Sanções se viram contra quem as lançou.

Quando a Rússia concentrou tropas na fronteira com a Ucrânia, o presidente Biden ameaçou: caso vocês invadam, lançaremos “sanções  como jamais você viu (The Moscow Times, 15/12/2922)”.

Mas Putin atacou. E Biden também. As sanções americanas e europeias pareciam tão terríveis que, para muitos analistas, arrasariam a economia russa e fariam o chefão russo arrancar seus raros cabelos.

Nem por isso, a  ofensiva do Kremlin parou, enquanto os ucranianos começaram a receber armamentos dos países da OTAN, especialmente dos EUA, o que lhes permitiu resistir às forças inimigas e até lhes infringir pesadas perdas.

Antes de completar um mês de guerra, quando os combates ainda não tinham matado tanta gente, russos e ucranianos reuniram-se para discutir o fim de uma conflagração que prometia produzir enormes estragos nas terras ucranianas e na imagem da Rússia (já seriamente lesada pela invasão).

 Era o momento certo, se essa iniciativa ocorresse mais tarde, a situação teria se complicado, com cada uma das nações denunciando brutalidades e crimes de guerra presumivelmente praticados pela outra, criando uma onda de ódio recíproco que tornaria improvável que Rússia e Ucrânia topassem se sentar à mesa das negociações de paz.

Iniciadas sem alarde, as conversações entre as duas potências estariam dando certo. Segundo Fiona Hill e Angela Stent, no Foreign Affairs, Moscou e Kiev concordaram num acordo provisório, dispondo que: ”A Rússia se retiraria de suas posições em 23 de fevereiro, quando controlava a região do Donbass e toda a Crimeia, e , em troca, a Ucrânia prometia não procurar tornar-se membro da OTAN, em vez disso receberia garantias de segurança de um grupo de nações.” (Responsible Statecraft, 12/02/2022).”

Seriam programados referendos nos quais as populações do Donbass e da Crimeia decidiriam se desejavam ser parte da Rússia ou da Ucrânia.

Embora fosse uma primeira proposta, sujeita a discussão, não deixava se ser promissora.

O próprio presidente Zelensky pareceu favorecê-la em declaração à TV local: ”nosso gol obviamente é paz e restauração da vida normal em nosso Estado nativo, tão cedo quanto possível.”

O esboço de acordo foi apresentado por escrito aos EUA e à OTAN, que se pronunciaram contra, também por escrito.

Blinken, o secretário de Estado dos EUA e Jason  Stoltenberg o chefe da OTAN concederam entrevistas afirmando que as duas entidades rejeitavam a ideia de a Ucrânia jamais juntar-se à OTAN, por contrariaria princípios fundamentais, como a soberania e a integridade territorial da Ucrânia e o direito de um Estado escolher seus próprios acordos de segurança e suas alianças.

Houve uma certa hipocrisia nessas nobres colocações.

Pelo seu direito à soberania e de escolher seus próprios acordos de segurança e alianças, a Ucrânia pode renunciar a territórios, acordos de segurança e alianças, se for do seu interesse.

Sendo isso vetado pelos EUA e a OTAN, são eles que rejeitam o direito de os ucranianos escolherem o que lhes aprouver.

Na verdade, tudo  indica que houve pressão sobre o presidente Zelensky, que passou a ecoar os brados de Biden e de chefes da OTAN, privilegiando a luta contra a Rússia.

Para muitos analistas, o ex-premiê do Reino Unido, Boris Jonhson, foi encarregado de convencer Zelensky de que falar em negociações de paz não era uma boa.

Em visita inesperada a Kiev, o festeiro Boris informou  ao presidente ucraniano que o Reino Unido estava numa guerra de longa duração e não participaria de qualquer acordo com o Kremlin pois o “Ocidente coletivamente” via chances de forçar a Rússia a ceder, estando determinado a fazer o máximo por isso.

Em abril (dois meses depois da invasão), Zelensky abandonou seu pacifismo: como a guerra pode ainda demorar muito, disse, urgia que os EUA e os seus liderados, os membros da OTAN, lhe enviassem bilhões de dólares em armamentos, treinamento de militares, inteligência de satélites e operações secretas.

Austin, o secretário de Defesa dos EUA, completou a fala do ucraniano, declarando que agora havia mais um novo objetivo na coalização ocidental: além de ajudar a Ucrânia a lutar, era ”enfraquecer a Rússia.”

Um mês antes, Biden saíra do sério, revelando objetivos   da participação americana na guerra da Ucrânia, até então ocultos. “Pelo amor de Deus”, bradara o presidente, ”esse homem (Putin) não pode permanecer no poder.”

Com a enorme ajuda militar ocidental, a Ucrânia passou a enfrentar a Rússia, quase de igual para igual. Porém, as “sanções jamais vistas,” apesar do  seu poder apocalíptico, fracassaram.

Embora sofrendo duríssimas perdas, a economia russa não entrou em colapso.  Putin  conseguiu estabilizar o rublo, depois de uma forte queda no começo da invasão. E, neste ano, o rublo tornou-se  uma das mais fortes moedas do mundo, tendo  se vitaminado em quase 50%, em relação a janeiro.  Os índices do PIB e da inflação melhoraram  e o desemprego chegou ao nível mais baixo desde o fim da União Soviética (El País, 12/7/2022) .

