Kadafi, o déspota da Líbia, foi derrubado por uma rebelião de grupos locais, aliados aos principais países do Ocidente, com exclusão da Alemanha da prudente Ângela Merkel. O objetivo era derrubar o regime ditatorial e implantar uma democracia.
Só o primeiro deu certo.
Em 2011, depois de Kadafi entregar os pontos, a ONU entrou na jogada enviando uma missão, a UNSMIL, para “ajudar as autoridades interinas líbias a restabelecer a segurança e o Estado de direito, promovendo o diálogo político e a reconciliação nacional”. Trabalho fácil, diziam, três meses eram suficientes para se proclamar mission accomplie.
Estavam de brincadeira.
Hoje, depois de 9 anos de caos, o país continua em conflito, enquanto a UNSMIL, que já prorrogou seu prazo de validade muitas vezes, tenta um acordo de paz entre dois grupos para por fim a uma guerra civil, que parece longe de acabar.
A luta opõe o GNA, sediado na capital Tripoli, que, criado sob a mediação do UNSFIL, representa a maioria das facções atuantes no pais, ao LNA, movimentos e milícias rebeldes liderados pelo general Haftar.
Figura curiosa esse Haftar. Faz lembrar os condottieri, comandantes de milícias de mercenários, que vendiam seus serviços militares aos reis, barões e cidades livres das Europa, entre os séculos 15 e 18.
Ele foi um dos principais generais do ditador Kadafi na guerra contra o Chad, que deu em derrota. Haftar e centenas de soldados líbios foram presos e internados pelos chadianos. Aì, eles viraram bandeira: aderiram ao país rival, sendo então libertados.
Haftar e seus sodados treinaram durante 2 anos numa base do Chad, onde formaram um exército anti-Kadafi, o Exército Nacional Líbio (quem pagou as despesas?).
Nova surpresa: de repente, Haftar partiu para os EUA. Deixou sua tropa no Chad, que ficou não se sabe fazendo o que (comiam às custas de quem?)
Diz a CNN (04-04-2011) que, segundo um antigo oficial da CIA e exilados líbios, os EUA estiveram envolvidos nessa operação. Pode ser, mas o certo é que o general viveu nos EUA durante 20 anos (despesas pagas por quem?) reaparecendo na Líbia, em 2011, para ser incorporado à revolução anti-Kadafi na patente de general. A guerra já estava na UTI e Haftar foi um dos principais comandantes até a vitória final.
Em 2014, novo giro no parafuso : o irrequieto cabo de guerra rompeu com o governo do acordo nacional, que a UNSFIL estava articulando, e voou para Bengazi, dominada por um grupo hostil aos anteriores patrões dele.
Sendo um general experiente, foi nomeado comandante. Sem demora, tratou de organizar um exército, incorporando muitas milícias e lançando-se como o salvador do país contra o domínio do que chamava de “milícias islâmicas políticas.” Gozado, pois, nas suas tropas, lutavam milícias salafitas, a mais radical seita do islamismo, também perfilhada pela Al Qaeda e pelo ISIS.
A essas alturas, depois de superar inúmeras dificuldades, opostas pelos chefes locais, os diplomatas da ONU conseguiram unificar as principais forças políticas num governo de conciliação, sediado em Tripoli, a capital.
Foi para lá que Haftar, em 2018, lançou uma ofensiva atacando e tomando as cidades da região leste que estava no seu caminho e os poços petrolíferos, mais ao sul. Tudo isso em poucos meses. Nessa marcha, diz a Human Rights Watch, os rebeldes praticaram inúmeros ataques indiscriminados contra civis e execuções sumárias de adversários.
Chegando à capital, encontraram inesperados obstáculos, uma resistência difícil de vencer.
Nos combates que se seguiram estavam presentes vários países do exterior que se aliaram a cada um dos lados opostos.
Com o governo do GNA estão a Itália, o Qatar e a Turquia
O que atraiu a Itália foi o petróleo da Líbia. As reservas petrolíferas locais – as maiores da Afríca – representam 46,4 bilhões de barris de petróleo por dia. Antes da revolução que depôs Kadafi, o país produzia 1 milhão e seiscentos e cinquenta mil barris diários. Sua exploração é extremamente vantajosa pelo baixo custo de produção (cerca de um dólar por barril), baixa porcentagem de gás sulfúrico e proximidade com os mercados europeus. Nos tempos de Kadafi, o governo de Roma foi dos principais parceiros do governo do ditador nos negócios de petróleo.
