Durante sua primeira campanha eleitoral, Trump condenava duramente a guerra do Afeganistão e prometia acabar com ela, sem demora.
Demorou 3 anos, mas finalmente, em 2020, ele entrou em entendimentos com os talibãs, firmando um acordo de paz entre os dois antagonistas.
Basicamente, os talibãs prometiam não permitir que a al Qaeda ou similares usassem o território afegão para promover ataques terroristas contra os EUA ou seus aliados. O que não será problema pois o Talibã é um movimento nacionalista cujo objetivo é expulsar as tropas estrangeiras do país. Praticou alguns atentados terroristas, mas somente atingindo adversários no interior do país. Jamais em outros países. Nada indica que a América será alvo do movimento islamita.
Em troca, os EUA retirariam todas as suas forças militares do Afeganistão. No espaço de 135 dias, sairiam 8,600 dos 13.000 soldados atuais, sendo que os demais tomariam o mesmo caminho dentro dos 14 meses seguintes. Desde que, nesse interim os guerrilheiros islamitas se comportarem e assinem um acordo final com o governo de Cabul para a criação de um governo compartilhado pelas duas partes.
Até aí, tudo bem.
É evidente que tanto os talibãs e o regime afegão vigente tem interesse em acabar com a guerra, portanto, depois de algumas divergências protocolares, os negociadores deverão chegar a um desfecho satisfatório. Visto isso, as tropas americanas irão embora, deixando o Afeganistão em paz, livre de uma guerra brutal que se aproximava de 20 anos.
Há certas dúvidas sobre esse happy end.
A guerra do Vietnam também terminou com um acordo de paz. Só que, depois de uma razoável espera, o Vietnam comunista lançou uma ofensiva contra o governo de Saigon.
Não houve resistência, desmotivado, o exército rival praticamente se desmanchou, ficando o país unificado, sob a liderança do líder comunista, HoChi-Min.
O governo de Washington fez os veementes protestos, como se esperava dele. E ficou nisso.
O Vietnam firmou-se como uma nação comunista até pouco depois da queda da União Soviética, quando pragmaticamente ingressou no mundo capitalista, sendo hoje, se não aliado, pelo menos um bom amigo dos EUA.
Caso os talibãs resolvam imitar os vietnamitas comunistas, atacando o regime de Cabul depois de um prazo, digamos decente, suas chances de êxito parecem ser grandes.
Não se espera muita coisa da capacidade combativa do exército do atual regime de Cabul.
Nestes 19 anos da guerra do Afeganistão, os EUA gastaram 64 bilhões de dólares somente para treinar e equipar as forças do governo afegão.
Dinheiro possivelmente jogado fora pois a eficiência dessas forças continua escassa, devido principalmente à corrupção dos vários governos que se sucederam e de muitos soldados e até oficiais militares. Em 2016, o país ficou na rabeira do campeonato muindial da corrupção, classificando-se em desonroso 169º lugar. Não creio que, de lá para cá, tenha feito por merecer uma nota muito melhor.
Em diversas cidades, soldados venderam munições a gente da região, inclusive a pouco recomendáveis clientes, conhecidos comandantes talibãs.
Além do grande número de deserções, muitos recrutas, após receberem o primeiro salário, roubavam seus rifles de assalto e desapareciam na noite, talvez a caminho do posto mais próximo do Talibã para vender os produtos do seus furtos ou para aderir ao movimento islamita.
Nesses negócios nada éticos, os EUA viram reduzir-se sua imensa superioridade em armamentos, que sempre tiveram nas guerras contra rebeldes pelo mundo a fora.
Os mini-caminhões armados Hunivees, invenção americana extremamente útil nos campos de batalha, apareceram cada vez mais nas mãos terroristas de milicianos talibãs. A insurgência chegou a dispor de um número de Hunivees quase igual ao das forças do governo.
Uma das origens da necessidade de aumento constante nos orçamentos militares dos EUA na guerra foi uma trapaça local: os chamados “soldados fantasmas (ghost soldiers).’’
Soube-se por autoridades do regime atual que alguns militares de altas patentes registravam soldados inexistentes nas folhas de pagamento dos seus comandados. Quando os salários da tropa chegavam, iam direto para os bolsos ávidos dos rapinantes oficiais. Segundo os observadores, em 2016, cerca de 40% dos soldados afegãos só existiam no papel.
