Quando o comedido Joe Biden chamou o astuto Putin de “assassino” houve chocante surpresa, apimentada por censuras severas, em toda a parte.
Afinal, o presidente dos EUA estava qualificando o premier da Rússia como um criminoso da maior gravidade, realçada pela alta posição ocupada num dos mais poderosos países do mundo. Temia-se por uma reação de alto impacto.
Na verdade, foi muito barulho por quase nada. Ou mesmo, nada.
Quando um menino, irritado, chama outro de filho da puta não significa que considere a mãe do outro uma prostituta. Não necessariamente provoca uma resposta violenta.
Podemos fazer um paralelismo com o episódio da incontinência verbal de Biden e suas eventuais conseqüencias.
Propriamente, Biden não estava acusando Putin por algo como a tentativa de assassinato do incômodo oposicionista Navaltny. Apenas expressou sua indignação diante do mau comportamento do governo de Moscou no episódio. Mesmo porque não havia provas imputando Putin diretamente. A ordem de envenenamento poderia muito bem ter partido de alguém do cercle intime do poderoso chefão da Rússia.
E o clamoroso palavrão sequer esquentou lugar nas manchetes. Nem de longe deu em crise, no máximo em um mal-estar entre putnistas de raiz.
No entanto, mesmo que não tenha sido responsável pelo envenenamento de Navaltny, ao procurar abafar o escândalo que se produziu, Putin adquiriu o desconfortável status de moralmente cúmplice, o que não é pouca coisa.
O assassínio de um ou alguns cidadãos por autoria direta ou indireta de uma alta autoridade política coloca-se na mesma prateleira de um genocídio. Claro, não tem a mesma gravidade, não vitimiza um grande número de pessoas. No entanto, em nosso tempo, o direito internacional o considera como um crime extremamente repulsivo, condenado com o maior rigor.
Tendo alçado a bandeira da defesa dos direitos humanos, Biden, além de acoimar de assassino o apenas suspeito Putin, poderia alvejar outros figurões, estes sim notórios autores de assassinatos políticos. Cito três deles que recentemente integraram a lista desta insigne buona gente: o príncipe Mohamed bin Salman, herdeiro do reino da Arábia Saudita (apelidado de MBS), o ex-presidente Donald Trump e Bibi Netanyahu , primeiro-ministro de Israel.
Segundo relatórios da própria CIA, o príncipe saudita aprovou (se é que não planejou) o horroroso assassinato e desmembramento do jornalista oposicionista Kashoggi, em pleno consulado do seu país, em Istambul, Turquia.
O mundo tremeu de horror.
O congresso americano exigiu a punição deste nobre filho do deserto.
Na época, o presidente era Donald Trump, apesar de fortemente pressionado pela maioria dos congressistas dos dois partidos, que refletiam os desejos da opinião pública, nada fez. Ou melhor fez uma série de acordos e reuniões festivas com o criminoso membro da corte saudita.
Durante a campanha, Biden atacou rudemente o príncipe e garantiu que os EUA acabariam com o tratamento especial dado ao governo de Riad.
Uma vez eleito, limitou-se a mandar publicar o relatório acusatório da CIA e, como pena, aplicou no feroz príncipe a humilhação de não ser procurado para conversações pelo presidente dos EUA, como acontecia na era Trump. Ignorou, assim, que Mohamed é o governante virtual da petromonarquia e preferiu ligar para o rei Salman, o soberano oficial, para tratar de questões que interessam aos dois países.
O assassinato do general Suleymani, que liderava as ações iranianas em países amigos (Iraque, Síria e Líbano) foi efetuado por ordem direta do então-presidente Trump, em represália à invasão da embaixada dos EUA em Bagdá, organizada por milícias locais pró-Irã, que, contida pelo exército iraquiano, não fez vítimas.
Atendendo a Trump, o comando militar yankee lançou contra o general iraniano um míssil fulminante que, aproveitando a viagem, matou também o líder das milicias iraquianas pró-Irã, mais outros personagens menos votados. Registre-se que o general estava no Iraque, legalmente autorizado pelo governo desse país, com quem os EUA mantêm boas relações.
The Donald alegou que atacara Suleymani para salvar objetivos do seu país em risco de sofrer ataques que o general iraniano estaria articulando. Nenhuma prova foi apresentada. E pouca gente acreditou num presidente que tinha e tem a credibilidade da cloroquina.
Na ocasião, Biden não acusou Trump de assassinato, apenas o criticou por ter ordenado um ato que poderia provocar uma guerra no Oriente Médio, envolvendo as forças americanas lá estacionadas.
Dois anos depois foi a vez de Netanyahu, codinome Bibi, repetir as façanhas delituosas de MBS e de Trump.
Lançou uma operação contra o Irã para vulnerar seu programa nuclear, por sinal pacífico, e provocar eventuais retaliações que atingissem os EUA ou seus aliados na região, dando um passo em direção á guerra no Oriente Médio.
O assassinato do físico iraniano Mohsen Fakhrizadeh, líder do programa nuclear do país, foi atribuído em toda parte ao Mossad, serviço de espionagem e ações ilegais israelenses no exterior.
Como é sabido, toda as ações com objetivos mortíferos do Mossad têm de ser aprovadas pelo primeiro-ministro de Israel. Portanto, a responsabilidade de Bibi Netanyahu pelo assassinato do físico iraniano é inegável.
Sucede que não é a primeira vez que o Mossad mata fora de Israel personagens de proa de países ou grupos inimigos, crime que os países ditos civilizados da Europa costumam deixar passar batido. Fazem de conta que estavam por fora, embora a imprensa europeia e americana costume atribuir essas malazartes ao Mossad. Como sempre, as autoridades israelenses não negam ou admitem a autoria desse tipo de atividades praticadas no exterior.
Biden também aqui perdeu mais uma chance de mostrar que sua promessa de defender intransigentemente os direitos humanos era para valer, já que não chamou Netanyahu de assassino.
Argumenta-se que aplicar este termo por demais pejorativo em dirigentes de países aliados como Israel e Arábia Saudita, poderia provocar arrufos e até ruturas por parte deles, prejudicando os principais objetivos políticos dos EUA no Oriente Médio, que são: deter a expansão do Irã na região e combater o terrorismo.
Washington também está comprometido com a defesa destes países contra ameaças do Irã (por enquanto, apenas verbais), embora os dois tivessem forças mais do que suficientes para, associados à amiga União de Emirados Árabes, hoje uma potência militar de respeito, darem conta dos iranianos, se necessário.
Xingar Netanyahu e Trump de assassinos pegaria muito mal nos EUA, onde estes ambiciosos chefões tem muitos adeptos. Por sua vez, o Irã é muito malvisto nos lares americanos, impactados pela intensa propaganda antiTeerã, desferida desde dezenas de anos atrás por políticos dos grandes partidos, evangélicos, associações pró-Israel, jornais, emissora de rádio e Tv, pastores de televisão, professores, clubes de senhoras do Middle West, etc
E Biden, como todo presidente americano, sonha com sua re-eleição.
Agora, não tire conclusões apressadas.
Não acho que poupar autoridades aliadas de merecidas acusações de assassino, como Biden brindou Putin, desautorize o presidente de se autoproclamar paladino universal dos direitos humanos.
Bastaria uma simples alteração, qualificando o bem-intencionado Joe Biden como
defensor dos direitos humanos, a não ser quando contrarie interesses dos EUA.
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