A participação dos turcos na guerra é fundamental para o governo apoiado pela ONU.
O presidente Erdogan assinou um acordo de cooperação com o GNA, a quem vem fornecendo mercenários recrutados entre ex-rebeldes sírios e equipamentos militares, inclusive os temíveis drones armados.
A Rússia, a França, os Emirados Árabes Unidos, o Egito e a Arábia Saudita ajudam Haftar e não abrem.
Os russos estão seriamente envolvidos, chegaram a imprimir dinheiro em nome de Haftar. Prestam assistência militar, mas sua principal contribuição ao exército do errático general são os mercenários do grupo privado Wagner, controlado por Moscou. A participação desses soldados da fortuna foi decisiva na tomada de cidades-chaves ao sul de Tripoli.
A França diz ver no general um grande papel na estabilização da Líbia, que, ganhando a parada, reduziria a onda de imigrantes que embarcam dali para países europeus.
E os Emirados Unidos Unidos, decididos a se tornarem protagonistas na política do Oriente Médio, mostraram seu poder, enviando aviões que já realizaram uma série de raids contra objetivos do governo de Tripoli.
No momento, Haftar, está parado diante de Tripoli, cuja conquista ele considera um golpe de morte no governo organizado e reconhecido pela ONU.
Mas está difícil, submetida durante um ano e meio a sucessivos ataques, a capital resiste. E agora, com o alistamento de diversas milícias, as forças do GNA aumentaram seu poder de fogo e começam a inverter o jogo, tendo, com a benvinda ajuda dos drones turcos, expulsado o LNA das cidades nos arredores da capital, conquistadas pelos inimigos na sua arrancada a partir de Bengazi.
Porém Haftar não quer passar para a defensiva. Para conter a contra-ofensiva dos rivais, ele lançou uma barragem de 100 mísseis contra o aeroporto de Tripoli, que atingiram também áreas residenciais nos arredores.
As perdas foram pesadas em tanques de petróleo explodidos, aviões queimados, instalações destruídas, casas atingidas, além de civis mortos e feridos.
O embaixador turco acusou os mísseis dos rebeldes de alcançarem e danificarem sua embaixada (na verdade, não passaram dos jardins). Enfurecido, afirmou que consideraria as forças de Haftar “alvos legítimos” dos aviões turcos, caso “persistissem em atacar seus interesses e missões diplomáticas.”
Virando sua metralhadora para a ONU, ele protestou: “É inaceitável que as Nações Unidas continuem em silêncio contra esta carnificina por mais tempo. As nações que fornecem ajuda militar, financeira e política a Haftar são responsáveis pelo sofrimento do povo da Líbia e pelo caos a que a nação vem sendo arrastada.”
Mas a ONU não levou esse desaforo para casa. Através da UNSFIL, condenou o bombardeio rebelde por ter matado civis e destruído infraestruturas civis e apelou para que “os responsáveis pelos crimes sob a lei internacional sejam levados à justiça.”
O GNA não pouca importância.
Preferiu declarar que a condenação e os apelos a algo mais drástico era pouco; “Nós não damos mais atenção às tímidas condenações da comunidade internacional.”
Muito oportuna essa afirmação. Há muito tempo que governos infratores dão uma banana para condenações a violências internacionais, que não resultam em qualquer punição contra eles.
A não ser, é claro, quando um país incomoda uma grande potência. Nesse caso pode contar com sanções econômicas, bombardeios, invasões e outras ações semelhantes.
No caso da Líbia, a guerra civil atual é apenas uma continuação da série de conflitos violentos entre milícias do exército anti-Kadafi, com devastadores efeitos colaterais na população civil.
Nos conflitos atuais, o governo provisório foi reconhecido pela ONU, depois de formado sob os auspícios da UNSFIL, missão de paz da entidade internacional.
Por isso, a oposição armada, liderada pelo condottiere Haftar, é ilegal.
Mas ninguém pensa em sancionar os países que fornecem á causa rebelde armamentos, recursos financeiros e até mercenários.
Afinal, a Rússia tem poder de veto na ONU e armas nucleares. E o Egito, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos são aliados preferenciais dos EUA. Quanto à França, o país de de Gaulle se limita por ora a um discreto apoio político.
E os EUA?
Quando o governo italiano exortou Trump a ser protagonista na guerra civil da Líbia, ele respondeu: “Penso que os EUA tem atualmente protagonismos suficientes. Nós somos protagonistas em toda a parte.”
Não estamos interessados.
Acredite se quiser.