Kissinger é odiado pelas esquerdas e defensores dos direitos humanos e das liberdades.
Motivos não faltam. Como Secretário de Estado dos presidentes Gerald Ford e, principalmente, Richard Nixon, ele levou os EUA a cometerem pecados mortais gravíssimos, que mancharam a imagem de Tio Sam.
Sendo o regente da política externa americana, deu seu OK ao brutal ataque de soldados e paramilitares indonésios ao recém criado Estado de Timor Leste.
Os golpes militares no Chile, no Uruguai e no Camboja tiveram o entusiástico apoio do então Secretário de Estado.
Foi um dos arquitetos da Operação Condor, na qual agentes de segurança das ditaduras militares do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile colaboravam entre si para prender (e mesmo matar) pessoas da lista negra desses governos.
As atrocidades cometidas pelos órgãos de segurança da ditadura militar argentina tiveram a solidariedade e apoio de Kissinger.
Certa vez, ele declarou ao o Ministro de Relações Exteriores da Argentina: “Se há coisas que precisam ser feitas (eliminação ou tortura de esquerdistas e outros adversários da ditadura), vocês devem fazê-las rapidamente.”
Mas, Kissinger tem também outro lado.
Foi figura decisiva na realização do acordo de paz entre EUA e Vietnam do Norte, ponto fim àquela guerra que parecia não ter fim.
Foi a pomba da paz que aproximou os líderes dos EUA aos líderes da China e da União Soviética, quando a Guerra Fria estava próxima de tornar-se perigosamente quente.
E foi esse lado, digamos, bom de Kissinger que está aparecendo depois de anos em que o ex-Secretário se manteve recolhido num semi anonimato.
A figura feia de Kissinger adornou as páginas dos grandes jornais americanos declarando seu apoio a Hillary Clinton, na luta pela Casa Branca.
Até aí, nada demais.
No caso, tratava-se de escolher entre uma milionária e um bilionário, ambos igualmente pouco agradáveis à maioria do eleitorado americano.
No entanto, apesar de Kissinger ter preferido sua adversária, Trump, uma vez eleito, apressou-se a procurar o ex-Secretário de Estado. E chamou a imprensa para testemunhar o encontro, afirmando alto e bom som seu respeito pelo ex-Secretário.
A explicação é simples: Kissinger é visto com admiração pelos políticos do Partido Republicano, tido como um az no campo da Relações Internacionais.
Parece que Trump pretende aprender alguma coisa num setor para ele nebuloso. Tanto é que as reuniões entre os dois se repetiram.
Kissinger é sobretudo um pragmático. Entende que a paz entre Moscou e Washington se configura como essencial para os dois países. E mesmo para todo o mundo, de maneira geral.
Segundo fontes da imprensa (Jason Ditz, Antiwar), ele estaria reforçando com argumentos sólidos a ideia de um amplo entendimento Trump/Putin para congelar a 2ª Guerra Fria, que atualmente se esboça.
Para que isso aconteça, não dá para os EUA continuarem brigando com os russos em várias partes do planeta.
Kissinger tem aconselhado Trump a aceitar a Criméia como parte da Federação Russa. O que implicaria automaticamente na suspensão das sanções americanas sobre Moscou. A União Europeia, que só adotou as sanções por pressão dos EUA, fatalmente toparia fazer o mesmo.
Por seu lado, Putin se comprometeria a acalmar os belicosos cidadãos do Leste da Ucrânia, que não querem se submeter ao governo de Kiev.
Estes lances teriam como consequência provável um acordo de paz na Ucrânia, no qual os rebeldes pró-Rússia e o governo concordariam na re -integração do Leste no país como região autônoma, mantendo uma série de poderes (semelhantes aos da Escócia na Grã-Bretanha).
Outro desdobramento poderia ser a desmobilização dos milhares de soldados da NATO, que permanecem nas fronteiras com a Rússia, e dos igualmente numerosos soldados russos postados do outro lado, todos prontos para mandar bala num possível conflito.
Se, com a suspensão das sanções, os problemas da Criméia e da oposição do Leste ucraniano terminarem, a Rússia passa a ser uma potência amigável.
Não haveria porque a NATO manter-se em pé de guerra, temendo um ataque de forças russas, que teria se tornado improvável.
Seria um grande passo para extinguir a nascente Guerra Fria.
E Kissinger ganharia muitos pontos.
Acho que foi o pragmatismo que fez esse cidadão virar um protagonista da paz, ora ameaçada pelas discórdias crescentes entre Moscou e Washington.
Se tudo der certo, agora ele merece ser louvado, apesar da sua maléfica atuação passada na América do Sul e na Ásia.