A principal razão da resiliência da economia russa foi o elevadíssimo aumento  das exportações de petróleo bruto para a China e a Índia e de gás para a China, e o crescimento igualmente alto dos rendimentos decorrentes.

Inicialmente, Biden pretendia sancionar o Kremlin, zerando as vendas externas dos principais produtos russos: o petróleo bruto e o gás natural.

Vários países- membros da OTAN reclamaram,  não teriam condições de abrir mão da importação dessas fontes de energia, de uma hora para outra.

A OTAN e seu líder, os EUA, aceitaram que tais nações fossem reduzindo suas compras de gás e petróleo da Rússia até parar de importá-los, possivelmente em dezembro deste ano.

A perda da maior parte do mercado europeu pela Rússia está sendo compensada pelos aumentos vertiginosos das compras chinesas e indianas.

Em Agosto, o ministro da Economia do governo Putin estimou que os rendimentos das exportações de gás e petróleo atingiriam 338 bilhões de dólares, em 2022, mais de um terço acima dos 244 bilhões de 2021.  

E, assim, longe de ter seu tesouro esvaziado, a Rússia deve ganhar mais dinheiro neste ano, mesmo apesar das sanções.

E as sanções, num efeito bumerangue, voltaram-se contra os países responsáveis por elas, atingindo-os com preços em alta da energia, gerando maior inflação, carestia dos alimentos e custo de vida cada vez mais alto.

E não é só na Europa: também os EUA estão provando o gosto amargo da alta de preços pois a inflação vinda do continente europeu custará aos lares americanos mais de 5.200 dólares anuais, em média.

A Índia contribuiu para a transformação das sanções em bumerangue de maneira inesperada. Tendo sido normalmente um consumidor pouco relevante de petróleo russo, com volumes muito baixos em 2021, o governo de Nova Delhi, em março de 2022, logo após a invasão da Ucrânia, aumentou suas compras para 300 mil barris de petróleo bruto diários, alcançando 819 mil, em junho.

A Rússia, que, em 2021, era o décimo exportador de petróleo bruto para a Índia, nos primeiros 100 dias da guerra da Ucrânia já tinha assumido o segundo lugar.

A Índia mandou para os cofres russos 8,8 bilhões de dólares provenientes das importações de petróleo e carvão, somente entre 24 de fevereiro e 30 de junho de 2022, mais do que gastou em todas as compras de produtos russos no ano de 2021 (Times of Índia, 06/07/2022) .

Assustado  com essa torrente de dólares, que estava sabotando suas sanções, Biden tentou convencer o presidente Modi a ir matar sua sede por petróleo em outro país. Garantiu que optar pelo combustível russo não seria do interesse dos indianos e poderia “trazer consequências”.

Mas, Putin oferece aos indianos (e chineses) um bom desconto na compra de petróleo bruto. Isso é o que realmente interessa ao governo Modi. E o morador da Casa Branca teve de voltar a Washington de mãos vazias.

Joe Biden não deve ter gostado muito. Certamente, gosta ainda menos da atuação da China para minimizar o efeito brutal das sanções.

Segundo o Centro de Pesquisas de Energia e Ar Puro, a China tornou-se o maior comprador mundial de petróleo da Rússia, com um total de 158 bilhões de dólares, somente entre fevereiro e agosto deste ano, perto do total exportado para a Europa, em 2021.

A Rossnet, maior petrolífera russa, aumentou seus lucros em 7,2 bilhões de dólares, na primeira metade de 2022;

Em maio deste ano, os países da União Europeia decidiram cortar as importações de petróleo bruto da Rússia e de seus produtos derivados até dezembro de 2022 (Reuters, 9/8/2022).

Acontece que muitos países do grupo dependem dos combustíveis do Kremlin e, para não os prejudicar, as sanções foram suavizadas: somente as exportações de petróleo russo transportadas por via marítima seriam sancionadas, ficando um embargo total desses produtos para depois de 5 de fevereiro de 2023 (OilPrice, 14/9/2022).

Janet Yellen, a secretária do Tesouro americano, achou necessário punir os invasores russos com mais rigor. Propôs o estabelecimento de um preço máximo para o petróleo de Moscou, o qual todos os países teriam de praticar. 6 ou 7 membros da OTAN protestaram candentemente: suas economias seriam prejudicadas, era essencial manterem os negócios já acertados com Moscou.

Sob forte pressão de Yellen (e dos EUA), a decisão passou para o G7, grupo das nações mais ricas, que aprovaram o preço máximo do petróleo, já para 9 de setembro. Como prêmio de consolação para os opositores, alongou-se, então, o início da nova medida para 5 de dezembro.

A ideia permitiria que os russos continuassem exportando todo o gás requerido pelos consumidores-membros da OTAN, porém, a um preço certamente bem inferior ao do mercado internacional.

