A Câmara dos Lordes e a licença para soldados ingleses barbarizarem no exterior.

A Câmara dos Lordes reuniu-se para revisar a chamada Lei de Operações no Ultramar, proposta pelo governo e aprovada em três turnos na Câmara dos Comuns.

Essa lei impede os membros das forças armadas inglesas de serem processados por torturas, assassinatos, genocídio e outras violações aos direitos humanos de civis cometidos em países estrangeiros.

O que se poderia esperar de um grupo de 792 aristocratas das grandes famílias, pares do reino nomeados pela Coroa inglesa e dignatários anglicanos?

Pois você se enganou…

A Câmara dos Lordes rejeitou a Lei das Operações Especiais por 333 versus 228.

O governo ficou falando sozinho.

A lei fora apresentada à Câmara dos Comuns pelo Partido Conservador, do primeiro-ministro Boris Johnson.

Alegou que muitos “processos frívolos” (absurdos) vinham sendo instaurados contra soldados da rainha por cidadãos dos países onde o Reino Unido atua. E os inocentes militares eram submetidos a situações vexatórias e penosas, que atingiam inclusive suas famílias, tendo de se defender contra algo que não teriam feito.

No entanto, para supostamente garantir a justiça, a lei admitia processos desde que iniciados dentro de um prazo de prescrição de cinco anos, a contar da data quando o suposto crime teria acontecido.

Choveram críticas por figuras responsáveis das áreas da Justiça e mesmo das próprias forças armadas.

Na verdade, a lei praticamente descriminaliza a tortura e outros crimes de guerra cometidos no exterior, já que o limite de cinco anos é uma restrição hipócrita: somando-se o tempo em que as vítimas levam para ganhar coragem de tentar abrir um processo, mais os dias gastos na busca de advogados, na elaboração da petição inicial, na pesquisa e reunião de depoimentos e de provas e no trânsito pela burocracia do tribunal, além da viagem para o Reino Unido do autor e eventuais testemunhas, o prazo de cinco anos passaria voando e os soldados culpados permaneceriam livres.

Referindo-se ao costume do governo de Londres de denunciar países inamistosos por violações de direitos humanos, Charles Guthrie, marechal de campo ex-chefe das forças armadas, escreveu: “Se começarmos a entrar no caminho perigoso de argumentar que as leis se aplicam aos outros, mas não a nós, seremos nós que sofreremos no fim.”

Mais de dez relatores especiais de direitos humanos da ONU afirmaram que a lei viola as “ obrigações  do Reino Unido sob a lei internacional humanitária, a lei de direitos humanos e a lei criminal internacional.”

O Reino Unido já assinou vários acordos internacionais que o obrigam a investigar e processar crimes humanitários.  Negando-se eventualmente a cumprir esse compromisso, acabaria tendo de encarar problemas constrangedores com o Judiciário de nações do exterior, onde tais crimes são processados e seus autores julgados e sentenciados, seguindo as normas do Direito Internacional

A procuradora-chefe do Tribunal Criminal Internacional (TCI), Fatou Bensouda, preveniu que, com a aprovação da lei, a corte poderia retirar o Reino Unido do seleto rol das nações consideradas capacitadas a investigar e/ou processar possíveis crimes de seus soldados, dispensando que esses procedimentos fiquem a cargo do TCI.

Como consequência, caso uma corte inglesa declarasse prescrita denúncia de crime de guerra contra algum militar inglês servindo no estrangeiro, o TCI não levaria em conta essa decisão e teria de enquadrar o súdito da rainha como objeto de investigação e réu em processo.

Situações assim tenderiam a ser frequentes.

 Investigação realizada pelo site Middle East Eye, que ouviu depoimentos de uma série de soldados ingleses, não são raros assassinatos de civis que os militares do seu exército praticam no exterior, atingindo suspeitos ou não, muitas vezes em obediência a instruções dos próprios superiores hierárquicos.

Verificou-se que o exército britânico operou segundo regras de engajamento no Iraque e no Afeganistão, autorizando os soldados a alvejarem civis simplesmente por acharem que integrariam listas de indivíduos sob vigilância..

A relação de mortos e feridos causados por essa estranha regra incluía crianças e adolescentes.

O Middle East Eye colheu ainda relatos de soldados que diziam receber informações de superiores permitindo que “poderiam atirar em qualquer pessoa que vissem portando um celular, carregando uma pá ou agindo suspeitamente, como, por exemplo, localizada no teto de um prédio.”

A respeito dos resultados esperados da prescrição no prazo de 5 anos, escreveu o The Guardian :”Os soldados ingleses tem cometido crimes brutais, frequentemente leva-se anos para serem revelados e tem sido extremamente difícil responsabilizar os soldados acusados (edição de 27-09-2020).”

E, em carta ao ministro da Defesa Ben Wallace, o juiz Blackett, advogado-geral das Forças Armadas, declarou que o limite de 5 anos “estimularia uma pessoa acusada a frustrar o progresso da investigação para passarem os 5 anos em que ela poderia ser processada.”

