No papel assumido de guardião do planeta, o governo americano denunciou os objetivos militares do programa nuclear iraniano. A prova maior teria sido o reinício da pesquisa de urânio enriquecido, essencial tanto para se produzir energia quanto bombas atômicas. Bush jura ser isto o que os iranianos querem, apesar de o presidente Mahmoud Ahmadinejad garantir que é contra armas nucleares, o que, aliás, foi reforçado por uma fatwa (espécie de encíclica dos muçulmanos) do supremo líder do governo e da hierarquia religiosa, o aiatolá Ali Khamenei. Para Bush, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear estaria sendo violado, com o que teríamos mais um país de posse da arma do juízo final.
É claro, aumentando o número dessas bombas no mundo, aumenta-se o perigo delas serem usadas. Especialmente contra os Estados Unidos, dos quais o Irã vem sendo um inimigo desde 1979, quando uma revolução popular derrubou o governo do xá Reza Pahlevi, amigo fraternal da casa Branca e associado benevolente de empresas petrolíferas americanas do país.
Examinando as relações entre os dois países nos últimos 30 anos, vemos que o Irã tem mais motivos para temer os Estados Unidos do que o contrário.
Em 1980, o ditador Saddam Hussein invadiu o Irã, dando início a uma guerra que duraria 8 anos, causando 1 milhão de vítimas e prejuízos de 1,19 trilhão de dólares. Os Estados Unidos forneceram armas e tecnologia militar ao Iraque. Foram mais além: realizaram ataques afundando, inclusive, dois navios iranianos. E o cruzador USS Vincennes derrubou um avião comercial iraniano. Alegaram que foi um erro, mas ninguém foi punido pela ação que resultou na morte dos 299 passageiros e da tripulação. Mais grave ainda: em dezembro de 2002, foi publicada uma lista de empresas americanas que exportaram para o Iraque, nos 20 anos anteriores (inclusive durante a guerra), materiais biológicos e químicos. Armas de destruição em massa, feitas com esse tipo de materiais, causaram a morte de 100.000 iranianos.
Depois do fim da guerra Irã x Iraque, o país dos aiatolás continuou na mira de Washington, rotulado como um dos integrantes do “eixo do mal”.
Diante destes fatos, embora não haja provas das intenções do Irã de produzir armas nucleares, isso seria compreensível. A invasão do Iraque, contra a oposição da ONU, mostra até onde o governo Bush pode chegar para defender seus interesses. A posse de bombas atômicas seria um seguro contra as “preemptive wars” americanas.
Um seguro também para proteger o Irã contra eventuais ações militares das potências atômicas que o cercam. Só uma delas, Israel, é hoje inimiga, mas, a médio e longo prazo, as outras – Rússia, China, Paquistão e Índia – poderão vir a ser.
Seja como for, teriam os Estados Unidos credenciais para advertir o mundo sobre o perigo representado por possíveis violações iranianas do Tratado de Não Proliferação Nuclear? Vejamos o que eles andam fazendo nesta área.
Em recente artigo (The Guardian, 14/3/06), Tony Benn, ex-ministro da energia da Inglaterra, revelou que o governo do xá do Irã, em 1976, planejava um programa que resultaria no desenvolvimento de armas atômicas. E concluiu: “o mais espantoso é que o fato de o Irã desenvolver esta imensa capacidade nuclear não era problema para os americanos porque, nessa ocasião, o xá era um forte aliado”. Trinta anos depois, Bush assinou um acordo com a Índia, outro “forte aliado”, que, aliás, não assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e está muito avançada no seu programa de armas atômicas, para quem os Estados Unidos fornecerão combustíveis, tecnologia e componentes da indústria nuclear. Os indianos poderão assim expandir e modernizar seu arsenal atômico.
Israel e o Paquistão desenvolveram tranqüilamente seus programas de armas nucleares, sem que os Estados Unidos os considerassem ameaças para a humanidade – apesar de Israel ter suas ogivas apontadas para as capitais muçulmanas e de o Paquistão ter realizado testes proibidos em 1998, que lhe valeram sanções, depois perdoadas por Bush.
No seu primeiro período, Bush apresentou ao congresso o NPR (Nuclear Posture Review), que propunha a revitalização da infra-estrutura nuclear do país e o projeto de produção de novas bombas, mais aperfeiçoadas, para desencorajar outras nações a competirem militarmente com eles.
Em junho de 2004, o Congresso aprovou a continuação das pesquisas para o desenvolvimento de mini-bombas nucleares. Comentando o fato, a senadora Dianne Feinstein (do Partido Democrata) declarou: “estamos praticando a maior hipocrisia, defendendo a não-proliferação de armas nucleares e dizendo ao mundo ‘façam o que eu digo, mas não o que eu faço’”. E o senador Edward Kennedy foi duro: “se o governo Bush seguir esse caminho, a próxima guerra bem poderá ser uma guerra nuclear”.
Jimmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos e uma figura da maior respeitabilidade internacional, não tem dúvidas: “os EUA são os principais culpados pela degradação do TNP. Embora afirmando proteger o mundo dos perigos de proliferação no Iraque, Irã e Coréia do Norte, os dirigentes americanos não só desrespeitaram as restrições impostas pelo tratado em vigor como também apresentaram planos para ensaiar e desenvolver novas armas, incluindo o sistema de mísseis anti-balísticos e talvez novas bombas ‘pequenas’. Também abandonaram garantias dadas anteriormente e agora ameaçam utilizar armas nucleares como primeira opção contra Estados não nucleares”.
Aparentemente, a postura dos Estados Unidos é pautada pelo conceito de “guerra permanente”, de Carl von Clausewitz. Aceitam e até favorecem o armamento nuclear de aliados como o Irã do xá e Israel, para pôr na linha países muçulmanos rebeldes na região riquíssima em petróleo do Oriente Médio. Já o Paquistão e a Índia, com a posse de bombas atômicas, são importantes para confrontar o expansionismo chinês. O valor visado não é a segurança mundial, mas a dos Estados Unidos como império, ainda que isso implique na multiplicação de armas atômicas. No caso do Irã, a Casa Branca não pode admitir que um país inimigo lhe roube sua capacidade de destruí-lo sem sofrer retaliações. Um Irã atômico pode desafiar impunemente os americanos, como faz a Coréia do Norte.
Do Conselho de Segurança da ONU, Bush não espera sanções duras. Sabe que a China e a Rússia vetarão. Mais provável é conseguir que os países europeus se associem a Washington nesse tipo de punição.
No entanto, o Irã tem uma arma que não é atômica, mas pode ter efeitos devastadores: o petróleo, já que é o número dois da OPEP. Se reduzir suas exportações, levará o preço às alturas, gerando pânico no mercado ocidental.
Ameaça por ameaça, ambos os lados têm a sua.