Com isso, esses países continuariam a receber o petróleo bruto que necessitam, mas a Rússia teria seus rendimentos bastante reduzidos, o que debilitaria mais a economia do país e o financiamento da guerra na Ucrânia, contribuindo para a derrota das tropas de Putin.

Não se sabe ainda qual será esse preço máximo. Alguns analistas calculam que estará entre 40 dólares e 60 dólares, o barril. Considerando que o preço atual  é de  90 a 100 dólares, dá para sentir como Moscou será golpeado.

Um dia depois do anúncio do preço máximo, Putin reagiu, rugindo que cortará todo fornecimento de petróleo bruto, gás natural e carvão ao país que aderir à nova medida.

Não se sabe se ele cumprirá sua ameaça ou se o preço máximo será efetivado a partir da data marcada. Sabe-se que 10 países rejeitam o plano, inclusive a Alemanha, Polônia, Grécia, Áustria, Hungria, Holanda e República Checa.

Se o sucesso das sanções ao petróleo russo ainda é duvidoso, parece que dificilmente terão êxito aquelas que visam atingir o gás natural do Kremlin.

Até o fim do ano passado, cerca de 45% do gás consumido na Europa vinha da Rússia. O plano da União Europeia era substituir pelo menos 2/3 das importações de gás natural russo, até o mês de dezembro.

Vários países da região, onde o gás russo representa de 65% a 100% do total de que necessitam, reclamaram com firmeza. A redução proposta ainda  não foi avante.

Enquanto alguns países toparam embargar totalmente o gás russo, outros continuaram importando, às vezes volumes menores do que o habitual. Por sua vez, a Gazprom (principal fornecedora do gás natural) através de diversas paralizações (para manutenção, conserto de equipamentos, ajustes etc) foi reduzindo gradativamente as quantidades do produto disponibilizadas a cada país. Desse modo, a participação russa nas importações de gás da Europa diminuiu: foi de 45%, em abril de 2021, para 31% em abril de 2022.

Mesmo assim os rendimentos da empresa estatal russa não diminuíram. Pelo contrário: estima-se que serão 85% maiores neste ano, devendo chegar a cerca de 100 bilhões de dólares, devido aos aumentos dos preços do produto, causado pelos consideráveis cortes nas exportações de gás para a Europa pelos gasodutos russos e à invasão da Ucrânia.

A última paralização dos oleodutos da Gazprom foi no início de setembro. Nessa ocasião, a empresa informou que a volta dos fornecimentos de gás seria em data indefinida.

Mas, logo em seguida, Putin pôs suas cartas na mesa: os oleodutos só voltariam a funcionar caso as sanções contra a Rússia fossem canceladas. Ou seja: enquanto isso não acontecesse, os clientes europeus ficariam sem gás.

Horror no Velho Mundo. Com o inverno se aproximando e com reservas de gás insuficientes em muitas nações, a situação do povo europeu seria catastrófica.

Os EUA e a União Europeia não perderam tempo em acusar Putin de chantagem (US News,5/9/2022).

Tinham toda a razão. Só que eles também estavam praticando a mesma infração, pois suas sanções, que ameaçam devastar a Rússia, caso Putin não se renda, não deixa de ser chantagem nua e crua.

Evidentemente os EUA e as grandes potências da Europa se acham acima do bem e do mal, costumam dar-se ao direito de fazerem à vontade o que criticam nos outros. Tanto a invasão da Ucrânia, quanto as sanções contra a Rússia são chantagens pois as duas ações ameaçam devastar países e vitimizar seus habitantes, a não ser que sejam atendidas suas exigências.

É claro que o lance russo é muito pior do que o do Ocidente. Em matéria de malefícios, nada se compara à guerra.

No entanto, as duas partes estão sendo castigadas. Só que as sanções que atingem duramente a Rússia estão se voltando para atingir de forma semelhante àqueles que as lançaram, ou seja,: os EUA e a Europa.

Na guerra econômica, que se trava em paralelo com a militar, o aumento vertiginoso dos preços do petróleo e do gás natural contamina quase todos os produtos essenciais à vida moderna, tornando-os insuportavelmente caros para a maioria dos cidadãos.

À medida que a crise do custo de vida vem se aprofundando, os consumidores evitam compras para poupar dinheiro e assim poder enfrentar a recessão que se visualiza (pesquisa do ”S&P Global’s final composite Purchasing Managers’ Index”).

O inverno, que se aproxima, acrescenta novos e dramáticos problemas. Diante da ameaça de Putin de cortar totalmente o suprimento de gás dos países europeus, que dele dependem para conviver com temperaturas abaixo de zero, a União Europeia tenta buscar soluções possíveis, desde novos fornecedores de gás de outros continentes, racionamentos, uso de fontes alternativas de energia e armazenamentos de gás. muito acima do normal.

Se terão êxito, é incerto.

Diante da invasão da Ucrânia, os estadistas ocidentais deveriam ter contido sua justa ira e  observado que sanções, historicamente, não funcionam.

 Apoiar adequadamente as forças armadas ucranianas era certamente necessário.

Mas teriam eles aplicado todos os seus esforços para tentar resolver a crise negociando, antes que ela se voltasse contra seus próprios  países e se espalhasse pelo mundo?

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