Na gangorra do conflito verbal que opõe o governo dos EUA ao da Coreia do Norte, depois de um período de relativa calma, as coisas pegaram fogo outra vez.
Em seguida a uma subida no tom de Trump, que declarou “nossa paciência está esgotada”, Kim Jong-un rugiu mais alto. Testou mais um míssil, mas não um míssil qualquer, este seria o primeiro inter- continental. Capaz de voar mais de 5.500 km, atingindo o próprio território americano no Alaska.
A linha vermelha estaria transposta e The Donald não fez por menos, colocou a guerra como hipótese até próxima: diante deste desafio, que punha em risco a segurança americana, os EUA passavam a considerar que “algumas coisas muito severas” seriam aplicadas contra a Coreia do Norte. A questão com os norte-coreanos precisava e seria resolvida rapidamente.
O general MacMaster, Conselheiro de Segurança Nacional, ecoou seu chefe, confirmando que todas as opções enviadas por ele a Trump sobre o desaguisado com a Coreia do Norte, envolviam ataca-la militarmente.
E, como seria esperado, a representante dos EUA na ONU, a trepidante Nikki Haley, não faltou. “Poderíamos usar (nossas forças militares) se precisarmos, ” ela proferiu com o ardor de sempre.
As coisas se desanuviaram um pouco quando técnicos confiáveis asseguraram que levaria pelo menos 10 anos para Pyongyang desenvolver uma ogiva capaz de carregar “a arma do Juízo Final”, até a pátria de Ozzy Osbourne.
O general Mattis, secretário da Defesa, mais uma vez conteve a belicosidade do presidente. Apesar de ser reconhecidamente um falcão, Mattis jogou água na fogueira. Disse que o lançamento do míssil intercontinental norte-coreano não poria os EUA mais próximos da guerra.
Surpresa mesmo ele causou ao falar, tal qual uma legítima pomba, que a diplomacia ainda não tinha falhado.
Ué? Não era exatamente o contrário que o presidente tem cansado de repetir?
Sou obrigado a admitir que a tutela militar das relações exteriores americanas pelos generais às vezes vale à pena.
O Mattis-pomba já aparecera anteriormente quando contestou a opção guerreira, lembrando que um conflito armado representaria “provavelmente o pior tipo de guerra na vida da maior parte ds pessoas”, mencionando a terrível ameaça das centenas de bombas prontas para serem lançadas pela artilharia do norte contra Seul.
Inflado de arrogância, The Donald, porém, não desistiu de renegar sua arrogância beligerante.
Convocou os presidentes do Japão e da Coreia do Sul para apoiarem suas ameaças de ataque iminente à monarquia comunista.
O passivo Shigueasu Abe obedeceu, declarou quer dialogar com a Coreia do Norte não teria sentido. Mas não deixou de amaciar sua fala, defendendo pressões para que Pyongyang aceite discutir seriamente (quer dizer, congelando o programa nuclear como pré-condição, como The Donald em tempos tinha exigido..
Já o presidente sul-coreano, Moon, pressionado para largar sua posição independente pelas negociações, falou em pressões, sem aludir ao assustador “todas as opções estão sobre a mesa.”
Interessante que os EUA e aliados partem de uma ideia considerada indiscutível: a posse de armas atômicas e mísseis intercontinentais representaria uma ameaça concreta não só aos EUA e aos países da Ásia do Sul, como também a todo o mundo.
Ninguém sequer pensa em discordar.
Acho que convém analisar um pouco se esse quadro está bem pintado.
Na verdade, os norte-coreanos tem muito mais a temer dos americanos do que o contrário.
Não saiu das mentes do povo da Coreia do Norte a guerra de 1950-1953, na qual os bombardeiros dos EUA despejaram no território adversário mais bombas do que em toda a guerra com o Japão. A capital, Pyongyang, não ficou com um único edifício de pé. Mais de um milhão e quinhentos mil civis norte-coreanos foram mortos pelas forças do governo de Washington. Foi incontável o número de feridos.
Daí o medo que continua intenso, mesmo 60 anos depois da guerra. E o inevitável ódio aos responsáveis por toda a devastação imposta ao país.
Os poucos chefões que tem governado o país nesse período estimulam esses sentimentos para garantir apoio unânime a eles que estariam defendendo o povo, enfrentando o feroz Tio Sam.
De lá para cá, houve diversos conflitos diplomáticos entre EUA e aliados contra a Coreia do Norte.
A constante troca de bravatas e ofensas entre os governos hostis se repete numa base praticamente anual.
Tudo tem dado em nada, com soluções precárias e acordos temporários.
Nunca houve um tratado de paz entre EUA, Coréia do SuL e Coreia do Norte, que garantisse a segurança da península coreana. Em 1994, por pouco os EUA não atacaram.
Com o início de um programa nuclear militar, os norte-coreanos passaram a se sentir mais protegidos. A propaganda estatal ajudou a fortalecer seus egos e, agora, a posição do ditador Kim Jong-un.
A posse de bombas nucleares e mísseis intercontinentais é vista como uma garantia de defesa. Graças a ela, os americanos nunca atacariam porque sofreriam retaliações devastadoras.
Ou seja: para a Coreia do Norte, as bombas nucleares e os mísseis não são arma de ataque, mas de defesa.
Se Saddam Hussein e o coronel Kadafi possuíssem armas atômicas não seriam invadidos e derrubados pelos EUA e aliados.
O exemplo do Irã não é dos melhores.
Apesar de Israel, seu inimigo, possuir armas nucleares, o governo de Teerã foi proibido de produzir as suas, sofrendo pesadas sanções econômicas até aceitar um acordo que satisfizesse as grandes potências.
Agora, Trump garante que vai remendar esse acordo, promovendo alterações ao gosto de Israel. Sem a proteção de armas nucleares, os iranianos ficam a mercê não só dos israelenses, mas também da política militar americana, cujos generais- Mattis à frente- já começaram sua campanha de delenda Iran.
A postura norte-coreana de manter seu programa atômico parece justificável até por precedentes históricos.
Seu governo demonstrou no passado estar pronto a negociar um tratado de paz, que ponha fim à velha guerra da Coreia, ainda não oficialmente encerrada. É claro, eles também pretendem a abolição das sanções que pesam sobre seu país, que poderia assim ingressar no mercado financeiro internacional, saindo do desconfortável isolamento em que tem vivido.
Havendo paz, não haveria porque os EUA manterem 30 mil soldados na Coreia do Sul, prontos para uma guerra que deixaria de ser viável.
Acho que tudo isso poderia ser negociado, caso os EUA topassem sentar-se à mesa com coreanos do norte e do sul e os vizinhos, Japão e China, para analisarem seus pleitos.
Não sei se Kim Jong-nu vai admitir desmantelar seu programa nuclear, ainda que em etapas.
Ou mesmo aceitar seu congelamento.
Na pior hipótese, ele pode se recusar.
Ainda assim valeria a pena.
Se na Guerra Fria, os EUA e a antiga União Soviética conviveram (embora com altos e baixos), porque não poderia acontecer o mesmo com os norte-coreanos no lugar dos russos?
E olhe que as chances de guerra entre os governos de Washington e Moscou eram muito maiores, pois os dois disputavam a hegemonia no mundo, país a país.
Já a Coreia do Norte não tem o menor motivo para atacar os EUA.
Há quem discorde, afinal seu presidente-ditador é um louco.
Mas, e quem governa os EUA?