Seja como for, é possível que o Talibã não adote a alternativa militar, prefira criar um governo sólido, compartilhado com os grupos liderados pelo recém reeleito presidente, Ashraf Ghani. O que lhe daria maior poder de fogo para conter as numerosas e belicosas facções alinhadas com quatro líderes políticos, cada qual se auto-proclamando o verdadeiro presidente.
Aparentemente, o mais forte deles é Abdullah Abdullah, que obteve quase a mesma votação de Ghani. Ele garante que 300 mil votos fraudulentos foram computados em favor do rival. Não aceita a investidura do presumido vencedor e já está formando seu gabinete ministerial. Tem a seu lado Abdul Dostum, que foi vice de Ghani no período anterior e dispõe de apreciável número de seguidores, equipados com armas modernas e loucos para usá-las. Outro candidato presidencial, Ramatullah Nabil condena o pleito como um todo, rejeitando tanto Ghani quanto Abdullah. Para ele, os dois precisam desistir em seu favor, a quem caberá formar um governo com o Talibã. Mais dois pretendentes, o ex-prineiro ministro, Gulbadin Hekmatyar e Mohammad Torsan exigem a anulação do pleito. Hakim diz esperar um certo tempo para que Ghani e Andullah caiam fora, espontaneamente. Caso se recusem, ele e seu partido assumirão o governo de Cabul (The National Interest-21-02-2020).
Atrás de todos estes políticos há os chamados “senhores da guerra”, que dominam suas regiões com verdadeiros exércitos particulares. Muitos deles estão conectados a organizações dedicadas ao tráfico internacional de drogas, num volume tal que faz do Afeganistão o líder mundial nesse ramo de atividades. No interesse das suas atividades ilegais, poderão investir pesados recursos no financiamento de ações políticas e militares dos seus seus candidatos a presidente.
Ainda se encontra também operando no país uma filial do ISIS, que já promoveu diversos atentados e projeta prosseguir nesse mau caminho.
Todos estes grupos estão de olho no novo regime que resultará do acordo de paz, com seus dedos coçando nos gatilhos.
Ter de enfrentá-los sozinho faz os talibãs vacilarem diante da hipótese da tomar o poder depois da retirada yankee. Não parece valer á pena, pelo menos a curto e talvez médio prazo.
Por isso, acredito que há mais chances dos talibãs se associarem às forças do governo de Cabul para governarem juntos um Estado com capacidade de controlar eventuais rebeldias das facções locais.
Mas, enquanto a paz não for firmada, os postulantes ao poder no país já estão em pé de guerra. Por ora, apenas verbal, mas a temperatura política pode se aquecer em níveis desmesurados a qualquer momento.
O fato de existirem cinco grupos inimigos entre si dificulta a explosão de uma guerra civil. Não a impede. Um fato suscetível de causar discórdias pode degenerar num conflito, já que o pais vive um momento extremamente delicado.
Parece que Ghani, o presidente oficialmente eleito, incidiu nesse erro.
Foi convencionado no acordo EUA-Talibã que a reunião para negociação de paz entre as partes teria de ser antecedida por uma troca de prisioneiros entre o Talibã e Cabul.
Inicialmente estabelecido para ocorrer em 10 de março, este evento foi adiado para 31 do mesmo mês, quando autoridades do presidente Ghani o adiaram sine die, sem explicar as razões.
Ao mesmo tempo, a indicação dos nomes dos negociadores da paz foi refutada pela facção de Abdullah, pois na elaboração da lista dos negociadores Ghani teria pisado na bola deixando de nomear um número significativo de oposicionistas.
O Talibã também rejeitou a equipe nomeada, disse que só negociará com um comitê que represente os dois lados. Natural, interessa a eles tratar com as duas forças mais poderosas, no intuito de se chegar a um acordo de paz mais representativo.
Trata-se de um duplo impasse mas que, sem dúvida, acabará sendo resolvido. Os EUA tem as melhores condições para puxar as orelhas de Ghani, constrange-lo a parar de criar caso.
Fica a impressão de que os políticos afegãos do regime atual estão mais interessados em assegurar posições mais fortes na discussão do acordo de paz, do que na paz propriamente dita.
O que prenuncia a colocação de novos obstáculos, que poderão não ser tão fácil de resolver como o último.