrados na ideologia de segurança do sistema que rege o país.

Nada têm de imparciais.

Em janeiro do ano passado, absolveram todos os policiais acusados de matarem manifestantes nos protestos contra o ditador Mubarak, em 2011.

Nem um único agente de segurança foi condenado pelo assassinato de mais de 1.000 participantes de marchas de protesto contra a ditadura militar, desde 3 de julho (data do golpe), conforme Sarah Leah Whitson, do insuspeito Human Rights Watch.

No massacre de mais de 500 partidários do presidente deposto Morsi, quando o exército os atacou a tiros no sit-in (protesto sentado) da Praça Rabaa, sequer se fez um inquérito sobre a ação militar.

As vítimas é que foram incriminadas, numa curiosa inversão de papéis.

Além da já provada falta de interesse pelos conceitos e procedimentos democráticos por parte do governo Sissi, esse episódio permite diversas análises.

Aparentemente estamos diante de um caso de wishful thinking. Ou seja: o governo Obama quis acreditar que, com um pouco de pressão, os militares egípcios levariam o país para a democracia.

Convinha que fosse assim porque permitiria aos EUA manterem o novo regime na sua órbita numa boa. Por isso mesmo, Obama preferiu ignorar as leis americanas que o obrigariam a cortar as torneiras de onde jorravam dólares para o Egito.

As tremendas transgressões éticas do governo do Cairo obrigaram a Casa Branca a suspender sua ajuda econômica até as eleições, sonhando que, Sissi eleito iria civilizar seu regime.

Acho que a decisão do julgamento dos três jornalistas é uma sentença de morte nas esperanças americanas.

O marechal mostrou que não teme a Casa Branca, depois das suas seguidas concessões, ignorando as brutalidades do governo militar e se apegando a razões frágeis para justificar a continuidade do seu apoio.

Já viu, por experiência própria, que os EUA falam muito em direitos humanos, liberdades, etc.,  mas, no fim, acabam mesmo abrindo a carteira, por conveniência política.

Sissi sabe que sempre poderá  contar com os petrodólares da Arábia Saudita, empenhada como ele em destruir a Irmandade Muçulmana, única força de oposição capaz de ameaçar os dois regimes.

Conta também com o apoio da maior parte do seu povo, graças a uma campanha de marketing muito bem executada e ao desencanto dos egípcios com os políticos.

Claro, esse apoio tende a diminuir e até a virar minoritário se o marechal não conseguir resolver a situação desastrosa do país, o que é uma tarefa exageradamente ambiciosa, mesmo com a ajuda do dinheiro saudita.

A curto e talvez médio prazo, essa situação não deve mudar o que vai deixar  o Presidente Obama numa posição embaraçosa.

Terá de continuar tratando bem o regime despótico dos militares egípcios, por mais matérias chocantes que  eles proporcionem ao público externo, especialmente o americano.

Será mais um aliado incômodo, tipo Arábia Saudita, cujas violações dos princípios mais caros ao povo dos EUA acabam respingando na Casa Branca.

Seja como for, Barack Obama já decidiu: o Cairo vale bem uma missa.

 

 

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