Assassinato das leis e da justiça.

Nunca a guerra com o Irã pareceu tão possível.

Ao assassinar o general Suleimani, o governo Trump, como é seu hábito,

violou leis internacionais, desta vez não uma, mas um bom número delas.

Assim, a Casa Branca ratificou um princípio fundamental da sua

política externa: a lei da selva está acima das leis internacionais.

De fato, a força é a principal fonte de direito do sistema trumpniano.

Justificando-se, o Pentágono afirmou que o atentado foi executado

para impedir futuras ações iranianas contra pessoas ou interesses

americanos.

E Trump acrescentou que tinha evitado ataques planejados por

Suleimani para explodir a embaixada americana.

Os juristas da Casa Branca garantiram que se tratava de auto-

defesa, à qual as leis internacionais dão luz verde.

Não é bem isso.

O Artigo 51 da Carta das Nações Unidas (assinada, inclusive pelos

EUA) proíbe o uso da força militar, a não ser quando autorizada

pelo Conselho de Segurança da ONU (o que não aconteceu) ou

quando o país age em auto-defesa, definida como a realizada em

resposta a um ataque que já aconteceu ou se encontra em

execução.

Ou seja, é iminente.

Agnes Callamard, relatora especial da ONU sobre execuções extra-judiciais,

informa num tuite: “Futuro não é o mesmo que iminente…”

Segundo as declarações do Pentágono e de The Donald, os supostos

ataques não seriam iminentes, ficariam para uma ocasião não-

determinada, futura.

Lembro ainda que os EUA não ofereceram evidências, sequer indícios, de

que Suleimani estava trabalhando na operacionalização de atentados.

Em qualquer sistema judiciário de um país democrático, ou mesmo

apenas civilizado, acusações sem evidências não valem nada.

Tanto Trump, quanto autoridades políticas e militares americanas dão de

barato que o comandante da Quds Force não passava de um terrorista,

responsável pela morte de 700 soldados americanos. Ergo, tinham direito

de executá-lo, pois um terrorista está sempre pronto a praticar um

atentado.

Onde quer que esteja.

As leis humanitárias internacionais discordam: elas proíbem assassinatos

de inimigos (terroristas ou não) em países estrangeiros, a não ser em

algumas situações, além da auto-defesa: a) o país estrangeiro autorizou a

execução; b) o país do suspeito não tem condições ou vontade de agir

contra o indigitado cidadão.

Defendendo o uso militar de drones dos EUA no Oriente Médio, Eric

Holder, procurador geral do governo Obama, disse que o estado de guerra

legalizava  a eliminação num país estrangeiro de terroristas da al Qaeda,

Talibã, Estado Islâmico e grupos conexos.

No caso presente, inexistia qualquer das circunstâncias que tornariam

legal o assassinato do general iraniano.

O governo de Bagdá não foi sequer comunicado previamente. Não teria

como  autorizar a ação americana, nem rejeitar um hipotético pedido para

processar o chefe militar iraniano.

Também não há um estado de guerra entre Teerã e Washington.

E Suleimani é um dos mais importantes generais iranianos,  investido em

tarefas que seu governo reputava necessárias à segurança nacional.

Não se trata de um terrorista, assassino de  700 americanos .

Na qualidade de comandante das ações do Irã no exterior, não teria nem

função, nem tempo para preparar pessoalmente cada ataque dos

centenas (ou milhares) praticados pelos milicianos xiitas.

Mesmo que o fizesse, estaria em seu pleno direito.

Veja a seguir porque eu defendo esta ideia.

As perdas americanas no Oriente Médio concentraram-se, neste século,

na invasão e ocupação do Iraque. Em nenhum dos demais fronts as

milícias xiitas mataram soldados de Tio Sam.

 No Líbano, de americanos só existiam espiões, diplomatas e jornalistas. O

Hisbolá, aliado do Irã,  atua bastante no país, mas especificamente contra

Israel. No Iêmen, onde costuma haver assessores iranianos, os EUA

apenas fornecem armas e apoio aos sauditas, nenhum soldado. Na

Palestina, fazem o mesmo. Igualmente ali não lutam nem iranianos, nem

milícias  xiitas (o Hamas é sunita).

Já soldados iranianos e milicianos pró-Irã participam destacadamente de

guerras na Síria, mas somente em defesa do regime do presidente Assad.

Em raríssimas ocasiões tiveram contacto com forças americanas, que

atuavam  na guerra contra o ISIS e no apoio aos curdos (até que os

abandonaram, quando o exército turco chegou).

