Chindia: sonho e pesadelo

Em 6 de julho, no passo de Nathu Lai, perdido na imensidão do Himalaia, será reaberta a antiga “estrada da seda”, única ligação rodoviária entre China e Índia, fechada desde 1962. Espera-se que ela traga um volume de comércio entre as duas nações de um bilhão de dólares, em 2010. Mas é secundário, o importante é que significa um passo decisivo na aproximação entre as duas economias que mais crescem no mundo. Não se sabe até onde esse processo vai levar, mas sua resultante já tem nome: Chindia.

Nas últimas cinco décadas, China e Índia alternaram fases de conflitos e de amizade. Ambas fizeram suas revoluções nacionais na mesma época – China em 1949, Índia em 1950. No começo, tudo eram flores. A Índia não aderiu à ONU na guerra contra a Coréia do Norte e a China. E apoiou a submissão do Tibete ao governo de Pequim.

Em 1959, a situação mudou. Enquanto a China contestava a posse pela Índia de territórios ao longo da fronteira, o Dalai Lama, fugido do Tibete, recebia asilo em território indiano para ele e milhares de seguidores. Conflitos locais se sucederam, culminando com uma curta guerra de fronteiras. Quando a China rompeu com a União Soviética, o governo de Delhi permaneceu aliado de Moscou. Em represália, os chineses firmaram tratados de amizade com o Paquistão, inimigo histórico dos indianos.

Uma reaproximação aconteceu nos anos 80, quando os dois países buscaram resolver suas diferenças com relação a territórios e ao Tibete, por via de negociações. Que se arrastaram, até que, em l987, as coisas ficaram pretas com mobilização de tropas nas regiões em disputa. Paz de novo na década de 90, com juras de amor mantidas até os testes nucleares realizados pela Índia. Países de todo o mundo condenaram, a China foi dos mais cáusticos, o que levou George Fernandes, então ministro da defesa da Índia, a declarar: “a China é a ameaça número um da Índia”. 

No início do século 21, chineses e indianos compreenderam que só tinham a ganhar se associando. Trataram de resolver seus contenciosos. A China reconheceu a região de Sikin como parte da Índia e esta parou de apoiar o Dalai Lama. O comércio bilateral, até então insignificante, foi estimulado, passando de poucos milhões de dólares em 1999 a 10 bilhões em 2004 e 18,73 bilhões em 2005. Empresas indianas e chinesas de petróleo apresentaram projetos conjuntos em concorrências internacionais. A abertura da estrada da seda, fechada durante a guerra de 62, é emblemática dessa nova postura. Talvez mais significativo ainda seja o fato de os governos de Pequim e Delhi terem marcado 2006 como o “ano da amizade sino-indiana”, com uma extensa programação de eventos que reforçam a parceria entre os dois povos – ou seja, a idéia da Chindia.

A integração de Índia e China é sem dúvida vantajosa, pois suas economias são complementares. Enquanto a China é forte em manufaturas e infra-estrutura, a Índia o é em serviços. A China é líder em hardware, a Índia, em software. A superioridade em mercados físicos da China é complementada pela superioridade em mercados financeiros da Índia. Uma eventual Chindia reuniria dois países que somam um terço da população mundial, detentores dos mais altos índices de crescimento. Prevê-se que em 2050 responderão por metade da produção mundial. A população economicamente ativa da China chega a 800 milhões de pessoas; 650 milhões é o número da Índia. Em 2003, o PIB da Índia era de 600 bilhões de dólares, devendo chegar a 1 trilhão em 2010, cifra que a China já atingiu em 2000.

Este imenso poderio econômico fatalmente trará consigo um poder político de idêntica dimensão, como observou Kamal Nath, ministro da Indústria e Comércio da Índia, em junho último: “a associação da Chindia e da ASEAN (Associação das Nações do Sudoeste da Ásia) se tornará um poder global a ser considerado de forma una em uma relação mutuamente benéfica”.

As ações dentro do conceito da Chindia já transcedem a área econômica. Em maio último, China e Índia assinaram um acordo militar determinando exercícios e programas de treinamento conjuntos. Na ocasião, o ministro da Defesa indiano defendeu “…a relação crescente de parceria estratégica entre nossos países, em favor da paz e da estabilidade”. E concluiu: “a Índia não quer ser usada para conter a China”. É exatamente o que Bush pretendia com o recente acordo nuclear Estados Unidos – Índia, assim comentado pelo congressista Edward Markey: “não podemos dizer ao Irã, que assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que não pode possuir tecnologias de enriquecimento de urânio, quando forjamos uma exceção nas leis anti-proliferação especialmente para a Índia, que tem se recusado a assinar o tratado”.

O acordo nuclear libera de inspeções internacionais grande parte da infra-estrutura nuclear da Índia. Pelo menos 1/3 dos reatores ficarão fora das inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica. Somente os reatores para fins militares serão sujeitos a exame, sendo que os indianos indicarão quais são eles. Poderão, portanto, deixar de fora tantos quantos quiserem. É uma flagrante violação das leis internacionais, justamente quando Bush exige que o Irã obedeça a elas.

Para a Casa Branca, os prejuízos causados à imagem dos Estados Unidos com esta “hipocrisia nuclear” são secundários diante da importância de afastar a Índia da China. Os artefatos nucleares indianos visam duplo alvo: conter os arroubos expansionistas da China e indispor seu governo com o governo de Delhi, obstaculizando o processo de formação da aliança entre os dois.

É sabido que os formuladores da política internacional americana consideram a China uma ameaça futura à hegemonia mundial dos Estados Unidos, que fica mais grave com a adição da Índia. Embora a idéia da Chindia seja embrionária, está definida a intenção de Pequim e Delhi de se aproximarem cada vez mais. Se vai resultar numa integração semelhante à européia ou num pacto de menor abrangência, não é possível prever. De qualquer forma, a união de dois países com o poderio de China e Índia gerará um superpoder capaz de contestar os Estados Unidos.

Por enquanto, a Chindia é ainda um sonho, mas, para a política imperial do governo Bush, já é um pesadelo.

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