Mas, contra fatos não existem argumentos, por incontestáveis que sejam.E O Partido Conservador- que coloca as “gloriosas” forças militares acima das leis internacionais- desfruta de uma cômoda maioria na Câmara dos Comuns, o que assegurou a vitória da Lei das Operações no Ultramar, por 364 votos versus 261 da oposição,  .

O bizarro foi a postura do Labor, tradicional defensor dos princípios humanitários, que proibiu seus deputados de votarem contra uma lei que enfraquecia esses direitos.

 Deveriam se abster por decisão do líder Keir Starmer. Quem não o obedecesse sofreria duras sanções no partido.

Starmer cumpriu suas ameaças durante os dois primeiros turnos da votação, porém, no terceiro turno, depois de 34 deputados trabalhistas afirmarem que votariam rejeitando a lei,  ele teve de baixar a guarda. E aceitou que o Labor se colocasse oficialmente ao lado dos centristas do Partido Liberal e do Partido Escocês, que desde o primeiro turno se mantiveram em oposição à proposta do governo conservador.

Parece que Starmer estava agindo de acordo com seu mantra- ganhar eleições é preciso – agradando o inadequado patriotismo de grande parte dos ingleses. No entanto, não se opor à descriminalização de assassinatos, torturas e estupros faria Ramsey MacDonald, Aneurin Bevan e Clement Attlee, líderes históricos do Labor, tremerem em suas tumbas.

Embora ganhar eleições seja preciso, muitos líderes trabalhistas acham que contrariar princípios não é preciso. Há fundadas apreensões de que Starmer esteja fugindo dessa orientação. E não apenas pela sua ação no debate da Lei de Operações no Ultramar.

Já começara a trilhar esse caminho desde sua escolha para líder do Partido Trabalhista.

Com a pesada derrota do partido nas últimas eleições parlamentares, o esquerdista Jeremy Corbyn teve de renunciar à liderança. Esperava-se que seu sucessor, Keir Starmer, se preocupasse mais em corrigir posições pouco realistas de Corbyn e seu grupo, amenizando tons, mas mantendo os princípios e as prioridades do Labor.

Mas, foi uma virada radical.

Nos primeiros meses de gestão, a nova administração colocou-se ao lado de lideranças anglo-judaicas, numa campanha que injustamente acusava Corbyn de ser anti-semita e ter intoxicado o Labor com essa forma de racismo.

 Gerou-se uma discussão interna, na qual o ex-líder foi suspenso, não tendo mais o direito de participar da bancada partidária na Câmara dos Comuns. E membros da facção socialista, da qual ele é o expoente, viram-se afastados de seus cargos no partido.

Enquanto isso, Keir Starmer detonou um processo de afastamento dos princípios básicos do Labour, que são associados estritamente aos interesses da classe trabalhadora desde sua fundação.

As críticas às ações do governo conservador passaram a se centrar especialmente no ataque a atos de corrupção e à ineficiência do governo.

Além disso, Starmer enfatizou o patriotismo, como uma das causas que passariam a integrar destacadamente as principais bandeiras do partido.

 De uma forma que me parece absolutamente bizarra.

O povo inglês é e sempre foi extremamente orgulhoso de sua nação. É desnecessário apelar para um patriotismo que faz parte do DNA britânico desde séculos atrás. E mantém-se vivo, nos dias de hoje.

Por outro lado, os ideólogos trabalhistas consideram que injustiças e ineficiências estruturais, punindo em grau maior os trabalhadores, precisam mudar, reformas são precisas, inclusive para o bem-estar da sociedade inglesa como um todo.

No caso da Lei das Operações de Ultramar, acho que, se aprovada, irá contestar um dos valores do Reino Unido que é a defesa da justiça e dos direitos humanos.

Para patriotas irracionais vale mais defender militares genocidas, assassinos ou torturadores somente por serem ingleses do que defender os principais valores do Reino Unido, como os direitos humanos e  humanitários, postos em risco pela Lei das Operações Especiais.

Depois da Câmara dos Lordes derrubar a proposta da Câmara dos Comuns, o par do reino George Robertson,  trabalhista e ex-secretário-geral da OTAN, apresentou emenda garantindo que a presunção contra processos não se aplicaria aos crimes de guerra, genocídios, assassinatos e torturas.

Os lordes aprovaram essa emenda por 308 versus 249 votos.

A palavra final no sistema inglês cabe a Câmara dos Comuns que deverá discutir a Lei das Operações de Ultramar e a emenda de George Robertson até o final de abril.

Apesar da maioria conservadora, alguns deputados do partido já demonstraram que irão votar contra essa licença para cometer os mais nefandos crimes contra a pessoa humana.

Há alguma chance da Câmara dos Comuns não dar um passo atrás,

evitando sujar a imagem do reino de Elizabeth II.

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