Nesse front, não há registro de americanos mortos pelos seguidores de

Suleimani.

No Iraque é diferente. Milicianos xiitas, treinados e armados pelo Quds,

força liderada por Suleimaini, mataram militares americanos, a maioria

absoluta durante as lutas contra a ocupação americana, que se seguiu à

invasão promovida pelo governo Bush.

Mas isso não torna terroristas o general e seus comandados, pois eles

estavam lutando numa guerra de libertação,  para expulsar do país um

exército que o ocupava ilegalmente.

Nesse episódio histórico, os good guys eram os movimentos de resistência

dos iraquianos, inclusive as milícias apoiadas pelo Irã, cabendo aos EUA o

papel de vilãos.

 Chamar de terrorista o general Suleimani pela morte de soldados

americanos na guerra de libertação do Iraque  equivale a aplicar esse

pouco lisonjeiro epíteto aos maquis franceses, que mataram muitos

alemães nazistas, durante a ocupação do seu país. Ou mesmo dizer que o

general Eisenhower tem as mãos sujas do sangue dos solados  inimigos

que os aliados mataram na 2ª Guerra Mundial.

Tanto o general americano, quanto o iraniano, lideravam forças militares

empenhadas em guerras justas.

No caso do conflito recente, os americanos, mais uma vez, penalizaram o

Iraque, jogando no lixo uma lei internacional, a que proíbe a violação da

soberania.

Vale aqui citar Madhi,  primeiro-ministro do Iraque: “O assassinato de um

comandante militar iraniano, que ocupa uma posição oficial, é

considerado uma agressão ao Iraque…e a liquidação de figuras de

liderança iraquianas( cinco dos nove mortos no ataque) e outras de um

país fraternal no solo iraquiano é uma maciça violação da soberania.”

Como consequência desse múltiplo assassinato, o parlamento do Iraque

exigiu a expulsão de todas as forças americanas e estrangeiras.

Era imperativo. Não só pelo desrespeito à soberania iraquiana, como

também ao acordo de instalação de forças americanas em bases militares

cujo fim expresso era combater o ISIS. Assassinar generais iranianos não

estava entre suas atribuições.

Trump reagiu com a habitual arrogância imperial.

 Primeiro, afirmou que, tendo os EUA gastado bilhões numa das bases, só

se retirariam caso Bagdá os indenizasse. Em seguida, ameaçou: se

realmente os iraquianos exigirem que os EUA saíam, sofrerão “sanções

que eles jamais viram antes. As quais fariam que as sanções contra o Irã

parecerem suaves.”

É uma ameaça terrivelmente assustadora.

O povo do Iraque já sofreu os efeitos devastadores de sanções nos anos

entre a Guerra do Golfo e a invasão injusta do Irã pelas tropas do então

presidente George W.Bush.

Em maio de 1996, no programa “60 minutos”, referindo-se aos efeitos das

sanções aplicadas no Iraque no período 1989-2003, o jornalista Leslie

Stahl perguntou a Madeleine Albright: “Ouvimos dizer que meio milhão de

crianças morreram. Isso significa: mais crianças morreram do que em

Hiroshima. Será que esse preço valeu à pena?”

E a secretária de Estado do então governo Bill Clinton respondeu: “Penso

que foi uma decisão difícil, mas o preço, pensamos que o preço valeu à

pena.”

Segundo a grande mídia, o primeiro-ministro do Irã, temendo o peso das

forças militares e das sanções econômicas da Casa Branca já aceita que

somente os soldados combatentes deverão sair do país. Os que atuam

como assessores e treinadores de soldados iraquianos permanecerão.

Não sei se, diante do enorme orgulho de Trump, essa concessão será

suficiente.

Penso que os movimentos populares iraquianos as rejeitarão, pois se

acham enfurecidos com a morte de Suleimani. 

Eles tem a seu favor o respeitado aiatolá Sistani, principal líder religioso do

Iraque, que condenou em termos duros o assassinato, mencionando

também outro morto importante: Mohandi, sub-chefe das Forças de

Mobilização Popular, pró-Irã (New York Times, 03-01-2019).

Apesar da vítima principal dos drones de Trump ter sido iraniana, os

interesses  americanos também foram atingidos.

A multidão de iraquianos, que vinham se manifestando contra a corrupção

de seus políticos e a intromissão estrangeira, particularmente dos

iranianos, mudou de lado: uniu-se ao governo de Bagdá, na rejeição aos

EUA.

