Em abril passado, retaliando o bárbaro assassinato de quatro seguranças ocidentais, o exército americano atacou Fallujah com tudo: aviões, helicópteros, mísseis, tanques e infantaria, encontrando resistência desesperada dos sunitas, que a controlam.
Depois de semanas de lutas ferozes, a morte de 600 civis inocentes chocou até os iraquianos aliados das forças de ocupação. Temeu-se que a continuação dos ataques poderia causar perdas humanas ainda maiores e levantar todo o Iraque contra as forças de ocupação. Isso as levou a aceitar um acordo, no qual as milícias rebeldes deixariam de atuar na cidade. Em troca os soldados americanos e do exército do governo iraquiano ficariam fora dela, deixando a administração e a segurança pública a cargo dos líderes sunitas locais.
Essa paz relativa, embora sangrentamente perturbada por milhares de atentados isolados em todo o país, durou só quatro meses. Em agosto, na cidade sagrada xiita de Nadjaf, a milícia Mehdi, do aiatolá radical Al Sadr, que, não faz muito tempo, promovera duros enfrentamentos com os americanos, voltou a sublevar-se. Tudo começou por um incidente numa delegacia, cuja responsabilidade não ficou provada, com tiros e mortes entre os milicianos e a polícia do governo. Em pouco tempo, os milicianos de Al Sadr controlavam a cidade. E a história se repetiu. O exército americano, apoiado pelos soldados do governo, bombardeou Nadjaf com aviões, tanques, mísseis, helicópteros, canhões e infantaria. Depois de três semanas de lutas, os americanos encurralaram os rebeldes na ampla área da mesquita local. Envolvendo-se pessoalmente no caso, o presidente Allawi acompanhou de perto as operações. Quando Al Sadr falou em acordo, ele foi duro: “não há negociação com qualquer milícia que levante armas contra o Iraque”. Os americanos e ele queriam a prisão de Al Sadr, o desmonte da milícia e a entrega das armas. Entrincheirados na mesquita, os rebeldes recusavam entregar-se. As forças de ocupação ameaçaram um ataque arrasador mas, novamente, acabaram pensando nas conseqüências. Destruir a mesquita, sagrada para os fiéis, seria um sacrilégio capaz de detonar um levante geral da população xiita – 60% dos iraquianos –, até então uma adversária passiva. O aiatolá Sistani, maior líder xiita, salvou a situação. Convenceu Al Sadr a retirar-se, mantendo, porém, todas as suas forças intactas, com a condição do exército americano ficar proibido de entrar na cidade.
O alívio americano desta vez parece que será ainda mais breve. Uma semana depois do acordo de Nadjaf, no mesmo dia que morria o milésimo soldado americano, os milicianos da Mehdi, que haviam vindo de Nadjaf para Sadr City (o centro de poder de Al Sadr) mais uma vez entraram em combate com os soldados americanos. A morte de 41 iraquianos, entre civis e insurgentes, e dois americanos, foi o saldo macabro. Por seu lado, os sunitas de Fallujah não ficaram inativos.
Atacaram um comboio militar nas cercanias da cidade, matando sete soldados americanos e três guardas iraquianos – o que trouxe pronta retaliação, com um bombardeio pesado da cidade.
Por aí se vê que, apesar dos acordos de paz, a situação segue explosiva nos principais centros xiita e sunita. Enquanto os rebeldes sentem-se encorajados pelos últimos sucessos a continuar resistindo, os americanos e o presidente Allawi não engolem o fato de Fallujah e outras cidades sunitas serem controladas pela resistência e Al Sadr continuar solto, promovendo a subversão – e, agora, exigindo que o controle de Nadjaf volte para seus seguidores, o tipo de coisa totalmente inaceitável pelos Estados Unidos.
Eles nunca renunciaram à idéia de reocupar Fallujah. Desde o acordo de abril, aviões americanos vêm bombardeando residências na cidade. Dizem que são “operações cirúrgicas”, que atingem somente terroristas. Na verdade, o maior número de vítimas são civis inocentes.Em fins de agosto, por exemplo, um bombardeio acertou o que para o Departamento de Defesa era uma “casa segura para terroristas”. Contudo, fontes do hospital de Fallujah informam que nessa operação foram mortas várias famílias, incluindo mulheres e crianças, num total de 20 pessoas, habitantes das casas destruídas.
Tudo indica que o próximo conflito será no local. As forças da ocupação e do governo já anunciaram sua intenção de recuperar o controle da cidade. Por sua vez, a população não suporta mais os bombardeios dito “cirúrgicos” e tem saído as ruas para protestar contra eles, considerados violações dos acordos de paz de abril. Na última manifestação, Shaikh Abd Allah al-Janabi, chefe do Conselho Consultivo dos mujehdins, afirmou: “esta guerra só acabará com os corpos deles mortos ou os nossos, e se eles querem isso, bem vindos à morte”.
Mesmo que os americanos vençam as novas rebeliões de Fallujah e da milícia Mehdi, com a inevitável perda de imagem tornando cada vez mais remoto o sonho de conquistar “as mentes e espíritos iraquianos”, restam ainda duas ameaças, ainda maiores.
A união xiita-sunita, antes considerada impossível pelo ódio entre os dois grupos que vem sendo acumulado através da história, já começa a esboçar-se. Na revolta de Fallujah, os xiitas enviaram preciosos suprimentos aos seus antigos desafetos. E os sunitas, através de seu mais importante conselho, apoiaram a luta de Al Sadr.
E há o fator Sistani. Seu prestígio entre os xiitas é enorme. Sendo um moderado, desaconselhou a luta armada, certo de que através das eleições os xiitas majoritários acabariam chegando ao poder. Desde é claro que haja eleições num futuro próximo, que assegurem de fato a soberania do Iraque.
Mas, será isso possível? Dificilmente os americanos, depois de já terem perdido 200 bilhões de dólares e mil soldados nesta guerra sem fim, aceitariam um governo xiita, fatalmente amigo dos iranianos, classificados por Rumsfeld como país que “não faz parte do mundo civilizado”.
As eleições pra valer serão em dezembro de 2005 e janeiro de 2006. É neste ano que a resolução do conselho de Segurança da ONU, patrocinada inclusive pelos Estados Unidos, dispõe que o Iraque, com nova constituição e governo eleito, estará autorizado a mandar as forças estrangeiras para casa.
Será que elas aceitarão?
Os generais de Bush falam em precisarem permanecer muitos anos ainda. Por sua vez, John Kerry declara sua esperança de mandar “nossos rapazes” para casa em 4 anos… 2008, portanto.
E se o provável governo xiita, eleito em 2006, não permitir bases americanas em seu território e, pior ainda, voltar a controlar o petróleo? Pela resolução da ONU, os Estados Unidos teriam de resignar-se a aceitar essas coisas, que, aliás, contrariam frontalmente seus objetivos no Iraque. Mas, pelo que tem sido exaustivamente demonstrado pelo governo Bush, eles não dão muito valor a compromissos.