O clérigo xiita al- Sadr, um dos líderes na luta contra a ocupação

americana no período 2003-2011, que ultimamente partilhava as mesmas

posições dos manifestantes, tomou duas decisões preocupantes para a

Casa Branca:

– propôs a união do seu movimento com o partido das milícias xiitas pró-

Irã;

– convocou seus seguidores a remobilizarem seu exército de milicianos,

que no passado lutaram nas ruas contra a ocupação americana.

Em suma, a retumbante decisão militar de The Donald causou a perda do

Iraque para o Irã, unificando numa frente anti-EUA forças religiosas,

populares e políticas, que até ontem miravam Teerã com olhares

atravessados.

O governo do feliz esposo da maravilhosa Melanie, deve contabilizar

perdas sensíveis até no Irã.

As sanções americanas já mostravam resultados palpáveis, tinham

danificando a economia iraniana a um tal ponto que o país entrou em

crise, causando grandes manifestações de protesto contra o governo, no

mês passado.

As mais de um milhão de pessoas acompanhando o caixão de Suleimani

são uma evidência de que a população, tendo seu orgulho nacional ferido

pelos mísseis made in USA, agora uniu-se ao  governo contra os inimigos

do seu país.

Por fim, o governo Rouhani anunciou que voltava a enriquecer urânio sem

limitações, somente de acordo com as necessidades técnicas do país.

Afirma que jamais construirá armas nucleares, mas há um sub-texto

evidente: como os EUA resolveram partir para a guerra, precisamos de

armas nucleares para conseguir que nos respeitem.

Os europeus parecem ser os mais conscientes  da viabilidade  

de uma conflagração até mundial.

Eles pediram que os dois lados se abstivessem de novas maldades

militares. O receio é que o barraco entre EUA e Irã degenere numa guerra,

cujo primeiro efeito pode ser o bloqueio do estreito de Ormuz, por onde

passa grande parte do petróleo consumido pelos países do Velho Mundo,

o que lançaria o preço do combustível às alturas, trazendo uma nova crise

internacional.

Aparentemente, o lançamento de mísseis contra duas bases americana fez

brotar esperanças de paz.

Segundo o Irã, ele foi arrasador, matando 100 soldados americanos e

destruindo dezenas de helicópteros, carros de combate, instalações, etc

E os iranianos consideram-se vingados.

O que foi confirmado pelas declarações do seu ministro da Defesa, general

Amir Hatami: “O próximo passo do Irã será proporcional a uma ação que

os EUA levem a cabo (Al Arabyia News, 09-01-2020).”

Segundo Trump, o lance bélico iraniano foi um fracasso, não mataram

ninguém, os danos teriam sido mínimos e “os iranianos parecem ter se

acalmado.”

Soube-se depois que õ governo de Teerã, para evitar mortes de

americanos, preocupou-se em mandar avisar os seus adversários dos

ataques de mísseis que lançaria conta duas bases.   

Com isso, apesar das meia-mentiras de Rouhani e Trump, nenhum

americano morreu, mas as instalações das bases foram atingidas,

danificando pesadamente os equipamentos militares que abrigavam.

Dois dias depois, Mike Pompeo anunciou a aplicação de mais sanções

contra o Irã, ainda piores do que as já existentes.

O que significa pouco ou nada. Não há como fustigar mais o povo iraniano.

Embora teoricamente permitidas, as importação de remédios e alimentos

pelo Irã não acontecem, pois os exportadores do Ocidente receiam

infringir os complicados regulamentos do departamento do Tesouro dos

EUA e serem penalizados.

Será que o perigo já passou?

As sanções tem sido uma arma mortal usada por Trump para destruir as

bases da sociedade iraniana. A crise econômica, com seu devastador

cortejo de desemprego, inflação, preços em contínua ascensão, fome e

doenças consequentes da falta de remédios e alimentos.

Nesse quadro, corajosas decisões contra os inimigos americanos

compensam, ao menos emocionalmente, os sofrimentos do dia a dia.

Pressionado pelo povo e pelos radicais, o presidente Rouhani dificilmente

deixará de partir parar novos lances militares.

Afinal, ele pretende vencer as eleições parlamentares marcadas para

fevereiro.

Por seu lado, The Donald está estourando de vaidade. Firmou uma

imagem de valentão, que dá uma banana para a prudência e as leis

internacionais.

Aparentemente seu povo gosta de ver o líder dar conta de adversários

“malignos. “

The Donald também vai enfrentar uma eleição neste ano, em novembro.

Os fatos sugerem que ele não teria escrúpulos em tentar garantir sua

sonhada reeleição. Mesmo às custas de uma guerra em perspectiva.

Por agora, o perigo passou.

Não dá para prever até quando.

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